Não fosse Jean Antoine Galland, popularmente considerado o pior tradutor
das
Mil e uma noites, o ocidente teria que esperar para ter acesso ao
livro em que Sherazade salva a sua vida entretendo o rei com suas estórias. Se
não fossem todos os outros tradutores e editores do livro, não teríamos acesso
à forma melódica e luxuriante dos contos, nem entenderíamos que Simbad o
marujo, Aladim e a lâmpada maravilhosa e Ali Babá e os quarenta ladrões saíram
da pena de Galland.
2. O capital (in)completo e as cinzas de Kafka
Originalmente, Marx tinha planejado escrever
O capital em seis
livros. O primeiro foi publicado (em alemão) e revisto (a tradução francesa)
por ele mesmo. O segundo livro foi publicado em 1885 por Engels dois anos
depois da morte de Marx. O terceiro surgiu nove anos depois do segundo (em
1894). Marx era o crítico totalizante da economia e filosofia burguesas e
Engels o mediador histórico, a estipular alvos, o sequenciamento e a dosagem do
antídoto anticapitalista — cuja produção estimulava e geria. Engels recebeu de
Marx os manuscritos incompletos (e é de se notar que a caligrafia é deveras
diminuta e pouco legível) dos livros II e III e dedicou o resto de sua vida a
completar as lacunas, ordenar os fragmentos escritos por Marx e encontrar uma
formulação palpável para as ideias esboçadas pelo autor.
Marx escrevia exaustivamente para pensar seu próprio texto, como
descreveram os principais intérpretes de seu método e aqueles que consigo mais
conviveram intelectualmente, além de Engels (Paula, 2011, Rosdolsky, 2001, Rubel,
1957). A preparação para
O capital pode ser encontrada nas cartas
trocadas entre Marx e Engels, nos cadernos de anotações e no esboço que foi
publicado mais tarde pela primeira versão do projeto MEGA com o título de
Grundrisse
der Kritik der politischen Ökonomie, ou simplesmente
Grundrisse —
que é a base para o árduo trabalho de Rosdolsky em que a arquitetura de
O capital
é apresentada de forma cristalina.
O objetivo do projeto MEGA é recuperar todos os originais escritos por
Marx e Engels (inclusive para que se compare, como faz Michael Heinrich, a
versão de Marx com a versão editada por Engels dos livros II e III de
O
capital, por exemplo) na língua em que foram escritos. Lemos no texto de
Hobsbawm intitulado “A fortuna das edições de Marx e Engels” que o primeiro
MEGA teve por objetivo apresentar uma edição fiel dos manuscritos, já que as
versões disponíveis eram edições ajustadas por Engels às suas necessidades
didáticas. Este projeto teve início com o trabalho de David Rjasanov (1870 –
1938) na União Soviética e foi interrompido logo após sua morte — resultante
dos “Processos de Moscou”, que desencadearam uma purga geral dos intelectuais
russos com o fito de recortar e construir a ideologia oficial do regime
stalinista: o chamado “marxismo-leninismo”.
Engels havia entregue todos os originais ao Partido (SPD), onde ficaram
arquivados. Rjasanov teve acesso a estes textos e fez com que fossem publicados
11 livros dos 42 planejados pelo projeto MEGA. Quando a onda do nazismo se
abateu sobre a Alemanha, foi preciso proteger esses originais — que foram parar
na Holanda via Dinamarca e Reino Unido. Uma companhia de seguros holandesa
adquiriu os originais num leilão e os doou para o IISG (Internationaal
Instituut voor Sociale Geschiedenis). Muitos textos se perderam nessas viagens,
mas estima-se que aproximadamente dois terços dos originais de Marx e Engels
hoje estão em Amsterdam; o outro em Moscou. Além disso, ao longo dos anos,
foram surgindo textos dispersos em leilões.
O projeto MEGA tem como meta publicar 114 livros de textos originais de
Marx e Engels. Os textos foram divididos em quatro frentes: (1) obras exceto
O
capital, (2)
O capital e seu material preparatório, (3) cartas e (4)
anotações. Cada livro significa, na verdade, dois volumes: o volume que contém
os textos originais e o volume que contém o aparato crítico, em que são
apontadas as variantes das edições feitas, em sua maioria adotadas por partidos
de orientação marxista e governos do ex-bloco socialista que avocaram os textos
de Marx como corpo doutrinário.
