“Poética” ou “Cantos intermediários de Benvirá” — convite à leitura e breve esquema

Por Lucas Paolillo
 
A rosa do povo mora
dentro do meu coração;
escuta, bem, que a viola
viola tua intenção;
e a rosa do povo mora
dentro do teu coração
Se a rosa do povo mora
dentro do teu coração
Se a viola que viola,
viola, da história, o vão,
ilumina-se a memória,
fortalece-se a razão
fortalece a tua história
dentro do meu coração
 
— Geraldo Vandré

Geraldo Vandré. Foto: Leo Caldas


No último dia 27 de março, Beatriz Malnic se apresentou no Bourbon Street Music Club, em São Paulo, junto ao grupo vocal Brazilian Voices. Na plateia, logo na primeira fila, um senhor de cabelos brancos e longos, cabisbaixo, bem-vestido e de boné, estava sentado próximo ao palco. A certa altura da apresentação, Malnic apresenta-o aos presentes: “Queria agradecer a presença sua, Geraldo Vandré, aqui.” O antigo compositor paraibano, do alto dos seus 89 anos, acena à plateia e é aplaudido de pé por alguns minutos. 

Depois da deferência, Malnic dá prosseguimento às flores em vida com uma interpretação multifacetada: um pequeno pot-pourri das criações do compositor. No interior dela, canções, versos declamados e o motivo instrumental de uma peça de piano. No gesto ao qual não se deveria furtar o adjetivo de carinhoso, o esforço de iluminar não as criações ofuscadas e repisadas à exaustão, mas a parte do universo reiteradamente encoberta pelas caricaturas: “Canção primeira”, gravada pelo compositor na França em decorrência do exílio (também gravada por Xangai), abriu alas para declamação e canto de “Soberana” e “Rosa do povo”/ “São Paulo (mais que meu amor)”, duas faces da mesma moeda: o lado “cara”, “Soberana”, um poema conhecido, pois declamado por Vandré ao lado de Joan Baez em 2014, e o lado “coroa”, “Rosa do povo”/ “São Paulo (mais que meu amor)”, a sua parte-canção, conhecida pela gravação de uma apresentação de Alquimides Daera. O motivo, na voz do autor, é simples: “Geraldo Vandré é paulista. Me chamo Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o Geraldo Vandré foi inventado em São Paulo.”
 
Depois, Malnic emendou excertos das cantilenas retiradas das seis peças de piano que compõem Capitania de Wanmar, projeto erudito de autoria de ambos, Vandré e Malnic, apresentado pela primeira vez em São Paulo, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, ao final de 1987. Por fim, o contraponto vocal “À minha pátria”, também conhecido por “Pátria amada, idolatrada, salve, salve” e “Canto 3º” — três títulos para a mesma canção, sendo o primeiro deles o batismo mais recente (o que diz algo) —, inscrita no Festival Internacional de Agua Dulce, em 1972, no Peru, e defendida na ocasião por Manduka e Soledad Bravo. Finda a homenagem no Bourbon, outros números vieram. Entretanto, a cantora e pianista deixou no ar um retrato fresco e anticaricato do artista homenageado. Ainda no ar, um recado: Vandré é um criador que continua desconhecido. Distanciado do circuito comercial há mais de meio século, suas criações cultivaram independência daquela mediação sua algoz: a cultura de massa.
 
Sete anos antes, no já longínquo 2018, mais criações de Geraldo Vandré ganharam a luz de palcos e telas. Vandré e Beatriz Malnic, outra vez a dupla, deram vida a um punhado dessas novas facetas em pauta e verso. Em conjunto com o governo do estado da Paraíba, representado pela pessoa de Lau Siqueira, o recital Música e Poesia da Capitania de Wanmar serviu ao público um cardápio multifacetado: duas canções até então desconhecidas na voz de seu autor — “Canta Maotina” e “À minha pátria” — entremeadas por versos de poemas acamados à base de uma só viola, rastilhada por Alquimides Daera. Depois, o prato da casa: a execução dos seis estudos de piano, junto a três canções — sendo uma delas inédita (“Mensageira”) —, interpretadas pela Orquestra Sinfônica e pelo Coro Sinfônico da Paraíba. E, claro, a apresentação de “Pra não dizer que não falei de flores (Caminhando)”, com Vandré cantando ao final, momento em que se deu aquele famoso episódio da faixa.
 
