O abismo de São Sebastião, de Mark Haber

Por Pedro Fernandes


Mark Haber. Foto: Nina Subin


Mark Haber se mostra com O abismo de São Sebastião um escritor fascinante devido sua capacidade inventiva de forjar todo um universo no interior daquele que já conhecemos fazendo da ficção não uma extensão da realidade, como é recorrente na literatura, mas uma realidade autônoma porque crível e sustentável pela sua própria estrutura. Essa qualidade é alcançada pela maneira sutil de se infiltrar na ordem histórica como conhecemos, sem o interesse de desarticulá-la, mas de mostrar como suas engrenagens, fruto das relações humanas, se organizam e constituem o que percebemos com o valor de verdade.
 
O entrecho narrativo é simples, mas não as possibilidades de leitura, sempre a depender de como o leitor se inicia no texto ou dele coloca em evidência certos extratos de acontecimentos. Trata-se do convívio entre dois críticos de arte unidos, separados e talvez reunidos, em torno de um interesse obsessivo: uma tela de aproximadamente trinta por trinta e cinco centímetros pintada pelo conde Hugo de Beckenbauer e patente no acervo do Museu Nacional de Arte da Catalunha, em Barcelona.
 
O narrador jamais referido pelo nome recebe o breve e-mail de nove páginas que encerra um chamado desse amigo, de quem se afastara há muito por, aparentemente, uma opinião controversa em relação a um dos pontos de vista em convívio entre dois. O que disse para abalar uma intrincada e firme amizade é parte de um desses segredos capazes de mobilizar a curiosidade do leitor pela descoberta, da mesma maneira que se existiu ou não o reatar da amizade uma vez que acompanhamos o narrador atendendo ao pedido do amigo e em viagem a Berlim, por isso não vale revelar por aqui. Basta dizer, em relação ao primeiro segredo, que é coisa pequena demais, infantil até, que não se sustenta como a faca do corte de amizade, sobretudo numa narrativa monológica, isto é, em que a primeira pessoa não concede voz ao outro e que toda voz existe para justificar o seu próprio ponto de vista.
 
Uma vez tocarmos nesses dois assuntos, a obsessão e a amizade, cabe nos fixarmos em um dos fios de leitura dentre os aventados possíveis: a arte como mediadora do convívio e da intriga, da união e da separação. A relação entre o narrador e Schmidt principia quando os dois, descobrem a pintura de Beckenbauer na quarta capa de um livro didático em um curso na Escola de Arte Ruskin de Oxford. Devotados ao mesmo interesse, os dois constroem uma sólida carreira como críticos pela redescoberta e o estabelecimento de uma relevância para um ponto até então ignorado pela história da arte.
 
Além desse interesse, os dois homens de Oxford são irmanados por outro assunto: o apocalipse ou o fim do mundo, um fascínio que se encontra num dos motivos da tela de Hugo Beckenbauer. Este e o assunto referido anteriormente, mobilizadores do estreito convívio, constituem, como certo princípio essencial às artes no geral e mesmo à crítica — igualmente criação como se demonstra no feito dos especialistas —, uma obsessão. Sem ela, o atormentado artista alemão jamais chegaria a pintar O abismo de São Sebastião e nem os seus intérpretes alçariam outro espaço na história da arte para esse quadro.
 
Não vale esquecer que toda obsessão facilmente contorna as fronteiras do obsedante. E é neste ponto que o narrador de Mark Haber se encontra, interessado, descobrimos, não em compreender os limites entre essas duas coisas, mas se sobressair delas ao construir sua imagem um pouco acima da imagem do amigo incapaz de falar porque morto. Ora, isso explica em parte por que se dedica a explorar toda uma vida devotada a manter a relevância da obra de Beckenbauer na história da arte: o de se afirmar como a autoridade máxima no assunto, esta que entende, de alguma maneira, ter sido conspurcada pelo amigo europeu.
 
É notável que apenas Schmidt se mostre como um sujeito marcadamente difícil porque arrogante ao ponto de desconsiderar (ou considerar com bastante ressalvas) tudo o que não for O abismo de São Sebastião; todo aquele inapto para a arte, especialmente os que ignoram a arte do medievo para devotar sua atenção para o lixo produzido pelas vanguardas, pela arte moderna e contemporânea; todo crítico incapaz de saber se posicionar entre a atividade de apreciar e a de estudar uma obra de arte e defender seu ponto de vista acima das opiniões vulgares de não-especialistas. O narrador examina como a obsessão converge para a fidedigna e a alta criação, mas como, ao alcançar a autoridade, pode logo se converter em autoritarismo. Mas, ao dizer do outro, o narrador revela de si.


