Sete poemas de “Animal de bosque” (2021), de Joan Margarit
Por Pedro Belo Clara
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Joan Margarit. Foto: JM Website |
sem sairmos de casa, tu e eu lembrámos
a neve onde encontrámos o nosso amor.
Ainda mal nos conhecíamos
e passámos o dia até de madrugada
a passear pelas ruas iluminadas
por uma branca luz, cálida e fria.
E descobrimos uma nova intimidade
pelos dois até então desconhecida.
A tua mão, enluvada na minha,
tinha começado a salvar-me a vida.
Passaram já sessenta anos,
luminosos e escuros: mesmo nos mais duros
sentimos o calor dessas ruas nevadas.
Neste último também, quando, debilitado
pelo linfoma e pela químio que não me cura,
com o mesmo sorriso, e ao meu lado,
me ajudaste a compor estes poemas.
Ofereço-tos agora.
Este é para mim um dos anos
mais felizes da minha vida.
observar os retábulos de igrejas,
quadros representando cenas bíblicas,
monarcas a cavalo, luxuosas vestes
onde o pintor se exibe em cada prega,
muito escondida a besta. Gosto das pinturas
onde posso observar os homens e as mulheres,
amiúde pobres, nos seus próprios mundos
de interiores tranquilos,
ora a trabalhar, ora a descansar.
Compreensivas e cruéis, libertam-me as de Brueghel,
a glacial claridade dos flamencos.
A educada desordem dos impressionistas,
e as raras mulheres, tristes e sombrias,
pintadas por Nonell.
A solidão de Hopper, Balthus, Freud,
Paula Rego e Bacon. É possível
que nunca mais os veja, mas estão em mim
como a roupa branca dobrada no armário.
para uma ampla paisagem de sequeiro.
Nunca mais esqueci o maravilhoso instante
de aplaudir a água da ribeira
que o avô, levantando a pequena comporta,
deixava penetrar na horta, por onde se espalhava
pelos canais abertos com a enxada.
A alegria vem-me da pobreza.
Às vezes, na ampla, embora áspera,
paisagem de sequeiro desta minha idade,
pressinto os olhos desse menino perguntando-me,
sorridentes, confiantes, se já chegámos
aonde lhe disse que haveríamos de ir.
O que nunca ninguém encontrará:
tectos onde deixámos olhares de dor,
vozes que ficaram, caladas, nas paredes.
A casa organiza o futuro esquecimento.
De súbito, uma corrente de ar e uma porta
fechando-se com uma pancada seca, como um aviso.
Somos cada um a sua casa, a que para si ergueu.
E que no fim fica vazia.
(… estando ya mi casa sosegada. — San Juan de La Cruz)
por se assemelharem tanto a nós.
Como eles também nós acabaremos
transformados em meros punhados de pó:
é o que resta daquela luz longínqua,
muda e enorme, de onde viemos. E, porém,
a vida só se nos pode tornar
mais verdadeira com o tempo,
mesmo que seja duro e alto o preço.
Se calhar é isto o mais nobre
que a velhice nos reserva, pois depende
do quão escura for a nossa alma.
E acaba aqui a intuição:
afirmo que a minha mente
jamais me deixará voltar
aos sítios onde achava que ia
e que nunca existiram.
E que subitamente envergonharam
a minha solidão de rato.
para compreender a profundidade do que significa
deixar de existir. Comparava-o
ao desinteresse, ao esquecimento, ao sono profundo,
às casas onde um dia vivemos e aonde nunca mais voltámos.
Pensava que isso é que era compreender,
que me ia libertando do enigma.
Mas ainda estava muito longe de saber
que não me liberto. Liberta-me a morte:
indiferente, ela permite
que me abeire de alguma verdade.
Inexplicavelmente, isto comove-me.
há quinze ou vinte anos, e ainda
recordamos o seu amor de juventude,
a guerra, as prisões, as fugas para França.
Porém, houve também mortos mais jovens:
a Marta — a tua irmã, que te deixou sozinha —
e mais tarde — aos trinta anos — a nossa filha.
Enquanto éramos um homem e uma mulher
razoavelmente jovens, depreendíamos
que com as nossas testas, tão cheias de vida,
enchíamos de luz aquela escuridão.
o silêncio e a escuridão
— tendo ou não estrelas —
são o início e o fim da vida.
É um tempo no qual as palavras esperança
e sonhos não nos trazem consolo nenhum:
o consolo vem de uma severa calma
que surge de amar a vida inteira.
Começo a sentir que há uma paz íntima
a iluminar os nossos mortos.
Sorriem-nos quanto dão as boas-vindas.
***
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