De quebra, somado a tudo isso, um discreto acontecimento (aquele que mais nos interessa no momento), ocorrido pouco menos de um mês depois: a impressão, em pequena tiragem, de Cantos Intermediários de Benvirá, livro de poemas lançado no Chile em 1973. Jamais publicado no Brasil até então, seus exemplares eram praticamente inacessíveis. Graças à reedição, primeiríssima em solo brasileiro, e torcemos para que não seja a derradeira, os textos do cancionista desceram alguns degraus em condição. De inacessíveis, se tornaram apenas raridade. 

Na capa do livro, mais rebatismos: os tais Cantos Intermediários se tornaram agora Poética. Sobre os seus versos, quem se aventura a reconhecer o universo de Vandré sabe que ele definiu a si, quanto às atividades artísticas desempenhadas, como “um profissional de palavras”. Dali mesmo, ainda em 2018, Lau Siqueira concedeu um depoimento no qual assinalava, surpreso, a vocação recitativa, espontânea, de Vandré: “Um artista que guarda na memória longos poemas de Vinícius, José Régio, Carlos Pena Filho e dele mesmo”.
 
Do profissional das palavras, a força dos versos. Versos, digamos, de servidor. Um ponto de partida para nos introduzirmos à importância das palavras para Geraldo Vandré. A começar, é claro, por Guimarães Rosa. Fonte seminal para “Modinha”, “Réquiem para Matraga”, “Cantiga brava” e “Disparada”. Pablo Neruda, combinação interessante de se ter em vista ao lado do contágio roseano, é outra de suas referências importantes. Não é à toa que há homologia entre os títulos do famoso livro de versos do poeta chileno e o do álbum de nosso cancionista: Canto geral. Ainda nos anos sessenta, Bertolt Brecht marcou presença na contracapa deste Canto geral e, anos antes, Luís de Camões estampou Hora de lutar.

Outra meditação literária de Vandré que vale menção foi a versão musical (até onde se sabe, jamais gravada) do poema “O medo”, de Carlos Drummond de Andrade, a pedido de uma companhia de balé nos anos sessenta. Ainda em Drummond, como vimos, não é raro encontrarmos outro punhado de homologias quanto ao recurso à imagem da “rosa” e do “povo”. Rosa do povo entrelaçada às veredas de Rosa. Canto geral em anseios e campos gerais de Geraldo. Pistas importantes. Corta. Uma ruptura irreversível de época depois, já nos anos oitenta, reinstalado em São Paulo após o exílio, uma reportagem de 1978 sobre o criador dos versos é escrita por Assis Ângelo. Nela, flagrou-se algo nessa direção: na casa do entrevistado, havia duas máquinas de escrever — uma delas “só escreve em chileno” e outra “só escreve em brasileiro”. Além disso, notícias dos livros à vista: “na estante embutida, alguns livros de Jurisprudência, Poesia e Teatro. Dois autores se sobressaem: Fernando Pessoa e Máximo Gorki”.
 
Já no pequeno rol de vídeos disponíveis na internet nos quais Geraldo Vandré aparece, os registros dele junto à literatura não são poucos. Nestas imagens, não raro, ele declama versos. Na entrevista de 2010 concedida a Geneton Moraes Neto, Vandré se recorda de “Canção do Tamoio”, de Gonçalves Dias. Ao final de 2015, quando homenageado no Aruanda Fest, ele recitou à repórter Carla Batista, emocionando-se de modo característico, versos inéditos: “Nasci de cabelos brancos. / E pelos flancos diversos / de um forte, um contraforte / e uma lagoa / sem tamanho de águas e peixes. / Quando se abriram meus olhos, / eu trazia pelo palatino / o agridulce campo mar dos teus quintais. / Além, sempre que preciso, / estou sentado, diante de teu mar” — imagens, se não nos enganamos, que aludem ao nascimento e à memória. Passos atrás, no turbilhão dos anos setenta, recorda-nos Vitor Nuzzi, em sua biografia sobre Vandré, que o cantor deixou à Alaíde Costa um bilhete com os seguintes versinhos de teor glauberiano: “Além você bem sabe / o dragão da maldade / e seu santo guerreiro / são partes iguais no meu coração”. Tudo isso para dizer o óbvio: falar em Vandré, em grande parte, é falar em versos. 

Vandré, como todo bom poeta, é fingidor — ainda que um fingidor-servidor ou um servidor-fingidor. Pano para manga. Versos em canções, sim, mas também presentes na teatralidade da vida ou postos no papel: “Na voltada praia / da morená / fui um passageiro / que se viu passar; / escutei, maneiro, / pra depois cantar; / e além de cultivar / o verso preferido; / e além de me alcançar / sereno e prometido, / devo deixar as marcas / no papel sem pauta / que mandei comprar / com abatimentos, / por conta da simpatia / do dono do armazém”.
 