 
Não podemos ignorar a imensa sala de espelhos que é este romance. Um narrador pinta a imagem de seu amigo ao mesmo tempo em que revela a biografia do artista em comum para os dois e ainda a obra que retifica o curso das artes plásticas. E é numa passagem de exame dessa obra que encontramos um indício, o primeiro talvez, que justifica o que dissemos acima: “Teria o conde Hugo Beckenbauer incluído a si mesmo em O abismo de São Sebastião como o apóstolo central? Seria O abismo de São Sebastião, com seus portentos do apocalipse, suas fogueiras esparsas, sua troça supraterrena de temas bíblicos, uma espécie de autorretrato?” Essas não são questões que passam pelo interesse desses críticos. Elas são retomadas pelo narrador como parte do argumento do crítico francês Tristan Molyneaux desenvolvido em Os pecados dos santos de Hugo, responsável por um ataque de fúria de Schmidt.
 
Interessa, entretanto, o motivo autobiográfico que nem é o que Schmidt ataca em Molyneaux, mas é o que chama a atenção do narrador a ponto de fixá-lo no seu relato; a suspeita do estudioso francês uma vez tomada pela narrativa monológica do narrador de Haber entrega o próprio disfarce por ele assumido no desenvolvimento do retrato do amigo. Algumas sutis acusações — e outras nem tanto, como a responsabilidade de Schmidt no fim dos dois casamentos do narrador — e a tomada de posse de alguns gestos, como quem primeiro despertou a atenção para o ignorado quadro de Beckenbauer timidamente reproduzido no livro didático, são qualidades que revelam mais do próprio narrador que do amigo. No fim, o narrador é o que diz de Schmidt — e de Beckenbauer, refeito com todas as tintas de uma biografia torturada, atormentada e sublime do artista que também é um pouco do próprio amigo. Se não, neles se prospecta.
 
Aliás, várias outras passagens a seguir, demonstram a validade de nossa leitura, como o belíssimo e pungente capítulo 57, onde se descreve o encontro à distância entre os amigos já com longo tempo de amizade cindida; a passagem é extensa, mas vale a leitura, certamente:
 
“Estudei Schmidt, as costas arqueadas, o caderno de notas a seus pés. Schmidt tinha envelhecido; vi uma bengala por perto, presumi que era dele, e de repente percebi quanto tempo havia se passado, o que significava, é claro, quanto o tempo que nos restava de vida havia diminuído. Em sua corcova vi o futuro que nos espera a todos, a calada hesitação em cada gesto, o pé tateando o chão cautelosamente, experimentando o solo como se fosse a água de uma banheira, garantindo que o chão, e, portanto, a terra, era firme. Schmidt era só dois anos mais velho do que eu, mas as enfermidades que ele havia muito sofria tinham acelerado seu envelhecimento, e se eu via o fim do mundo em O abismo de São Sebastião, eu via minha própria mortalidade na silhueta corcovada de Schmidt, a sombra quebradiça que tremia pelo chão feito um passarinho.”
 
Ou ainda, quando o narrador descreve um dos encontros dolorosos em que o convívio entre Schmidt e a segunda esposa do narrador, também uma crítica de arte mas especializada em arte moderna, recendem o pior do embate. Dessa vez, ela ri inexplicavelmente do amigo do marido — “quanto insisti que ela me contasse o que achara tão engraçado, minha segunda esposa gritou, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo: Ele! Ele! Ele é um homem absurdo, ela disse, e quanto mais sério fica, mais absurdo se torna. E lá dentro eu senti que ela expressava sua opinião tanto de Schmidt como sobre mim, que aquela era a avaliação que fazia do marido depois de oito anos de casamento, oito anos em que andei grudado em Schmidt e exaltando Schmidt e acreditando que a arte com que nós, isto é, Schmidt e eu, nos importávamos era mais importante e imponente do que a arte com a qual ela se importava.”
 