Originalmente, Kafka escreveu fragmentos de
O processo em folhas
de caderno que foram recortadas e agrupadas em diferentes envelopes. O romance
incompleto foi escrito no período de aproximadamente um ano e interrompido em
1915. Em 1920, Kafka entregou esses originais ao amigo Max Brod que,
contrariando o pedido registrado em testamento de queimá-los, publicou-os em
forma de livro intitulado
Der Prozess em 1925, um ano depois da morte de
Kafka.
O que Kafka e Marx têm em comum, outrossim, é que ambos foram instados a
escrever (e publicar) pelos colegas que mais tarde se tornaram seus editores
porque não concluíram em vida as suas obras. Pode-se dizer que Brod, enquanto
leitor e admirador da escrita de Kafka serviu-lhe de espelho, enquanto Engels
serviu de esteio para a propagação continuada da obra de Marx.
Havia mais de uma editora disputando os direitos autorais e publicações
de obras anunciadas de Kafka e pressionando Brod — que tinha os originais de
Kafka à mão. Max Brod escolheu a editora que lhe ofereceu as melhores condições
e anunciou, um dia após a morte do amigo, que logo seria lançada uma obra de
Kafka que entraria para a literatura universal.
O processo é considerada
sua obra de maior ressonância e é o primeiro romance publicado do autor. Em seu
posfácio à última edição crítica, o editor Reuß faz notar que Brod publicou, na
primeira edição, somente aquilo que conseguiu ordenar, arredondar e encaixar
como capítulos para obter uma coesão e coerência que ele denominou “romance
completo”. O romance era o gênero de prestígio da época e Kafka só tinha
publicado contos. A primeira resenha publicada sobre
O processo
(ironicamente intitulada “A última obra de Kafka”,
Kafkas letztes Werk),
como lembra Reuß (2013), reclama da incompletude do romance e de seu “caráter
fragmentário”.
Mesmo que a ordenação dos capítulos e as lacunas no texto tenham sido
alvo de controvérsias, Max Brod apostou na publicação do método de Kafka de
descrever com precisão as paredes do labirinto em que o personagem se encontra,
obscurecendo o labirinto e sua urdidura; ou seja, adotando o ponto de vista do
personagem que luta para descobrir de que é acusado, por quem e sob qual lei.
Assim como Engels reeditou o livro I e editou os livros II e III de
O
capital, Max Brod editou e reeditou
O processo: na edição de 1935,
foram acrescentados ao conjunto dos dez capítulos cinco fragmentos de texto e
as partes cortadas por Kafka, na de 1946 a grafia do título foi alterada para
Der
Prozeß. Assim como Engels explica nos prefácios dos livros II e III que
interferiu na segmentação, caracterização e ordenação das partes do manuscrito
e na padronização da linguagem, Brod foi acusado de interferir no texto —
inclusive deixando de publicar (partes de) textos do autor cuja obra editava —
justamente porque acreditava no poder da “obra acabada”.
Pouco antes das tropas nazistas invadirem Praga, Max Brod levou os
manuscritos de Kafka à Palestina (tanto Kafka como Brod eram judeus). Antes de
morrer, deu estes manuscritos à sua secretária —que os desmembrou: foi vendendo
escritos até, em 1988, vender o manuscrito de
O processo (dentre outros
textos) num leilão. Conforme matéria de Griebeler (2010) publicada na
Deutsche
Welle, o restante dos textos escritos por Franz Kafka, sobre os quais não
se tem a exata dimensão, foi dado às filhas. A Biblioteca de Marbach am Neckar
comprou o manuscrito de
O processo (além de outros escritos) no leilão,
concentrando assim a maior parte dos manuscritos de Kafka. Depois da morte da
mãe, em 2009, as filhas decidiram vender os manuscritos que estavam em sua
posse à Biblioteca de Marbach am Neckar, desencadeando uma briga judicial com a
Biblioteca Nacional de Israel (que reclamava todos os originais de Kafka com
base no testamento de Max Brod — em que a Biblioteca Nacional de Israel é
mencionada). Em 2012, os manuscritos em posse das filhas foram transferidos
para a Biblioteca Nacional de Israel.
