“Poética” ou “Cantos intermediários de Benvirá” — convite à leitura e breve esquema
Por Lucas Paolillo
A rosa do povo mora
dentro do meu coração;
escuta, bem, que a viola
viola tua intenção;
e a rosa do povo mora
dentro do teu coração
Se a rosa do povo mora
dentro do teu coração
Se a viola que viola,
viola, da história, o vão,
ilumina-se a memória,
fortalece-se a razão
fortalece a tua história
dentro do meu coração
— Geraldo Vandré
dentro do meu coração;
escuta, bem, que a viola
viola tua intenção;
e a rosa do povo mora
dentro do teu coração
Se a rosa do povo mora
dentro do teu coração
Se a viola que viola,
viola, da história, o vão,
ilumina-se a memória,
fortalece-se a razão
fortalece a tua história
dentro do meu coração
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Geraldo Vandré. Foto: Leo Caldas |
Depois da deferência, Malnic dá prosseguimento às flores em
vida com uma interpretação multifacetada: um pequeno pot-pourri das
criações do compositor. No interior dela, canções, versos declamados e o motivo
instrumental de uma peça de piano. No gesto ao qual não se
deveria furtar o adjetivo de carinhoso, o esforço de iluminar não as criações
ofuscadas e repisadas à exaustão, mas a parte do universo reiteradamente
encoberta pelas caricaturas: “Canção primeira”, gravada pelo compositor na
França em decorrência do exílio (também gravada por Xangai), abriu alas para
declamação e canto de “Soberana” e “Rosa do povo”/ “São Paulo (mais que meu
amor)”, duas faces da mesma moeda: o lado “cara”, “Soberana”, um poema conhecido, pois
declamado por Vandré ao lado de Joan Baez em 2014, e o lado “coroa”, “Rosa do povo”/ “São Paulo (mais que meu amor)”, a sua
parte-canção, conhecida pela gravação de uma apresentação de Alquimides Daera.
O motivo, na voz do autor, é simples: “Geraldo Vandré é paulista. Me chamo
Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o Geraldo Vandré foi inventado em São Paulo.”
Na capa do livro, mais
rebatismos: os tais Cantos Intermediários se tornaram agora Poética.
Sobre os seus versos, quem se aventura a reconhecer o universo de Vandré sabe
que ele definiu a si, quanto às atividades artísticas desempenhadas, como “um
profissional de palavras”. Dali mesmo, ainda em 2018, Lau Siqueira concedeu um
depoimento no qual assinalava, surpreso, a vocação recitativa, espontânea, de
Vandré: “Um artista que guarda na memória longos poemas de Vinícius, José
Régio, Carlos Pena Filho e dele mesmo”.
Do profissional das palavras, a
força dos versos. Versos, digamos, de servidor. Um ponto de partida para nos
introduzirmos à importância das palavras para Geraldo Vandré. A começar, é
claro, por Guimarães Rosa. Fonte seminal para “Modinha”, “Réquiem para
Matraga”, “Cantiga brava” e “Disparada”. Pablo Neruda, combinação interessante
de se ter em vista ao lado do contágio roseano, é outra de suas referências
importantes. Não é à toa que há homologia entre os títulos do famoso livro de
versos do poeta chileno e o do álbum de nosso cancionista: Canto geral.
Ainda nos anos sessenta, Bertolt Brecht marcou presença na contracapa deste Canto
geral e, anos antes, Luís de Camões estampou Hora de lutar.
Outra meditação
literária de Vandré que vale menção foi a versão musical (até onde se sabe,
jamais gravada) do poema “O medo”, de Carlos Drummond de Andrade, a pedido de
uma companhia de balé nos anos sessenta. Ainda em Drummond, como vimos, não é
raro encontrarmos outro punhado de homologias quanto ao recurso à imagem da
“rosa” e do “povo”. Rosa do povo entrelaçada às veredas de Rosa. Canto geral em
anseios e campos gerais de Geraldo. Pistas importantes. Corta. Uma ruptura
irreversível de época depois, já nos anos oitenta, reinstalado em São Paulo
após o exílio, uma reportagem de 1978 sobre o criador dos versos é escrita por
Assis Ângelo. Nela, flagrou-se algo nessa direção: na casa do entrevistado,
havia duas máquinas de escrever — uma delas “só escreve em chileno” e outra “só
escreve em brasileiro”. Além disso, notícias dos livros à vista: “na estante
embutida, alguns livros de Jurisprudência, Poesia e Teatro. Dois autores se
sobressaem: Fernando Pessoa e Máximo Gorki”.