Entre esses vínculos encontramos sempre a obra de arte, que é — o título do livro reforça isso —, a protagonista do romance. É por meio de O abismo de São Sebastião que o narrador, um apaixonado pelo jogo entre luz e sombra na pintura renascentista, desenvolve o relato do profícuo e difícil convívio com Schmidt, deixando entrever certo ressentimento silencioso devido ao papel de sombra do amigo, principalmente quando, publicamente a imagem transparente passa a ser essa. A obra de Hugo Beckenbauer (e não apenas o próprio artista) desempenha um papel essencial no desenvolvimento das personas assumidas por esses dois críticos.
 
É a primeira mulher do narrador, que segundo ele, trata Schmidt como um “punheteiro, escroto, chato do caralho”, quem chama atenção para o comportamento performático do crítico; para ela a torrente de emoções que Schmidt se diz possuído diante da tela no museu de Barcelona é apenas engodo para se afirmar como o que melhor acessa os sentidos da pintura. A partir disso, observamos como os dois assumem numa rivalidade controlada uma competitividade pela originalidade da leitura do objeto artístico e como, por mais que se esforce, o ponto de vista do narrador seria sempre o mais ingênuo porque prescinde de alguém educado numa cultura ainda destituída do peso histórico de uma tradição, como é a educação cultural de Schmidt.
 
Nesse embate questionável entre o valor da cultura, Mark Haber resgata a rivalidade estabelecida entre duas partes do ocidente. Mas, se deixarmos de lado a ambição estadunidense do nunca alcançado domínio artístico, descobriremos que as rivalidades no campo das artes estão alimentadas por outros princípios fora da concorrência individual pelo ponto de vista mais assertivo. Quer dizer, existe um componente histórico que se invoca toda vez que a arte dominante é confrontada ou mesmo, como é o caso aqui, quando é mais bem reconhecida pelo crítico fora dos domínios culturais aos quais filiam determinada obra.
 
Outros vícios recorrentes no universo das artes são revistados no truncado desenvolvimento de compreensão dessa amizade — e truncado porque Haber se vale da excessiva repetição, dos volteios linguísticos, de uma escrita que parece a todo tempo correr à sua própria volta para parecer objetiva e clara no que diz. O jogo de egos que acompanhamos é apenas um deles; os autoritarismos demonstrados ou velados, outros.
 
Mas, como o valor artístico deixou de ser uma qualidade inerente à obra para ser construído por outros componente exteriores, sendo a crítica e o material por ela produzido um deles e os múltiplos embates que essa crítica travou, incluindo o impasse entre arte elevada e arte baixa encontrado na própria obra de Hugo Beckenbauer em que o sublime O abismo de São Sebastião entra em conflito com outras duas pinturas do mesmo artista mas de qualidade abominável também se revelam no romance. Este é, possivelmente, o assunto mais reportado quando se discute a obra literária aqui destacada, porque estamos vigiados pelo espírito do nosso tempo, que, se não é medíocre como sublinha Schmidt, é perigosamente relativista.
 
O abismo de São Sebastião, o romance, provoca os vícios do elitismo, é verdade. Também é igualmente verdadeiro que nos provoca numa via contrária, quando se passou a escapar das mínimas linhas racionais com as quais conseguíamos observar criticamente os objetos artísticos para admitir que qualquer produto se imbuído da vontade criativa do seu autor ou se esta foi atribuída pelo seu espectador constitui um objeto artístico — ou ainda, que qualquer um pode produzir e significar um objeto artístico. Schmidt é arrogante ao demarcar Cézanne e o ano de 1906 como o ponto final da pintura, mas é sincero ao admitir que a pulverização dos valores estéticos, em parte convertidos em valores subjetivos e ideológicos, e a hipervalorização do contemporâneo apenas criou a estéril Babel que se tornou a arte em nosso tempo.
 
O romance de Mark Haber é claramente uma pedra arrastada para o centro da encruzilhada do nosso tempo. Ao engendrar um universo puramente ficcional que se hospeda entre as frestas do puramente histórico e nele se firma com luz e vida própria recobra-nos a necessidade de não descuidarmo-nos do passado porque nele ainda estão as melhores surpresas para a monotonia natural do presente; que a qualidade da obra reside nela própria e é a crítica, igualmente criativa, a matéria capaz de expandi-la apontando que, no nosso constante apocalipse, o melhor de nós é a ilimitada capacidade de criar os objetos com os quais forjamos nossa realidade com um sentido fora das estéreis diatribes dos sistemas de domínio e dos nossos vícios.


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O abismo de São Sebastião
Mark Haber
Fábio Bonillo (Trad.)
DBA, 2023
192 p.

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