José Saramago, leitor de Ray Bradbury



“Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos!”

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.




Ray  Bradbury ajudou a sedimentar todo um imaginário sobre a vida extraterrestre, sobretudo em Marte. Exemplo notável são suas Martian Chronicles. Seja pela época, quando os olhares se voltavam surpresos pela corrida astronômica, seja pela formação deslumbrada e irregular do leitor autodidata, José Saramago manifestou apreço pela chamada ficção-científica.

Numa crônica de Deste mundo e do outro, “Um azul para Marte”, o escritor português se mostra envolvido por esse tratamento e escreve ele mesmo sua crônica marciana. Este texto integra um conjunto de crônicas reunido no livro antes citado com ars da ficção científica: “Os animais doidos de cólera”, “O planeta dos horrores” e “Um salto no tempo” são alguns deles.

Isso não é uma justaposição. Noutro texto recolhido neste livro, “Cada vez mais sós”, a referência ao mestre estadunidense é tornada explícita pelo próprio cronista que se demonstra entregue integralmente ao fatalismo da solidão total do homem no universo:

“Venho pedir desculpa aos meus três leitores. Há tempos escrevi neste mesmo lugar uma crónica a que chamei Um Azul para Marte. Era uma pequena utopia, um breve exercício de imaginação mas era também um amargo relance de olhos para os materiais que constituem isto a que chamamos civilização terrestre. Afinal, o Planeta Vermelho, o tal dos canais misteriosos, o que inspirou a Bradbury essas espantosas Crónicas Marcianas, parece estar tão morto como a lua.”

Leia a crônica “Um azul para Marte” a seguir e note que José Saramago, movido por sua consciência social, associa o tratamento da ficção científica ao da utopia ao imaginar um planeta feito da responsabilidade, da fraternidade e da igualdade social, i.e., o extremo oposto do nosso, o que, dá a este texto o tom fabular e pedagógico que se encontra no universo criativo do nosso Prêmio Nobel de Literatura.

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A noite passada fiz uma viagem a Marte. Passei lá dez anos (se a noite dura nos pólos seis meses, não sei por que não hão-de caber dez anos numa noite marciana) e tomei muitas notas a respeito da vida que por lá se faz. Comprometi-me a não divulgar os segredos dos marcianos, mas vou faltar à minha palavra. Sou homem e desejo contribuir, na medida das minhas pequenas forças, para o progresso da humanidade a que me orgulho de pertencer. É muito importante este ponto. E espero, se algum dia me vierem pedir contas dos meus actos, isto é, do perjúrio cometido, que os não sei quantos biliões de homens e mulheres que há na Terra tomem todos a minha defesa.

Em Marte, por exemplo, cada marciano é responsável por todos os marcianos. Não tenho a certeza de ter compreendido bem o que isto quer dizer, mas enquanto lá estive (e foram dez anos, repito), nunca vi um marciano encolher os ombros. (Devo esclarecer que os marcianos não têm ombros, mas o leitor está certamente a perceber a minha ideia). Outra coisa que me agradou em Marte, é que não há guerras. Nunca houve. Não sei como se arranjam nem eles souberam explicar-mo, talvez porque eu não tenha sido capaz de lhes dizer o que é uma guerra, segundo os padrões terrestres. Mesmo quando lhes mostrei dois animais selvagens que lutavam (também os há em Marte), com grandes rugidos e dentadas, continuaram a não perceber. A todas as minhas tentativas de explicação por analogia só respondiam que animais são animais e marcianos são marcianos. Desisti. Foi a única vez que tive dúvidas a respeito da inteligência deles.

Ainda assim, o que mais me desorientou em Marte foi o não saber onde eram os campos e onde eram as cidades. Para um terrestre, digo-vos eu que é uma experiência muito desagradável. Acaba a gente por se habituar, mas leva o seu tempo. Por fim, já não me causava estranheza ver um grande hospital ou um grande museu ou uma grande universidade (os marcianos têm tudo isto, como nós) em lugares para mim inesperados. Ao princípio, quando eu pedia razões, a resposta era para mim sempre a mesma: o hospital, a universidade, o museu estavam ali porque eram ali precisos. Tantas vezes me deram esta resposta, que achei melhor aceitar com naturalidade, por exemplo, a existência de uma escola, com dez professores marcianos, num sítio onde só havia uma criança, também marciana, está claro. Não pude calar, em todo o caso, que me parecia desperdício dez professores para um aluno. Mas nem mesmo então fiquei a ganhar; responderam-me que cada professor ensinava uma matéria diferente, e portanto.

Em Marte gostaram muito de saber que há na Terra sete cores fundamentais de que se podem tirar milhares de tonalidades. Lá só há duas, branco e preto (com todas as gradações intermédias), e eles sempre suspeitaram que haveria mais. Garantiram-me que era a única coisa que lhes faltava para serem completamente felizes. E embora me tivessem feito jurar que não falaria do que por lá vi, desconfio bem que estarão dispostos a trocar todos os segredos de Marte pelo processo de obter um azul.

Quando saí de Marte ninguém veio acompanhar-me à porta. Acho que no fundo não nos dão grande atenção. Vêem-nos de longe o planeta, mas estão muito ocupados com os seus próprios assuntos. Disseram-me que só começarão a pensar em viagens espaciais depois de conhecerem todas as cores. É estranho, não é? Por mim, nesta altura, estou hesitante. Posso levar-lhes um bocado de azul (nesga de céu ou toalha de mar), mas depois? Eles virão certamente por aí abaixo, e eu tenho a impressão de que não vão gostar.

(SARAMAGO, José. “Um azul para Marte”. In: Deste mundo e do outro. Lisboa: Caminho, 1997, p.215-217)

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