Depois que os manuscritos de Kafka foram depositados na Biblioteca de
Marbach am Neckar, eles se tornaram acessíveis a pesquisadores. Em seguida,
O
processo receberia duas edições críticas, porque se tomava por certo que a
ordenação dos fragmentos era uma questão de interpretação. Na edição crítica de
1990, composta da versão original mais o aparato crítico (em volume separado),
elaborada pelo projeto KKA e dirigida por Malcolm Pasley, observa-se alterações
em relação às edições de Brod.
Em resposta à edição de Pasley, surgiu a edição histórico-crítica de
1997, elaborada pelo projeto FKA e organizada por Roland Reuß e Peter Staengle,
fundadores em 1994 do Instituto de Crítica Textual (ITK) sediado em Heidelberg.
Neste projeto editorial, que declaradamente foi realizado em contraposição à
edição crítica anterior, os editores abandonaram a pretensão de “acabar a obra”
ordenando os fragmentos para oferecer uma versão definitiva. Outra coisa que
foi abandonada nessa edição é o aparato que aponta para as variantes das
edições em relação ao original.
Projetos de edição crítica como MEGA e FKA resguardam obras e autores
que abalaram monopólios interpretativos e estéticos, estabelecendo novos
padrões a partir de si. Os intentos de revisitação integral dessas
contribuições historicamente descortinadoras nada se assemelham a
fundamentalismos a serviço da confirmação de hierarquias rígidas. A presença de
acadêmicos com formação rigorosa e apurada — em conjunto com Fundações,
editoras e organizações relativamente independentes em relação a estruturas
político-culturais detentoras das interpretações “oficiais” dessas obras — tem
viabilizado editorações plurais e críticas que as têm colocado novamente em
linha com o contemporâneo, ou seja, em diálogo profícuo acerca dos caminhos do
mundo e da vida, em um contexto de crises sobrepostas e multidimensionais.
3. De noite em noite
De início, fazia-se referências a um fragmento em sânscrito do livro das
Mil e uma noites, mas não há registro primário dele. Os manuscritos que
geraram todas as traduções posteriores são traduções árabes do persa, mas a
genealogia do livro não aponta para uma versão consolidada das
Mil e uma
noites. Existem manuscritos árabes que são interrompidos na 282ª noite,
assim como manuscritos (com datação mais recente) em que são contadas mil e uma
noites. Contudo, quem imprime seu nome na capa do livro é sempre um editor ou
tradutor, nunca um autor.
A primeira vez que este livro foi lido no ocidente, foi na versão
traduzida para o francês por Galland em 1704. As estórias mais famosas das
Mil
e uma noites (Simbad o marujo, Aladim e a lâmpada maravilhosa e Ali Babá e
os quarenta ladrões) aparecem pela primeira vez nesta tradução — e não foram
encontradas em nenhum dos vários manuscritos árabes disponíveis na época. Além
do número das noites — e portanto de estórias — ter aumentado expressivamente
quando se compara manuscritos árabes do século IX e do fim do século XVIII, as
estórias de Galland passaram a figurar nos manuscritos árabes. Assim como
Engels e Brod editaram os textos que lhes foram confiados, Galland também se
apropriou do material original à sua maneira. Assim como a versão de Galland
foi a mais difundida no ocidente, a primeira edição de Max Brod para
O processo
foi a mais traduzida: a tradução de Modesto Carone para o português, por
exemplo, baseia-se na segunda edição de Max Brod porque, conforme o tradutor
explica no posfácio, não havia, na época, nenhum tratamento editorial
radicalmente novo (os manuscritos somente se tornaram acessíveis depois de
1988).
Borges (1985), em seu ensaio
Los traductores de las 1001 noches, narra
a tessitura, geração após geração, de uma obra imemorial, coletiva e anônima, a
despeito das visões de mundo que cada tradutor do livro procurou transportar
para o livro que compôs. A tradução de Galland deixava transparecer uma clara
preocupação com o decoro e era dirigida a um público leitor sedento pelo
exótico e pelo mágico. Por não ter feito uma tradução fiel (no limite, apenas “fidedigna”,
ou seja, adaptada ao gosto do leitor) do texto, outros se puseram a traduzir a
estória que contém em si mil e uma estórias.
