Vou te receitar um livro

Por Henrique Ruy S. Santos




 
Já estamos todos de saco cheio de ouvir que a arte é feita para incomodar, para tirar-nos de nossas zonas de conforto e fazer-nos olhar para a realidade de outra forma. É um clichê como muitos outros que formam o senso comum, mas também o vocabulário pretensamente crítico da arte. O problema dos clichês é que eles, com não pouca frequência, costumam ser verdadeiros e, mais do que denunciar a suposta invalidade do que dizem, revelam a sedimentação formal de um pressentimento ou uma intuição.
 
Afinal o que sentir senão incômodo quando lemos coisas como
 
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.[?]
 
O que fazer diante disso? Como reagir a esse amontoado insólito de palavras? Bom, se você for uma pessoa com pouco ou nenhum interesse por poesia, de duas uma. Pode simplesmente ignorar e tratar como mais uma baboseira pretensiosa daquele pessoal metido a besta que são os poetas. Outra reação possível é encarar a coisa como desafio, subir no ringue com o poema e exigir-lhe, a socos e pontapés, a combinação do cofre que vai revelar todos os seus segredos. No primeiro caso, você segue sua vida normalmente com a certeza de que, no dia seguinte, quando for pela manhã à padaria que você conhece, deparar-se com a atendente que você já conhece e pedir os pães cujo gosto você sabe que já conhece, ela, a atendente, certamente não perguntará de volta “gostaria de levar algumas lesmolisas touvas para acompanhar?” Assim, a completa falta de utilidade prática da literatura justifica a indiferença com que muitas vezes nos sentimos à vontade para tratá-la.
 
No segundo caso, a coisa muda de figura, mas nem tanto. Você lê, relê. Mais uma vez, agora em voz alta, interroga o poema, demanda que ele revele o mandante desse atentado tão torpe ao sentido, descobre que saber a identidade do mandante não resolve muita coisa, e afinal vai à padaria comprar pães com o vago sentimento de que poeta é gente metida a besta mesmo.
 
Mas num caso como no outro, sente-se o ataque. O incômodo verdadeiramente acontece. O fato de essas palavras existirem, organizadas nessa determinada ordem, não deixa de ser um ato de violência, de ruptura da normalidade do dia a dia. A arte e, nesse caso específico, a literatura realmente chacoalham nossas percepções e nos deslocam a outros lugares, mais ou menos afastados das práticas comunicativas do cotidiano. O clichê vence mais uma vez.
 
Mas eis que, premido pela maré cada vez mais inescapável dos algoritmos, deparei-me recentemente com o termo healing fiction ou “ficção de cura”. A expressão vem para designar uma tendência não tão nova no mercado editorial entre os best-sellers e caracteriza livros cujos objetivos são completamente distantes de qualquer tentativa de incômodo. Em uma das matérias sobre o tema, Heloísa Noronha define o gênero como “livros com histórias leves e pessoas simples com dilemas e percalços semelhantes aos da vida real. Em geral, os enredos se passam em bibliotecas simpáticas, livrarias fofas ou cafés e lojinhas agradáveis. A atmosfera é acolhedora e, ao fim de suas páginas, a sensação que paira no ar é bem-estar, conforto e até mesmo gratidão” (cf. Noronha, 2024).
 
Não é de hoje que a indústria cultural produz aos montes produtos feitos sob medida para o consumo rápido e irrefletido, voltados à injeção daquela dose de escapismo que aparentemente se tornou tão necessária de uns tempos para cá. Já existe até um discurso “crítico” pronto — que de crítico não tem nada — voltado à justificação intelectual desse tipo de produto: precisamos ajustar nossas expectativas à mediocridade e, se o filme, livro ou série da vez não agradou, a culpa é de quem foi ao cinema ou à livraria esperando esbarrar em Fellini ou Tolstói.
 
