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Mikhail Zóschenko. Foto: V. Presniakov |
Ao longo de toda a história da
literatura russa moderna, e inclui-se aqui também a soviética, a censura foi
uma desagradável e permanente instituição da vida literária. Em alguns
momentos, claro, os atentos olhos dos censores fizeram vista grossa para alguns
excessos e para as críticas feitas nas obras publicadas. Já em outros, a
censura parecia a espada de Dâmocles, sempre pronta a cair sobre algum
desavisado, e até mesmo um avisado, mas inconveniente.
Apesar desses breves momentos de
respiro nessa longa história de mordaças, a sátira sempre esteve sob estrita
vigilância, pois esse tipo textual é capaz de incomodar profundamente os
defensores de pensamentos totalitários com sua cáustica derrisão. Além disso,
quando habilidosos, os satíricos conseguem trazer à tona as contradições da
sociedade por meio de coisas do cotidiano. Uma conversa no trem, uma reunião de
colegas, uma visita desagradável… todos esses são excelentes temas para um
satírico, e não é à toa que Mikhail Zóschenko os tenha utilizado para criar
alguns de seus contos.
Mikhail Zóschenko nasceu em 1894,
quando seu país ainda era o Império Russo, e viveu até 1958, na então União
Soviética. Como se nota pelas datas, o escritor já tinha quase 30 anos quando o
Estado proletário foi criado, o que explicaria uma postura mais crítica em
relação a esse novo mundo que a ele se apresentava. Não foi esse o caso,
Zóschenko participou da Guerra Civil Russa do lado vermelho, lutando, portanto,
a favor da Revolução até ser dispensado por questões médicas. No campo das
artes, ele também não assumiu uma postura conservadora e participou ativamente
do grupo de vanguarda chamado Irmãos de Serapião.
Considerado um dos mais ácidos
satíricos de seu tempo, Zóschenko sofreu uma verdadeira perseguição pelos
representantes dos interesses stalinistas na esfera cultural, como demonstra
Diénis Babitchenko (1990). Para tentar melhorar sua situação tão preocupante, o
escritor soviético escreve duas cartas diretamente a Stálin na tentativa ainda de
se explicar, pois a seu ver a crítica não havia compreendido suas intenções. Essa
recepção negativa da obra dependia de uma leitura bastante enviesada fruto da
aplicação do marxismo à crítica literária, mas que encontrava, não sem esforço,
fundamentação nos elementos estéticos dos textos em específico.
Dessa forma, ao invés de se ler os
contos de Zóschenko como sátiras destinadas à denúncia de problemas sociais,
eles foram lidos na chave de literatura antirrevolucionária, prática, aliás,
bastante comum para os críticos mais afeitos ao Partido que logo torciam o
nariz para a literatura que não seguia a estética do Realismo Socialista. E não
é à toa que a proclamação da Doutrina Jdánov tenha sido influenciada, em grande
medida, pela extensa repercussão de autores como o nosso objeto e Anna
Akhmátova.
Apesar de um incômodo generalizado,
a gota que transbordou o copo, no caso de Zóschenko, foi o conto infantil “As
aventuras do macaco”, reeditado em 1946 na revista
A estrela. Poucos
meses depois, em 14 de agosto, o Comitê Central publica um decreto a respeito do
periódico, em que cita diretamente o nome do escritor e em um tom nada apreciativo.
“O último dos contos publicados por Zóschenko,
‘As aventuras do macaco’
(A estrela, nº 5–6 de 1946) é uma pasquinada
vil contra a vida soviética e o povo soviético. Zóschenko representa a ordem
soviética e o povo soviético em uma forma terrivelmente caricata, apresentando caluniosamente
o povo soviético como primitivo, semieducado, tolo e detentores de moral e
gosto obtusos. A representação cruelmente violenta de Zóschenko da nossa
realidade é acompanhada por ataques antissoviéticos.” (Orgburo, 1946, tradução
nossa).
A partir desse decreto, além do
fechamento dos veículos (a censura também alcançou na ocasião o jornal
Leningrado),
o satírico passa a viver um momento de extrema dificuldade, em que beirava a
miséria. Zóschenko é expulso da União dos Escritores, e a imprensa para de
tocar no seu nome. Sem trabalho ou perspectiva, o autor fica nesse limbo até
1953, quando é readmitido na associação. Contudo esse período de reabilitação
dura pouco e agora pela fatalidade do tempo: em 1958, Mikhail Zóschenko morre
em decorrência do seu tabagismo, uma falência cardíaca.