Joseph Mardrus traduziu para o francês a versão considerada a mais
literal — e menos poética — das
Mil e uma noites (cuja publicação saiu
em 1904). Edward Lane, ao traduzir o livro para o inglês (publicado entre 1840
e 1841), deu vazão ao pudor britânico e censurou — anotando sempre o que não
traduzia, em que parte do texto e por qual motivo — todas as cenas por ele
consideradas obscenas. A última tradução que evidencia nitidamente a posição do
tradutor se deu entre 1885 e 1888, quando o explorador Richard Burton
confeccionou a sua tradução do livro com o objetivo de entreter cavalheiros do
século XIX, destacando o colorido bárbaro do oriente.
Há vinte anos foi completada (são quatro volumes publicados entre 2005 e
2012) a primeira tradução direta do árabe para o português, elaborada por
Mamede Mustafa Jarouche, cujo objetivo foi buscar fidelidade ao original —
“matizada aqui e acolá por relativizações de ordem estética” (2005, vol. 2, p.
14) — conforme se lê no prefácio do segundo volume. O prefácio de cada um dos
volumes deixa transparecer a mesma preocupação observada nos projetos MEGA e
FKA de tornar acessível ao leitor o processo de confecção do texto original: os
prefácios e posfácios, as notas nas laterais das páginas ao longo da obra e os
vários anexos são equivalentes ao aparato crítico elaborado pelas edições
críticas. O próprio tradutor explica no posfácio do terceiro volume, que: “optou-se
por dar à estampa um texto o mais possível plural, evitando a rigidez dos
esquemas preconcebidos que congelam a fala de Šahrazād como ‘obra’ dada e
acabada, coisa que ela, claramente, não é. Para este volume, pensou-se em
perseguir outros leques de configuração, legíveis ou ao menos reconstituíveis
por meio de alguns manuscritos ‘incompletos’, todos egípcios, que chegaram aos
dias de hoje, nos quais se evidenciam possibilidades diversas de agrupamento
narrativo.” (2007, p. 363).
Nas edições críticas para
O capital e
O processo e na
tradução de Mamede Mustafa Jarouche, os editores e o tradutor revelam para o
leitor o processo da construção da obra: Marx não escreveu o manuscrito do
livro II do
Capital antes de escrever o livro III e Kafka iniciou
O
processo pelo capítulo intitulado “Ende”. Por fim, Mamede Jarouche utilizou
oito fontes diferentes para erigir sua tradução. Assim, a edição crítica e a
tradução permitem infinitas leituras da obra em processo.
Sherazade garante sua sobrevivência por mil e uma noites (unidade
adicionada a uma ordem de grandeza tal que evoca o infinito) porque deixa
incompletas as estórias na passagem de uma noite para a outra. E na tradução de
Burton figura um conto em que Sherazade narra, como um espelho, a sua própria
estória para o rei, tornando-a circular e infinita.
Referências
ANÔNIMO.
Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafa
Jarouche. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2005, vol. 1.
ANÔNIMO.
Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafa
Jarouche. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2005, vol. 2.
ANÔNIMO.
Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafa
Jarouche. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2007, vol. 3.
ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafa
Jarouche. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2012, vol. 4.
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langjährigen Irrwitz der Editionsphilologie.
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2008. Disponível
aqui. Acessado em 25/04/2013.
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Ficcionario: una antología de sus textos.
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ENGELS, Friedrich. Preface to the first edition. In: MARX, Karl.
Capital.
Vol. 2. Disponível
aqui. Acessado em 24/04/2013.
ENGELS, Friedrich. Preface. In: MARX, Karl.
Capital. Vol. 3.
Disponível
aqui. Acessado em 25/04/2013.
HEINRICH. Michael.
Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels. Exposição
realizada no Curso Livre Marx: a criação destruidora, promovido pela editora
Boitempo no SESC Pinheiros –SP em 22 de março de 2013.
HEINRICH, Michael.
Engels’ edition of the third volume of Capital and
Marx’s original manuscript. Disponível
aqui.
HOBSBAWM, Eric. A fortuna das edições de Marx e Engels. In: HOBSBAWM,
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Zu diesem Faksimilenachdruck. Heidelberg, 2008. Disponível
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Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx.
Tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 2001.
RUBEL, M.
Karl Marx: Ensayo de biografía intelectual. Tradução de
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