A vida é uma pedra de amolar:
desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos.
— George Bernard Shaw
Em
Como ler um poema, Terry
Eagleton define que o material ao qual chamamos de “poema” tem certas
características mais ou menos consensuais. No aspecto da criação e da técnica criativa,
ele menciona da seguinte maneira: “Um poema é uma declaração moral, verbalmente
inventiva e ficcional, na qual é o autor, e não a impressora ou o processador
de textos, que decide onde terminam os versos” (p.32, tradução minha) Iniciar
com esta afirmativa é, aqui, quase uma obviedade se vista de imediato.
A cadência dos versos, a rítmica
que se sobrepõe às rimas etc. não é algo simples — e a poética pressupõe uma
conexão maior do que o ímpeto formal de deslocamento sintático e do verso. O
poema, mesmo se fosse algo fácil de escrever, disso não deriva que a poesia que
emerge nos versos seja clara quanto se pensa. Para o crítico inglês: “É certo
que a prosa geralmente não recorre à métrica. Em geral, a métrica, como a rima
do final dos versos, é própria da poesia; mas não se pode considerar parte de
sua essência, já que há tantos poemas que sobrevivem muito bem sem ela” (idem).
A escrita poética, que tem como
influências explícitas de Adília Lopes, Carlos Drummond de Andrade, entre
outros, carrega consigo uma herança que não é das menores (uma pedra?). Por
isso, o fazer poético contemporâneo tem de lidar com a herança que lhe diz
respeito, ainda que pense e repense as formas consagradas ou as novas porvir.
Assim, antes de sua capacidade inventiva, retorna-se ao problema do conteúdo
enquanto “forma”. Para usar as palavras de Jacques Derrida, por sua vez, em
Che
cos’é la poesia?, quando se busca uma compreensão de uma espécie de poética
da poesia, ou melhor, um enlace do lírico com a vida — a memória —, ele afirma:
“O poema chega-me, benção, vinda do outro. Ritmo mas dissimetria. Nunca há
senão poema, antes de toda a
poiese” (p.9). A pedra seria, então, um
tipo de
poeisis. O ato de escrita desvela o que é dela, uma escrita em
ato? Quer dizer, a “coisa” da poesia é o Outro que, talvez, ainda não se sabe.
***
Um excurso: o clássico de nossa
poesia, que vale a remissão na íntegra, é
A educação pela pedra, de João
Cabral de Melo Neto. Lê-se:
Uma educação pela pedra: por
lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no
Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e, se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma. (p.207)
***
O conjunto de poemas de Isabelle
Scalambrini, por sua vez, constitui-se em 34 textos, divididos em duas partes,
a saber: “as pedras” e “os dias”. Ao longo dos versos, as diversas figuras de
linguagens se juntam às certas “metamorfoses” da pedra, que ora é um fenômeno
físico, ora é uma condição existencial. Em certo sentido, a pedra é aquilo que
esfacela a rigidez de um olhar do objeto: nela está a poesia, e não a poesia
que a encontraria para ser poetizada.
as pedras são maleáveis
podem ser esculpidas
pelas mãos
por influência
pressão
e temperatura
se cria e se aprende
uma pedra
alicerce
do monumento-poema
o poema:
uma arquitetura em pé
pedra sobre pedra (p.16)
A pedra desloca seu sentido entre
o literal e o figurado com a fluidez de uma edificação espiritual, de tal modo
que a arquitetura tem o “alicerce” no poema. Ao longo dos poemas as
introspecções não significam um recuo à interioridade como imediato refúgio,
mas certa denúncia daquilo que, margeando pedras em rios, os contornos de uma
gramática cujos acordes se afinam entre o eu e a mensagem.
Se é uma obra simbólica ou
reflexiva, a pedra explora as dificuldades emocionais, mas a reflexão íntima e
o sentimento são a modulação desta pedra. O uso do termo “pedra” no título
sugere um peso, mas não a imobilidade; não é algo intransponível que os “dias”
têm de ser enfrentados. A pedra, com sua frieza e resistência, vai além da
metáfora: uma figuração do olhar que irrompe as barreiras psicológicas, o luto —
verbo — ou dificuldades de comunicação — monológica —, que marcam os “dias” do
eu-lírico.
mais uma vez
acordei com dor de cabeça
hoje não tem sol
vou tomar uma aspirina
recorrer à metafísica
ler álvaro de campos ou até
recorrer a alberto caieiro
aspirina não cura
as dores da alma (p.36)
A escrita de Scalambrini é marcada
por uma linguagem, que, se não inovadora, sabe manusear com seu material
pedregoso: a subjetividade lírica. Muitas vezes simbólica, desafia o leitor a inverter
as camadas profundas da psiqué humana.
Há um deslocamento de tempo. Aliás,
deslocamento que não é uma repetição. Ela parece sugerir que os “dias de pedra”
são aqueles em que nos sentimos presos em uma rotina estagnada ou em um ciclo
emocional do qual não conseguimos escapar; a impossibilidade de escapar é que
permite captá-lo.
a repetição involuntária
do soluço
me encanta
pelo incômodo
e pela involuntariedade
pelo contrário
o maior dos incômodos
é a repetição dos dias (p.47)
Um caminho a ser trilhado, sem
dúvidas. A escrita poética de Scalambrini é, enfim, lúcida: sabedora de que, nela,
o desperdício excede o ato. A herança poética não é arbitrária, como apenas pastiche
ou clichê. A tensão entre o novo, da vida pessoal e o lirismo que a compõe é o
leitmotiv,
mas também seu cume.
Arte poética II
escrever
como uma pedra
escreve sua sombra (p.54)
***
Para finalizar, convém mencionar que
a autora está ciente do produto poético que precipita em forma. Com a formação
em Letras e as pesquisas confluentes no campo da poesia e análise poética
(Estudos Literários), sua pesquisa tem como um dos focos a poética de Adília
Lopes e Ana Martins Marques (o que, nas epígrafes, fica à mostra); esta herança
notável, junto as outras epígrafes, a pedra não é só um substantivo.
Na longa tradição poética latina,
“pedra” adquire várias feições. Assim, a herança que a autora traz em seus
concisos poemas é um tipo de experimento, mas consciente do bastão que recebeu
de predecessores, sobretudo portugueses. Isso mostra uma gradativa maturação.
Uma propedêutica de uma poética porvir. É como buscar em espelhos uma nova
imagem para refletir: nos ombros de gigantes ver outro horizonte.
Se a cada um há uma “pedra” para se
apropriar poeticamente, é crível que “tudo que é sólido desmancha-se no ar,
tudo que é santo é profanado e o homem é finalmente compelido a encarar com
sentidos sóbrios suas condições reais de vida e suas relações com sua espécie”
(p.10, tradução minha). Portanto, as pedras e os dias, portanto, hão de ser
superados ao retirarmos nossas pedras dos escombros da modernidade. As vias
para novas formas de resistir à solidez de um mundo, cuja feição representa a
solidão de nossos dias. A vitória da contingência, inclusive, pode ser uma
consolidação da renúncia utópica: das tumbas de nosso passado à arquitetura
fetichizada.
Referências
DERRIDA, Jacques.
Che cos’é Ia poesia?. Tradução Osvaldo Manuel
Silvestre. Coimbra: Angelus novus, 2012.
EAGLETON, Terry. Como leer un poema. Tradução Mario Jurado.
Madrid: Akal, 2010.
MELO NETO, João Cabral.
A educação
pela pedra. São Paulo: Alfaguara, 2008.
SCALAMBRINI, Isabelle.
dias de
pedra. Campinas: Ofícios Terrestres.
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