Não dispomos do espaço,
infelizmente, para fazermos jus ao interessante e complexo debate da relação
entre Zóschenko e as políticas culturais stalinista. Por isso, aproveitaremos a
oportunidade para mencionar um ótimo trabalho sobre a obra desse satírico, a
dissertação de mestrado Denise Regina de Sales (2005), hoje professora de
literatura russa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além de um
estudo detido da vida e da obra desse autor, o trabalho também traz muitos contos
traduzidos em apêndice, que ilustram as tensões sociais ironizadas pelo escritor.
Entre esses contos está, por
exemplo, “O agitador” (1923), a história de um pseudointelectual partidário que
vai a uma aldeia para tentar motivar os camponeses a contribuírem com o
desenvolvimento da aviação. Basta dizer que o tal agitador não tem a menor
ideia de como funciona um avião ou como o objeto poderia ser útil aos
camponeses. Além disso, até mesmo a ideia de um avião estava tão distante da
realidade daqueles camponeses esquecidos pela modernidade que ela lhes parece
incompreensível, até mesmo assustadora. O próprio agitador, por sua vez, também
não é capaz de explicar o que é ou como funciona um avião e acaba misturando na
cabeça dos seus interlocutores as imagens das turbinas de um avião com um poderoso
moedor de carne. Os mujiques perguntam, confusos, se essa máquina seria capaz
de triturar qualquer animal, um cavalo por exemplo. O agitador confirma.
Aterrorizados com essa possibilidade, os camponeses chegam à conclusão de que
não precisam de aviões, pois os cavalos são úteis demais para serem
transformados em picadinho.
Dessa forma, o riso cáustico de Zóschenko
se encontra, principalmente, na tensão estética entre a aceleração do processo
de modernização soviética e o evidente descompasso a que estão submetidas as
franjas dessa sociedade. Ri-se da incompatibilidade entre o dinamismo da vida
moderna, evidenciado aqui por um de seus símbolos mais consagrados, o avião, e um
estilo de vida que resistia às mudanças por sua própria infraestrutura
econômica e social. Em outras palavras, alguns avanços tecnológicos da vida
cosmopolita dos grandes centros urbanos — em especial, claro, Moscou e São
Petersburgo —, se revelam absolutamente estranhos à massa camponesa da
população soviética, que continuava em um regime semelhante ao que vivia anos
antes do processo revolucionário que culmina na Revolução de Outubro. Nesse
sentido, então, é possível compreender o incômodo que esse conto poderia causar
nos críticos empenhados em defender a política stalinista para a cultura.
Para resumir, então, em “O agitador”
podemos encontrar um contraste entre dois universos separados geograficamente (a
dinâmica da capital contra a rígida província). O cômico surge tanto da
incapacidade do agitador enviado pelo Partido quanto dessa incompatibilidade,
dessa contradição entre esses dois mundos. Uma abordagem muito distinta do riso
surge em “O novo homem” (1923), em que Zóschenko lança luz sobre a contradição
interna de um mesmo personagem. Esse conto apresenta um cenário extremamente
reduzido: a esposa recebe um visitante bastante íntimo, e o marido fica na sala
ao lado, ouvindo a conversa e pensando consigo. Ao contrário do conto anterior,
não há um deslocamento de quilômetros, ou de décadas se considerarmos o
traslado como uma espécie de viagem no tempo para a época em que ainda não
existiam aviões.
O cerne de “O novo homem” é a
contradição interna do protagonista, ou seja, apesar de se considerar um homem moderno,
progressista, livre dos preconceitos burgueses, ele não consegue deixar de
sentir ciúmes da esposa. O título, na nossa opinião, já nos dá a chave de
leitura, mas para que isso fique mais claro precisamos voltar até a passagem da
década de 1850 para a de 1860, até o momento conhecido como a Época das Grandes
Reformas. As transformações socioeconômicas desse período, cujo maior exemplo é
o fim da servidão, causaram um momento de profunda instabilidade política e de
crise cultural generalizada. A infraestrutura se transformava e como uma placa
tectônica em movimento começava a chacoalhar as fundações dos prédios do que
estava sobre ela.
