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Françoise Sagan. Foto: Pictorial Parede |
O segundo romance da escritora
francesa Françoise Sagan,
Um certo sorriso, publicado em 1956, possui
aparentemente uma trama simples. Uma jovem estudante de Direito, Dominique, tem
um caso fugaz com um homem bem mais velho, Luc, o tio de seu namorado que é,
além disso, casado.
Mas, na verdade, trata-se de um
breve romance sobre o tédio. O caso com Luc é somente o contraponto aventuresco
à sensação predominante de tédio, de vazio. É Luc quem propõe logo nas
primeiras páginas a Dominique “uma aventura”, nesses termos (cf., Sagan, 1956,
p. 37).
Para o filósofo francês Vladimir
Jankélévitch, que publica apenas alguns anos depois, em 1963, o livro
A
aventura, o tédio, o sério, “o tédio está no centro de um universo minguado
e diáfano onde todas as coisas estão envoltas pelo véu cinza da indiferença” (Jankélévitch,
2017, p. 79, tradução nossa).
Pode ser que apesar do enredo
simples, portanto, a singularidade do livro de Sagan resida em toda a
caracterização das sensações da narradora e protagonista, que passa pela
construção de um universo diáfano, constantemente alternando entre o tédio e a
aventura.
Dominique, a narradora de
Um
certo sorriso, leitora admirativa de Sartre, Maeterlinck, Alain e Proust,
passa o romance inteiro entediada; “tédio”, “entediar-se”, “entediar-me” e
demais derivados são as palavras que aparecem com maior frequência no texto.
A narradora primeiro observa seu
“gosto pelo tédio” (Sagan, 1956, p. 23), pois sozinha pode “ser vaga, vaga,
completamente vaga…” (ibid., p. 24). Sensação informe. Para Jankélévitch, o
tédio não é raso, mas “porque é o mais indeterminado dos sentimentos, ou
melhor, a própria indeterminação tornada sentimento, ele aparece como criatura
proteiforme” (Jankélévitch, 2017, p. 79).
Tão proteiforme que o tédio se
torna, aqui, texto literário. O primeiro efeito que Dominique nota da presença
de Luc sobre si é o “desaparecimento total do meu tédio […]. Eu me tornava viva
e às vezes engraçada; parecia-me que esse estado de coisas podia durar
eternamente” (Sagan, 1956, p. 31-2). Pode-se depreender dessa descrição que o
princípio metafísico do tédio é o tempo?
A presença de Luc é a única a
suscitar um desejo de eternidade no presente. Até aquele momento, o devir havia
sido apenas informe e vasto. Outro momento de sensação de eternidade é quando
Luc a beija pela primeira vez: “E todos esses últimos tempos haviam sido apenas
uma longa fuga diante desse instante” (ibid., p. 62-3).
Além disso, o próprio Luc, sedutor
de Dominique, propositor do “jogo” perigoso e da “aventura”, por quem ela, de
todo modo, sente-se atraída, justifica e defende o desenvolvimento do caso pela
possibilidade de ambos juntos “se entediarem menos”: “E você se entendia menos
comigo que com Bertrand” (ibid., p. 37).
Em seguida, Dominique propõe que a
natureza da afinidade deles centra-se na própria inaptidão ao tédio: “ Luc era
o único que se entediava tão violentamente quanto eu, e eu me perguntava se não
era essa nossa primeira cumplicidade: essa espécie de inaptidão ao tédio” (ibid.,
p. 61).
No fim das contas, o caso com Luc
não faz cessar de todo o tédio de Dominique, pelo contrário, ele prolifera
espécies de tédio: “se eu me entediava, ao menos me entediava apaixonadamente”
(ibid., p. 45); “eu me entediava, com certeza, mas de um tédio agradável e não
vergonhoso” (ibid., p. 97-8).
O desenrolar do caso permite
também vislumbrar que nem diante da realização de suas fantasias Dominique é
capaz de sair de seu estupor. Ao conhecer Luc, ela lamentava o fato de ele ser
casado e sonhava, por exemplo, com os dias partilhados e as viagens que
poderiam fazer juntos (cf., ibid., p. 66). Quando ele lhe propõe, mais tarde, a
viagem a Cannes, ao descrever-se já no carro, na estrada junto dele, ela relata
não sentir nada, ao que ele lhe diz, inclusive: “você está se perguntando se
não vai se entediar” (ibid., p. 101).
Embora o leitor comece a estranhar
a arraigada apatia de Dominique, nesse momento ela relata que é por meio desse
extremo distanciamento do real que ela é, no entanto, estranhamente capaz de
“se alegrar”: “Eu não sentia nada, mas nada. […] E essa espécie de ausência aos
acontecimentos acabou por me alegrar” (idem).
Complexidade ou frivolidade de
Dominique? Pode um livro sobre o tédio não entediar o leitor? Ou a letargia de
Dominique acaba, ao contrário, por provocar irritação, convidando, assim, o
leitor a refletir sobre os motivos de tamanha inação?
Efetivamente, no fim, o leitor se
pergunta se não são o contexto histórico no qual se insere a protagonista — a
França do pós-guerra, e o seu consequente esvaziamento ideológico —, e o
estrato social de Dominique — aluna da Sorbonne —, os grandes responsáveis pelo
“tédio cotidiano” da personagem. A crise dos valores, evidentemente, repercute
na literatura: se ela não é nem mais decadentista, nem mais populista, tampouco
centrada nas descrições da guerra, ela é o quê? Um nada proteiforme ou,
justamente, um laboratório experimental?
Referências
JANKÉLÉVITCH, Vladimir.
L’aventure,
l’ennui, le sérieux. Paris: Flammarion, 2017.
SAGAN, Françoise. Un certain sourire. Paris: Julliard,
1956.
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