Mas não só. Se a sua guitarra não era elétrica — vale mencionar, contra o estereótipo, que Vandré demonstrou grande admiração, nos tempos de exílio, ao músico Santana —, as rádios nas quais cantou, a televisão na qual ganhou intimidade com as câmeras, os estúdios de gravação ou mesmo o microfone capaz de amplificar a sua voz, os violões e a viola caipira etc. continuavam, bem ou mal, a ser elétricos. Output direto que o conectou ao interior da tal cultura de massa, timbres unidos ou não — um ponto a ser desenvolvido. Vandré, como Chico, Caetano, Milton, Nara e outros mais, foi artista multimídia em era multimídia. Condição à qual, diferentemente dos outros, não tardou a deixar para trás — seja por motivos de anistia mal posta, derrota política, sensatez à mudança dos ventos, acordos misteriosos posteriores ao retorno, declinação à cultura de massa ou seja lá o que for.
 
Mas voltemos ao volume de versos. Cantos intermediários de Benvirá, ou Poética, se preferirem, é o único livro publicado por Geraldo Vandré até o presente instante no Brasil e alhures. Seus versos, em boa parte, foram escritos antes do período do exílio — é o caso, por exemplo, de “Marisa”, recitada na apresentação de 1968 em Goiânia. Numa nota da época do exílio anos depois publicada em jornal, há informações sobre o período da escrita se estender ao Chile: “Na verdade, não sei o que fazer. Em Santiago do Chile, num tempo e num espaço ideal para férias, em busca de trabalho. Por hábito, escrevo. Não sei para quem, mas escrevo. Fiquei essencialmente louco ou abstrato para entender-me com o meu próprio tempo e por isso mesmo, além do mais, espero. O verdadeiro perigo de tudo está em que me surpreendo falando com os pássaros, de repente, de que pensando de tal modo no futuro, esteja me perdendo no passado, simplesmente. Dame las alas para volar hacia las puertas de tu corazón.”

Como é sabido, seu contexto primeiro de publicação, que já data de mais de meio século, foi dos mais turbulentos: corresponde ao período imediatamente anterior ao controverso e obscuro retorno do cancionista ao Brasil. Tanto a data de publicação do volume quanto o pouso no Aeroporto do Galeão se deram naquele mesmo mês de julho de 1973. Já não é mais segredo, depois de três biografias publicadas a seu respeito, que Vandré enfrentou momentos dos mais delicados fora do país: foi deportado do Chile por conta de uma apresentação televisiva irregular, foi deportado da França por porte de haxixe e, de volta ao Chile, depois de desfeito seu segundo casamento, necessitou de intervenções psiquiátricas. Os versos contidos no livro, no entanto, vão na contramão do desespero — com exceção de “Socorro, a poesia está matando o povo” — e se apoiam numa espécie de contradança entre esperança e memória, atenta a certo sentimento íntimo à partilha e ao pertencimento: “Sou forte de nascimento, / sou claro de sentimento”. Nesse sentido, parte das composições presentes no álbum Das terras de Benvirá (gravado em 1970 na França, mas lançado no Brasil em 1973) — como “A canção primeira”, “Maria memória da minha canção” e “Bandeira branca” (letra que tem intertexto com a quinta parte do poema “Lembrança”) — guarda afinidade, em seus versos, com a proposta do livro.



De acordo com as biografias de Jorge Ferreira dos Santos e Vitor Nuzzi, Cantos intermediários de Benvirá foi editado primeiramente, em 1973, por Matías Pizarro, músico chileno, e pela socióloga brasileira Ana Clara Fabrino Baptista, com quem Vandré manteve um envolvimento na ocasião. Na edição brasileira, lançada em 2018 como Poética, a organização ficou a cargo das comemorações promovidas pelo governo do estado. Diante do livro, encontramos uma capa simples, branca, com o nome do autor, o seu título e a logomarca da editora A União. Todos em azul-claro. Em seu interior, temos uma estrutura de apresentação dos poemas: cinco seções apresentadas em caixa-alta de nome “Zé das Graças Pereira”, “Ah! Só campinas verdes”, “Coisas soltas”, “Olha de frente o sertão” e “Esse querer que é tanto”. Deste ponto, outras duas marcações interferem na proposta de encadeamento e unidade: títulos de poemas; poemas sem título, marcados pelas quebras de página ou pelas seções; e a divisão numerada de estrofes em obediência às cinco seções citadas acima. Passemos por elas.
 