Em meio a esse confuso processo de
passagem do Antigo Regime para um modelo mais próximo do capitalismo burguês,
alguns intelectuais se destacam por seus novos valores, suas novas formas de
pensamento e, o que chama mais atenção, por sua crescente radicalidade. Esse
novo tipo social foi chamado de diversas formas, mas foi só com
Pais e
filhos, de Ivan Turguêniev, que ele recebeu um nome que entrou para a
história. Eram os
niilistas, homens e mulheres que não acreditavam em
nada, não tinham apreço pelas instituições existentes e só pensavam na
destruição da sociedade para criar algo novo. Segundo Charles Moser (1964),
esse epíteto (niilista) era usado mais pelos críticos desses intelectuais do
que por eles mesmos, já que, se questionado, um niilista se chamaria de
novo
homem, e não de niilista.
Com essas informações, então,
podemos voltar ao conto de Zóschenko, que se passa muitas décadas depois do
nascimento dessa figura típica dos anos 1860. Como dissemos, já em seu título o
conto “O novo homem” nos dá uma chave de leitura, e agora deve estar mais claro
qual é a fechadura que ela abre. O protagonista, Koziepupov, afirma para si
mesmo (e para o leitor) que ele seria um
novo homem, ou seja, um membro
da intelligentsia radical, que vale lembrar foi a responsável pela Revolução
Russa. Dessa forma, uma adjetivação que poderia passar despercebida ganha uma
dimensão imensa, tanto política quanto cultural.
A acidez da gargalhada que Zóschenko
provoca no leitor se intensifica com a crítica que fundamenta o conto: os
resquícios da velha cultura continuam sendo parte intrínseca do pensamento das
pessoas, mesmo entre aquelas que se consideram filhos de uma nova sociedade. Isso
se materializa no conto por meio da contradição de Koziepupov que se diz um
novo homem, livre do pensamento pequeno-burguês, mas que se deixa levar pelos
ciúmes a ponto de imaginar diversas formas de agredir o visitante de sua
esposa. Por meio do riso, então, Zóschenko demonstra que não basta a proclamação
de uma nova cultura para que ela venha a existir; nem a linguagem é capaz de
operar uma transfusão de valores como por toque de mágica, fazendo que o
indivíduo abandone toda uma vida cultural pregressa em favor do que se tornou
conveniente.
Se olharmos bem, trata-se de um tema
bastante próximo do outro conto a que nos referimos anteriormente, “O
agitador”, ou seja, fala-se de uma tensão entre a ânsia pela modernidade, que
rejeita sua concretização, e a sombra do passado, que se recusa a morrer. Se
observarmos sua antologia
A aristocrata (1924), veremos que outros
textos apresentam um assunto semelhante, lidando, claro, sob diversos aspectos.
E não é de se espantar, pois, como dissemos, Zóschenko teve a oportunidade de presenciar
a transição em uma idade adulta, bastante madura; somando-se a isso que os
contos mencionados aqui foram escritos já aos trinta anos, temos que o satírico
tinha uma visão muito aguda das contradições dessa sociedade incipiente, ainda
tateando o caminho para sua própria identidade nacional e cultural.
Vale ressaltar, ainda que de
passagem, que críticas dessa natureza não aparecem apenas na obra desse autor.
Pelo contrário, trata-se de um tema frequentemente trabalhado por escritores
soviéticos nesse momento inicial da URSS. Como exemplo, o autor Artióm Vessióly
publicou em 1928 um conto muito significativo, intitulado “A verdade nua e
crua”. Sob a forma de epístola, escrita por ex-soldados do Exército Vermelho ao
seu antigo capitão, o texto centra-se na falta de inserção dos jovens soldados,
que passaram sua juventude aprendendo a atirar e não nas faculdades, e ao final
da Guerra Civil não possuíam qualquer inserção no mercado de trabalho. A ida de
Semión Gorbatóv ao sindicato em busca de emprego dá início a uma conversa que
ilustra muito bem o conflito central desse conto.
“— Qual é a sua especialidade,
cidadão?
— Eu não sou um cidadão, sou um
membro do Partido — respondeu Semión Gorbatóv. Eu levei oito tiros e duas
estocadas, uma bala de um KDT
1 arrebentou minha costela, alojou-se
no peito e até hoje gela meu coração.
