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Mostrando postagens de 2025

“Um certo sorriso”, de Françoise Sagan: breve romance sobre o tédio

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Por Amanda Fievet Marques Françoise Sagan. Foto: Pictorial Parede   O segundo romance da escritora francesa Françoise Sagan, Um certo sorriso , publicado em 1956, possui aparentemente uma trama simples. Uma jovem estudante de Direito, Dominique, tem um caso fugaz com um homem bem mais velho, Luc, o tio de seu namorado que é, além disso, casado.   Mas, na verdade, trata-se de um breve romance sobre o tédio. O caso com Luc é somente o contraponto aventuresco à sensação predominante de tédio, de vazio. É Luc quem propõe logo nas primeiras páginas a Dominique “uma aventura”, nesses termos (cf., Sagan, 1956, p. 37).   Para o filósofo francês Vladimir Jankélévitch, que publica apenas alguns anos depois, em 1963, o livro A aventura, o tédio, o sério , “o tédio está no centro de um universo minguado e diáfano onde todas as coisas estão envoltas pelo véu cinza da indiferença” (Jankélévitch, 2017, p. 79, tradução nossa).   Pode ser que apesar do enredo simples, portanto, a ...

O abismo de São Sebastião, de Mark Haber

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Por Pedro Fernandes Mark Haber. Foto: Nina Subin Mark Haber se mostra com O abismo de São Sebastião um escritor fascinante devido sua capacidade inventiva de forjar todo um universo no interior daquele que já conhecemos fazendo da ficção não uma extensão da realidade, como é recorrente na literatura, mas uma realidade autônoma porque crível e sustentável pela sua própria estrutura. Essa qualidade é alcançada pela maneira sutil de se infiltrar na ordem histórica como conhecemos, sem o interesse de desarticulá-la, mas de mostrar como suas engrenagens, fruto das relações humanas, se organizam e constituem o que percebemos com o valor de verdade.   O entrecho narrativo é simples, mas não as possibilidades de leitura, sempre a depender de como o leitor se inicia no texto ou dele coloca em evidência certos extratos de acontecimentos. Trata-se do convívio entre dois críticos de arte unidos, separados e talvez reunidos, em torno de um interesse obsessivo: uma tela de aproximadamente trint...

Grand tour, de Miguel Gomes, um filme capaz de fazer milagres

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Por Alonso Díaz de la Vega   Entre as cenas do cinema que mais me comove está a de uma multidão de crianças que, extasiadas, assistem a um espetáculo de marionetes em Os incompreendidos (1959). François Truffaut se concentra nos rostos dos pequenos, e assim os planos abrangem o que parece ser uma infinidade de sorrisos desdentados, de olhos brilhantes, assustados ou até entediados. De repente, atravessa um plano com dois meninos mais velhos, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) e seu melhor amigo, René Bigey (Patrick Auffay), que planejam um furto sem prestar muita atenção aos bonecos que narram aparentemente o desfecho de “Chapeuzinho Vermelho”. O papel dos protagonistas é semelhante ao do crítico, que não deve se deixar ficar muito impressionado, enquanto as outras crianças representam o público ideal: aquilo que veem (mãos disfarçadas de lobo e outros personagens) é claramente falso, mas as crianças presumem que seja real; algumas parecem que vão chorar, enquanto outras gritam d...

50 anos de Feliz Ano Novo

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Por João Victor Uzer Rubem Fonseca. Foto: Fernando Pimentel   Em 2025, Feliz Ano Novo , de Rubem Fonseca, completa 50 anos. Uma das coletâneas mais lembradas do autor, o livro ganhou notoriedade devido seu histórico com a ditadura. O fato de ter sido censurado sob a alegação de atentar contra a “moral e os bons costumes” é bem conhecido, mas outro aspecto importante desse evento é normalmente negligenciado: o escancaramento da ignorância dos censores.   Fonseca é bem celebrado pelo seu estilo caraterístico, denominado brutalismo pela crítica. Com personagens periféricos e o uso de uma linguagem marcada por gírias, a literatura fonsequiana se destacou nos anos 1960. Assim, quando Feliz Ano Novo foi publicado, o autor não era nenhum anônimo; já havia publicado outras três coletâneas de contos — Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1969) — e o romance O caso Morel (1973). Com Lúcia McCartney recebera o prêmio Jabuti. Destaque que se reafirma n...

Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai, de Thiago Souza de Souza

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Por Renildo Rene Thiago Souza de Souza. Foto: Arquivo pessoal. Sentir e escrever são dois elementos expressivos possíveis ao luto neste romance. Com a descontinuidade de uma relação física paterna, causada pela morte, várias são as tentativas individuais empreitadas por um filho para organizar as emoções na história trazida por Thiago Souza de Souza, em sua estreia pela editora Taverna, ali no ano de 2021.   O protagonista ao qual temos o campo de vista adentrado em Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai perde seu pai ainda novo, aos três anos, após um acidente médico causado pela inserção de dipirona por uma enfermeira. Já adulto (a morte foi em 1993; o genitor estava em seus trinta e seis anos), ele recorre ao processo de escrita para explorar a angustiante sensação da ausência e o impacto familiar post mortem . Quando narra certos episódios de sua vida, esse narrador nos diz também sobre a repercussão daquele episódio original em diversas fases de compreensão de seu ...

Boletim Letras 360º #635

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Dalton Trevisan. Foto: Dilson/ Arquivo O Estado do Paraná . LANÇAMENTOS   Centenário de Dalton Trevisan é marcado, na Todavia, pelo início de publicação da obra completa do escritor. A casa editorial publica em junho os seis primeiros títulos.   1. Publicado originalmente em 1965, O vampiro de Curitiba consolidou Dalton Trevisan como um dos principais nomes da literatura brasileira, ao lado de escritores como Machado de Assis e Graciliano Ramos. Deliciosamente subversivo, narra as aventuras do anti-herói Nelsinho, que perambula por Curitiba em busca de aventuras sexuais. Na construção de seus contos, Dalton se vale de obras e autores de diferentes origens para então subvertê-los, encaixando-os na concisão do cotidiano. Você pode comprar o livro aqui .   2. Se, até os anos 1980, Dalton apostava na forma tradicional do conto ― e de certa forma a reinventava, foi com este Ah, é? que ele revolucionou não apenas sua obra como a própria literatura brasileira. Em brevíssimas h...

A ilha, os fantasmas e o despertar do imaginário

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Por Afonso Junior Marc Ferrez. Ilha de Paquetá, 1885.   A Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) realiza anualmente um encontro — o Ghost Story Challenge. A ideia é, repetindo o que ocorreu com o lendário encontro, em Villa Diodati, entre Mary Shelley, seu esposo, Lorde Byron e seu empregado Polidori, inspirar os participantes com ambientes e temas fantásticos.   O local escolhido foi a ilha de Paquetá, no fundo da baía de Guanabara no município do Rio de Janeiro. Ainda que bastante abandonada pelo poder público atualmente, a ilha é muito preservada e guarda histórias que remetem ao Império e ao romantismo.   Eu poderia falar do livro que trouxe o romantismo para o Brasil, A moreninha (1844), escrito por Joaquim Manuel de Macedo, autor que inspirou o jovem José de Alencar. De Pedro Paulo Bruno, pintor que imaginou a ilha como refúgio bucólico romântico. Ou mesmo de nomes como João Saudade (um escravizado), do Solar de...

Três exemplos de livros infinitos: recepção, editoração e tradução em movimento

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Por Luis Fernando Novoa Garzon Preâmbulo   Este ensaio procura tatear os movimentos de três textos canônicos em campos interpretativos muito distintos: O capital (Karl Marx), O processo (Franz Kafka) e o livro das Mil e uma noites (anônimo). Todos estes livros foram alvo de edições e traduções e a cada edição e tradução surgiram mudanças em relação ao texto original, a depender da língua de recepção e do contexto histórico-cultural predominante em cada universo linguístico. Neste ensaio bibliográfico, acompanhamos O capital e O processo desde sua primeira publicação até suas edições críticas e as traduções das Mil e uma noites até a primeira tradução direta do árabe para o português. Apresentamos os três livros de forma ora concentrada, ora alternada para que o leitor perceba a alternância e a continuidade dos processos de significação que queremos aqui destacar.   1. Engels, Brod, Galland   Não fosse Friedrich Engels, a obra de Karl Marx não teria tido projeçã...