A seção “Zé das Graças Pereira” possui dois títulos e a numeração de dez partes. “Ah! Só campinas verdes” possui catorze títulos e vinte e seis partes. “Coisas soltas” tem quatro títulos e onze numerações. “Olha de frente o sertão” guarda oito títulos e quatro numerações. Por fim, “Esse querer que é tanto” tem onze títulos e vinte e três numerações. No mais, temos as seções de agradecimento correspondentes às primeiras e segundas edições: a primeira expressa gratidão a determinado sentido pedagógico íntimo ao sentimento de seu tempo e de seu país, como diria Machado de Assis: “Ao meu amor Brasil e à memória dos meus pais, José Wandregízelo e Maria Martha, que me criaram, educaram-me, instruíram-me e me prepararam para viver este amor”. Se o primeiro agradecimento fala em princípio, o segundo fala no ponto de chegada: “Agradeço, em especial, ao governador Ricardo Coutinho e ao seu secretário de Cultura, Lau Siqueira, este meu estar aqui. Espero retornar, durante o inverno vindouro, para complementar nossos projetos com a Orquestra Sinfônica da Paraíba. A todos que me cercaram com seu carinho e apoio, principalmente àqueles que, com sua presença em nossas apresentações dos dias 22 e 23, próximos passados, ofereceram-me a prova de amor, do povo de minha terra, sem o que não existiria Geraldo Vandré”. Ocorre que este amor reiterado tanto no ponto de partida quanto no de chegada não é gratuito: compõe o sentido mesmo de sua poética.
 
Em vista do espaço próprio às nossas linhas, seria uma tarefa algo desmesurada esquadrinharmos o livro em suas cinco seções, trinta e nove títulos e setenta e quatro numerações do início ao fim. Proponho-me, portanto, a esboçar traços gerais de um esquema que o percorre e, salvo engano, ainda não houve: quero sugerir um sentido de movimento presente nos versos de Geraldo Vandré e, mais, pretendo sustentar que eles alcançam dinâmicas nas criações do criador como um todo. Começando pelo fim, e sem peias, continuemos mais um pouco nos arredores. Faço um convite para nos atermos rentes à precisão das palavras e às pistas semeadas pelo criador das criações — atentamente, mas sem abrir mão de uma benfazeja desconfiança (um bom exemplo dessa necessidade está no lapso reiterado ao dizer que sua entrevista forçada para o Jornal Nacional foi ao ar no mesmo dia da transmissão do golpe e da morte de Salvador Allende).
 
Essa abrangência e precisão se justificam desde o caráter mais elementar do próprio livro: o seu novo título corresponde, em sentido forte, ao conteúdo que pretende representar. A saber, uma poética propriamente dita. Para tanto, um passo atrás. Vandré costuma dizer que “todas as minhas músicas são de amor. De amor particular por uma mulher ou de amor geral por todo um povo”. Com os seus versos também é assim. Amor este que, não se enganem, fala ao sentido do sentimento íntimo: um traço de sua poética que, conforme dito em “República brasileira”, se ocupa da ordem de “Uma confusão de sentimentos / que dão a razão pra se cantar”. Em “João e Maria”, canção gravada nos anos sessenta, essa confusão de sentimentos próxima à linha do nacional-popular chega a fazer rima com o dito leniniano do ISEB (“sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional”): “Quem sabe o canto da gente / Seguindo na frente / Prepare o dia da alegria”. Isto é, são ditos de antes para alcançar o depois, a partir de certa dimensão nacional. Ainda nos versos de “João e Maria”, o tema desta canção é uma própria canção: canção de João, um processo de amor, alçada ao estatuto de alcance geral, pois abraçada por todo o povo. Sobre a pertinência do achado, mais pistas na contracapa do álbum que a abriga: “A invenção e a elaboração somente transcendem seus aspectos puramente formais e passam a ser efetivamente criativas quando servem a uma necessidade real e concreta do repartir. Sem bondade e heroísmos. Por uma decorrência natural de ser e ter. Porque repartir é, em última análise, um exercício fundamental da existência e a única razão de ser da propriedade”. Em seus limites e pontos fortes, tais dimensões constituem, caso a caso, traços da poética do artista.
 
No livro, o movimento entre o sujeito que canta e o compartilhado a ser cantado ganha contornos a partir de expressões diversas. Vejamos algumas delas. Comecemos pelo sentido do amor coletivo como manifestação de zelo partilhado: “Banhado todas as feiras, / no maior amor geral, / o rosal que deu, nas beiras, / do lado do meu quintal, / madurece na carreira, / o sonho de Zé Pereira, / Começo, meio e final”. Assim, tudo aquilo que é geral o é porque foi cultivado, cuidado para prosperar. Disto, surge outro ponto da maior importância: a presença e o sentido do “sonho” nos versos de Geraldo Vandré.