Mas o termo me chamou atenção por dar nome a essa tendência de livros com capas com ilustrações coloridas de livrarias, cafeterias, bibliotecas etc. e com títulos que remetem a esses estabelecimentos — A incrível lavanderia dos corações, Biblioteca da meia-noite, Bem-vindos à livraria Hyunam-Dong, Meus dias na Livraria Morisaki etc. —, tendência essa que vinha observando de maneira difusa, sempre figurando nas listas de mais vendidos. Mas acima de tudo foi a ideia de uma literatura que promove algum tipo de cura que me fez descer a toca do coelho. Afinal, a possibilidade de alcançar uma melhoria pessoal por meio da literatura não só habilita uma função prática direta da arte, como também vai totalmente de encontro à ideia da arte como incômodo, uma vez que são “histórias que trazem diversas reflexões e o famoso ‘quentinho no coração’”, como se explica no site de uma das principais editoras brasileiras nesse nicho.
 
O principal atrativo para o público parece ser, portanto, a possibilidade de chegar de um dia cansativo de trabalho e embarcar em uma leitura que trará acolhimento, reflexões positivas e a oportunidade de fugir, seja da rotina maçante, seja de sentimentos desagradáveis. E isso tudo, o que é essencial, sem a necessidade de desgaste mental, apenas deite e relaxe, que diremos a você o que sentir e como agir em relação aos seus problemas.
 
Resumidamente, a principal característica desse tipo de obra é o relato das experiências vividas nesses lugares (pequenas livrarias, cafeterias, lavanderias etc.) aonde os protagonistas vão para escapar de problemas emocionais e/ou econômicos, e onde passam por algum tipo de transformação e/ ou experiência mágica que os ensinam a enxergar a vida de uma maneira diferente.
 
Esses espaços ditos de fuga e escape do caos capitalista muitas vezes nada mais são que topografias consagradas de realização do capital em seu movimento incessante, apenas aparentemente alheios ao mundo de que querem fugir: livrarias, lojas de conveniência, cafeterias etc. O fato de os principais best-sellers desse gênero serem oriundos de países como Japão e Coreia do Sul não é algo sem seus significados e traz consigo a devida dose de orientalismo que o interesse por países asiáticos costuma esconder não tão bem assim.
 
Os produtos culturais do “Oriente”, aos olhares dos ditos ocidentais, trazem consigo a marca do exotismo e da natureza intocada, com a diferença de que, no caso das healing fictions, produtos essencialmente urbanos que são, não são os recônditos das florestas intocadas o que se busca, e sim aqueles microcosmos de suposta calmaria no próprio núcleo da vida acelerada das megalópoles, os lugares onde supostamente a marcha implacável do sistema ainda permite algum grau de humanização. Se o fugere urbem clássico realizava a fuga total dos espaços urbanos — ainda que no plano ideal, é claro —, esse novo topos do imaginário contemporâneo, fruto que é de um tempo sem utopias, tem que se contentar com a fuga da cidade dentro da própria cidade. Não a desagregação total da ordem, mas a possibilidade de fruição em seus interstícios, ou seja, o tempo livre.
 
Desse modo, como os fundamentos sociais e econômicos do sistema permanecem intocados, é preciso recorrer à mistificação e à idealização da sociedade, em uma espécie de cosmética do capitalismo. A “utopia” da literatura de cura é irrevogavelmente atrelada ao universo prosaico das relações de troca correntes e se traduz na preferência espacial pelo pequeno estabelecimento comercial supostamente à margem das pressões econômicas, onde o que se comercializa é o amor, a empatia e o acolhimento em pacotes perfeitamente embalados nos lugares-comuns da pieguice. Os exemplares do gênero refletem nas jornadas de seus protagonistas o efeito que os livros se propõem a alcançar como produto no mundo real: a aquisição da cura enlatada, o equivalente literário a uma insossa pílula de Rivotril.
 