Vandré, como todo bom
poeta, é fingidor — ainda que um fingidor-servidor ou um servidor-fingidor.
Pano para manga. Versos em canções, sim, mas também presentes na teatralidade da
vida ou postos no papel: “Na voltada praia / da morená / fui um passageiro /
que se viu passar; / escutei, maneiro, / pra depois cantar; / e além de
cultivar / o verso preferido; / e além de me alcançar / sereno e prometido, /
devo deixar as marcas / no papel sem pauta / que mandei comprar / com
abatimentos, / por conta da simpatia / do dono do armazém”.
Mas não só. Se a sua guitarra não
era elétrica — vale mencionar, contra o estereótipo, que Vandré demonstrou
grande admiração, nos tempos de exílio, ao músico Santana —, as rádios nas
quais cantou, a televisão na qual ganhou intimidade com as câmeras, os estúdios
de gravação ou mesmo o microfone capaz de amplificar a sua voz, os violões e a
viola caipira etc. continuavam, bem ou mal, a ser elétricos. Output
direto que o conectou ao interior da tal cultura de massa, timbres unidos ou não
— um ponto a ser desenvolvido. Vandré, como Chico, Caetano, Milton, Nara e outros
mais, foi artista multimídia em era multimídia. Condição à qual, diferentemente
dos outros, não tardou a deixar para trás — seja por motivos de anistia mal
posta, derrota política, sensatez à mudança dos ventos, acordos misteriosos
posteriores ao retorno, declinação à cultura de massa ou seja lá o que for.
Mas voltemos ao volume de versos. Cantos
intermediários de Benvirá, ou Poética, se preferirem, é o único
livro publicado por Geraldo Vandré até o presente instante no Brasil e alhures.
Seus versos, em boa parte, foram escritos antes do período do exílio — é o
caso, por exemplo, de “Marisa”, recitada na apresentação de 1968 em Goiânia. Numa nota da época do exílio anos depois publicada em jornal, há informações sobre o período da escrita se estender ao Chile: “Na verdade, não sei o que fazer. Em Santiago do Chile, num tempo e num espaço ideal para férias, em busca de trabalho. Por hábito, escrevo. Não sei para quem, mas escrevo. Fiquei essencialmente louco ou abstrato para entender-me com o meu próprio tempo e por isso mesmo, além do mais, espero. O verdadeiro perigo de tudo está em que me surpreendo falando com os pássaros, de repente, de que pensando de tal modo no futuro, esteja me perdendo no passado, simplesmente. Dame las alas para volar hacia las puertas de tu corazón.”
Como é
sabido, seu contexto primeiro de publicação, que já data de mais de meio
século, foi dos mais turbulentos: corresponde ao período imediatamente anterior
ao controverso e obscuro retorno do cancionista ao Brasil. Tanto a data de
publicação do volume quanto o pouso no Aeroporto do Galeão se deram naquele
mesmo mês de julho de 1973. Já não é mais segredo, depois de três biografias
publicadas a seu respeito, que Vandré enfrentou momentos dos mais delicados
fora do país: foi deportado do Chile por conta de uma apresentação televisiva
irregular, foi deportado da França por porte de haxixe e, de volta ao Chile,
depois de desfeito seu segundo casamento, necessitou de intervenções psiquiátricas.
Os versos contidos no livro, no entanto, vão na contramão do desespero — com
exceção de “Socorro, a poesia está matando o povo” — e se apoiam numa espécie
de contradança entre esperança e memória, atenta a certo sentimento íntimo à
partilha e ao pertencimento: “Sou forte de nascimento, / sou claro de
sentimento”. Nesse sentido, parte das
composições presentes no álbum Das terras de Benvirá (gravado em 1970 na
França, mas lançado no Brasil em 1973) — como “A canção primeira”, “Maria
memória da minha canção” e “Bandeira branca” (letra que tem intertexto com a
quinta parte do poema “Lembrança”) — guarda afinidade, em seus versos, com a
proposta do livro.

Sugerimos que a imagem do
sonho não trata de um expediente acidental, mas de um recurso expressivo da
relação entre o ser no mundo e o seu manancial íntimo. O qual é composto pelas
determinações divididas a seu redor. Para tanto, recorremos, a título de
abreviação, a um mesmo verso mobilizado por Vandré na segunda estrofe de “Zé
das Graças Pereira”, repetido em “República brasileira”: “maduro no despertar”.