— É hora de esquecer os ferimentos,
ninguém tem interesse neles. Agora estamos construindo o socialismo
pacificamente. Qual é a sua especialidade, cidadão?
— Operador de metralhadora —
respondeu baixinho o herói, e seu coração ardeu com a ofensa.
— É membro do sindicato?
— Não.
— Bom, então a nossa conversa será
curta. Em primeiro lugar, não temos demanda para essa especialidade; em
segundo, nós temos muitos membros que estão sem trabalho, e você nem é membro.”
(Vessióly, 1990, tradução nossa)
Famintos, humilhados e sem qualquer
perspectiva, os soldados pedem que o capitão faça alguma coisa por eles. O
conto se fecha com um semiesperançoso “esperamos sua resposta”, e Vessióly de
fato preparava um conto a ser publicado no periódico
A guarda jovem,
porém o texto nunca veio à luz. O autor sofreu profundas represálias da
censura.
Inserimos o caso de Vessióly aqui
para demonstrar duas questões. A primeira, como dissemos, é que as denúncias de
Zóschenko não eram fruto de sua aversão pessoal contra o Estado soviético, mas
da sua visão crítica em relação à realidade que o cercava. Nada mais condizente
com o legado do Realismo Crítico deixado pelos grandes escritores russos do
século XIX. E em segundo lugar, nota-se que o tom da passagem acima é bastante
trágico e muito diferente da pena de Zóschenko, mais afeita nesses contos à
sátira e à zombaria do que ao drama.
Isso não significa que Zóschenko não
tenha sido direto nas suas críticas; pelo contrário, temos em
A aristocrata
o conto “Um cidadão honesto”, no qual um narrador que escreve à polícia com
diversas denúncias escritas em linguagem oficialesca, porém os desvios
apontados não são casos de polícia, senão desafetos ou indelicadezas.
Utilizando-se do humor, o conto ironiza a utilização personalista de alguns
indivíduos mal-intencionados da máquina pública e das denúncias políticas,
prática que também foi tratada em dezenas de outras obras.
Para concluir, então, já deve ter
ficado bem claro que não é preciso grande esforço para se compreender por que a
obra de Zóschenko incomodou os defensores das expectativas do PCUS para a
cultura. Afinal, como vimos aqui por meio dos seus contos dos anos 1920, o
satírico aponta para o abismo que existia entre a realidade e os planos do
Partido para o estabelecimento de uma nova cultura. E tudo isso às gargalhadas.
Notas:
1 Nome dado aos membros do Partido
Constitucional Democrata a partir de sua sigla em russo, KD.
Referências
BABITCHENKO, Diénis. “Mandaram xingar
o conto…”: A censura política contra Mikhail Zóchenko (“Poviest prikazano rugat’:
polititcheskaia tsienzura protiv Mikhail Zóschenko).
Soviétskaia Kultúra.
Moscou, p. 15-15. 15 set. 1990. Disponível em:
https://portal-kultura.ru/upload/iblock/3ef/1990.09.15.pdf. Acesso em: 03/06/2024.
KOTOVA, Maria. Два письма Зощенко
Сталину: От «моя книга нужна в наши дни» до «я пишу Вам с единственной целью
несколько облегчить свою боль».
S. d.
Disponível
aqui.
Acesso em: 03/06/2024.
MOSER, Charles.
Antinihilism in
the Russian Novel of the 1860’s. Hague: Mouton & co., 1964.
SALES, Denise Regina de.
A sátira
e o humor nos contos de Mikhail Zóchtchenko. 2005. Dissertação (Mestrado em
Literatura e Cultura Russa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
ZÓSCHENKO, Mikhail Mikhailovitch.
Obra
reunida em sete tomos (sobraniie sotchineni v semi tomakh). Moscou: Vremia,
2008, v. 1, p. 331-332.
ORGBURO. Resolução do Orgburo do
Comitê Central do PCUS(b) de 14 de agosto de 1946, n. 274, p. 1g, “Sobre as
revistas
Zvezdá e
Leningrado”. Pravda, Moscou, 21 ago. 1946.
Disponível
aqui.
Acesso em 14/02/2025.
VESSIÓLY, Artióm.
Obras reunidas.
Moscou: Pravda, 1990. Disponível
aqui.
Acesso em: 19/02/2025.
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