A preferência espacial das ficções de cura transforma os lugares onde invariavelmente se realiza a mais-valia (ainda que em escala reduzida) e, portanto, a exploração, em refúgios onde é possível obter autorrealização e transformação pessoal. O mecanismo de mistificação ainda é bem similar ao da nostalgia arcádica, mas com a devida depuração das formas mais complexas: a “Idade de Ouro” que os poetas neoclássicos cantavam, com a respectiva harmonia paradisíaca da vida pastoril, escondia a brutalidade de organizações de tipo arcaico ou feudal; agora, na impossibilidade dos paraísos intocados, oculta-se a dinâmica cruel por trás das sociabilidades banais por meio de camuflagens bobas. Algo como “até poderíamos ser um negócio qualquer, mas vendemos abraços e temos gatinhos”.
 
Em sua pretensão de representar uma fuga da realidade opressora do cotidiano, a healing fiction, com seus best-sellers altamente rentáveis, nada mais é do que uma das condições culturais necessárias à manutenção das dinâmicas peculiares de opressão, como já é há bastante tempo o gênero da autoajuda. Por meio de seus enredos fáceis e da panfletagem de virtudes que demandam pouca energia intelectual, livros desse gênero cumprem com excelência as exigências de reprodução social mínima de todos nós trabalhadores. “O prazer acaba por se con­gelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosa­mente nos trilhos gastos das associações habituais”. O escapismo, a diversão, torna-se, assim, “o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela [a diversão] é pro­curada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 128).
 
Como Adorno lembrava, em um mundo onde a força de trabalho é coisificada, o tempo livre torna-se um mero apêndice do trabalho, um período dedicado à renovação de forças para encarar a próxima jornada diária. Como são essencialmente separados do trabalho, é preciso que os prazeres do tempo livre em nada remetam à rotina daquele, daí a exigência de que “desliguemos” os cérebros para assistir a um filme ou ler um livro. O que acontece hoje em dia é que, em vez de caminharmos em direção à não reificação do trabalho, reabilitando-o também como fonte de prazer, o aspecto excessivamente racionalizado e controlado das relações de trabalho se imiscui naquilo que nos sobrou de tempo livre, empregando sua dinâmica de produtividade a tudo que fazemos. “Quantos livros consigo ler em um dia?[!]” “Quantos episódios daquela série consigo maratonar se assistir na velocidade 2x?” são exemplos de questionamentos que nos revelam a conversão do prazer em metas a serem batidas.
 
A healing fiction parece responder a esse estado de coisas, mas o faz reivindicando mais uma vez aquela divisão rígida entre trabalho e tempo livre, que termina por ratificar o seu contrário, isto é, favorece a instalação da lógica da produtividade no âmbito do lazer. A literatura passa a ser algo a ser consumido quase por osmose, por meio das chamadas “leituras dinâmicas” altamente eficientes, uma atividade tão passiva que é possível realizá-la até mesmo enquanto se assiste a um filme ou se ouve um podcast.
 
No lugar de uma literatura capaz de reconfigurar nossas categorias de sociabilidade a partir de perspectivas radicalmente disruptivas, capaz de reabilitar a atividade intelectual apartada da mecanicidade do trabalho reificado como fonte de prazer, é-nos vendida uma literatura farmacológica, “terapêutica”, consumível a um custo energético zero, pronta a nos repor “curados” às prateleiras do mercado de trabalho, onde, lá sim, nos entregamos 100%.
 
Sim, dizer que a arte é feita para incomodar é, certamente, um pensamento batido e que não explica satisfatoriamente o fenômeno artístico em suas múltiplas manifestações. Entretanto, no lugar de descartar certos clichês ao primeiro sinal de alarme, talvez façamos melhor em escutá-los com discernimento, a fim de não cair em armadilhas piores.


Referências
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
NORONHA, Heloísa. Para desacelerar: listamos 10 livros de histórias leves e acolhedoras. Disponível aqui. Último acesso em: 14/04/2025.
 

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