Este espaço íntimo, resguardado ao onírico, surge como janela de
amadurecimento, uma possibilidade de formação, capaz de preparar rumo à
transformação do posto no mundo. Este amadurecer no despertar, sonhado o sonho,
dialoga, através dos versos, com outra esfera de cuidado, como procuramos
assinalar: o cultivo paulatino do relicário pessoal de lembranças. Estas são
tomadas, via de regra, a partir das relações, por definição irreversíveis, do
ser e estar de cada um no tempo. Um passo além, elas aparecem como acumulação
involuntária da vida, distribuída irregularmente, e que por isso merece ser
honrada. Ciente de que tudo aquilo tocado pelas retinas também as toca de volta
na jornada esgotável da vida. Acompanhemos, tendo isto em mente, alguns dos
versos de “Lembrança”: “Os bens da vida reparti com todos / e muitos se
perderam para que eu chegasse. / Vivi contigo as honras do meu tempo / sem
moral, além das esperanças; / e parto agora porque tenho tempo / e aumentadas
as minhas lembranças”.
No lusco-fusco entre o geral e o
íntimo, neste cultivo da vida compartilhada enquanto tempo repartido, há toda
uma profusão de figuras e imagens espalhadas pelo livro. Bem como diversas
soluções apresentadas a cada poema. Na abertura de “Olha de frente o sertão”,
por exemplo, o desfecho é o mais trágico possível: um assassinato motivado por
traição. No encerramento do livro, por outro lado, o poema “Aos que vão comigo
e com quem vou ficar” diz: “que eu levei bastante para sempre plantar”. Tendo o
leque aberto dessa tendência em mente, acreditamos que valha a pena chamar
atenção para uma das figuras presentes no volume capaz de articular tais
dimensões à noção de futuro com a qual flerta. Falamos na imagem do
“ante-poema” como proposta de sensibilização ao devir e à intervenção. Ela
oferece uma entrada para compreender o lugar da disputa, dos conflitos, em
suma, do espaço destinado aos interesses na poética.
Em “Socorro, a poesia está matando
o povo” (também título de sua turnê na ocasião da proibição de “Pra não dizer
que não falei de flores”), fala-se em certo déficit de alumbramento responsável
por cobrar um preço dos mais caros à vida, de modo a deformar tanto o presente
quanto o futuro: “Socorro, socorro, / grita por dentro e no areião, / a
poesia-solidão, / ou melhor, então, / o ante-poema feito grão, o coração”. A
mesma imagem, agora sem hífen, estampa um título repleto de significações a
respeito dessa compreensão do próprio tempo: “ante poema plagiário e
hemiplégico”. Se não bastasse a condição prematura de “ante poema”, o vislumbre
fugidio dessa sua presença no presente sugere algo de teratológico: a forma não
se liberta do repetido e se apresenta como paralisada pela metade. Ocorre que,
para o seu entendimento, conforme viria a escrever e declamar reiteradamente
anos mais tarde, o futuro talvez deixasse a desejar com relação ao lugar da
beleza: “Vivemos numa sociedade em que a beleza cumpre uma função secundária e
dispensável. As pessoas que vivem da beleza, os denominados artistas, têm,
portanto, uma função secundária e dispensável, dentro dos padrões de utilidade
e necessidade social. Este é talvez um processo concreto de desprezo da beleza,
sem a qual não existe homem feliz”.
Cantos intermediários de
Benvirá, ou Poética, propõe, a seu modo, uma “ante posição” em seu
tempo a este processo de desprezo da beleza. E agora que compõe artigo para o
relicário de memórias geral.? De certo, as características que pinçamos no esquema
dedicado ao movimento de sua poética não foi muito generoso ao livro. Para
Geraldo Vandré, ele teria ficado datado? Na opinião dele, emitida na ocasião do
lançamento em João Pessoa, não. Ele os considera “atemporais”. Seja como for,
para nós, o testemunho do e no livro vai muito além dos documentos sobre o seu
autor. Para além da importância biográfica, que existe e é necessária, ele
guarda em si por extenso a régua e o compasso do universo dos versos
de Vandré — esse híbrido curioso entre marca e sonho popular, capaz de fazer
história ao remexer e retrucar tantas esperanças. Assim, falamos em pistas
próprias ao funcionamento interno de seus versos, daquilo que nos apresenta e
comove. Conhecer o livro de perto é, de certo, fonte profícua para fazer o que
Beatriz Malnic sugeriu em sua apresentação: tomar Vandré para além da
caricatura. Nesse sentido, tanto o criador quanto suas criações guardam ainda
muitos segredos capazes de dar o que falar.
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