Sugerimos que a imagem do sonho não trata de um expediente acidental, mas de um recurso expressivo da relação entre o ser no mundo e o seu manancial íntimo. O qual é composto pelas determinações divididas a seu redor. Para tanto, recorremos, a título de abreviação, a um mesmo verso mobilizado por Vandré na segunda estrofe de “Zé das Graças Pereira”, repetido em “República brasileira”: “maduro no despertar”. Este espaço íntimo, resguardado ao onírico, surge como janela de amadurecimento, uma possibilidade de formação, capaz de preparar rumo à transformação do posto no mundo. Este amadurecer no despertar, sonhado o sonho, dialoga, através dos versos, com outra esfera de cuidado, como procuramos assinalar: o cultivo paulatino do relicário pessoal de lembranças. Estas são tomadas, via de regra, a partir das relações, por definição irreversíveis, do ser e estar de cada um no tempo. Um passo além, elas aparecem como acumulação involuntária da vida, distribuída irregularmente, e que por isso merece ser honrada. Ciente de que tudo aquilo tocado pelas retinas também as toca de volta na jornada esgotável da vida. Acompanhemos, tendo isto em mente, alguns dos versos de “Lembrança”: “Os bens da vida reparti com todos / e muitos se perderam para que eu chegasse. / Vivi contigo as honras do meu tempo / sem moral, além das esperanças; / e parto agora porque tenho tempo / e aumentadas as minhas lembranças”.
 
No lusco-fusco entre o geral e o íntimo, neste cultivo da vida compartilhada enquanto tempo repartido, há toda uma profusão de figuras e imagens espalhadas pelo livro. Bem como diversas soluções apresentadas a cada poema. Na abertura de “Olha de frente o sertão”, por exemplo, o desfecho é o mais trágico possível: um assassinato motivado por traição. No encerramento do livro, por outro lado, o poema “Aos que vão comigo e com quem vou ficar” diz: “que eu levei bastante para sempre plantar”. Tendo o leque aberto dessa tendência em mente, acreditamos que valha a pena chamar atenção para uma das figuras presentes no volume capaz de articular tais dimensões à noção de futuro com a qual flerta. Falamos na imagem do “ante-poema” como proposta de sensibilização ao devir e à intervenção. Ela oferece uma entrada para compreender o lugar da disputa, dos conflitos, em suma, do espaço destinado aos interesses na poética.
 
Em “Socorro, a poesia está matando o povo” (também título de sua turnê na ocasião da proibição de “Pra não dizer que não falei de flores”), fala-se em certo déficit de alumbramento responsável por cobrar um preço dos mais caros à vida, de modo a deformar tanto o presente quanto o futuro: “Socorro, socorro, / grita por dentro e no areião, / a poesia-solidão, / ou melhor, então, / o ante-poema feito grão, o coração”. A mesma imagem, agora sem hífen, estampa um título repleto de significações a respeito dessa compreensão do próprio tempo: “ante poema plagiário e hemiplégico”. Se não bastasse a condição prematura de “ante poema”, o vislumbre fugidio dessa sua presença no presente sugere algo de teratológico: a forma não se liberta do repetido e se apresenta como paralisada pela metade. Ocorre que, para o seu entendimento, conforme viria a escrever e declamar reiteradamente anos mais tarde, o futuro talvez deixasse a desejar com relação ao lugar da beleza: “Vivemos numa sociedade em que a beleza cumpre uma função secundária e dispensável. As pessoas que vivem da beleza, os denominados artistas, têm, portanto, uma função secundária e dispensável, dentro dos padrões de utilidade e necessidade social. Este é talvez um processo concreto de desprezo da beleza, sem a qual não existe homem feliz”.
 
Cantos intermediários de Benvirá, ou Poética, propõe, a seu modo, uma “ante posição” em seu tempo a este processo de desprezo da beleza. E agora que compõe artigo para o relicário de memórias geral.? De certo, as características que pinçamos no esquema dedicado ao movimento de sua poética não foi muito generoso ao livro. Para Geraldo Vandré, ele teria ficado datado? Na opinião dele, emitida na ocasião do lançamento em João Pessoa, não. Ele os considera “atemporais”. Seja como for, para nós, o testemunho do e no livro vai muito além dos documentos sobre o seu autor. Para além da importância biográfica, que existe e é necessária, ele guarda em si por extenso a régua e o compasso do universo dos versos de Vandré — esse híbrido curioso entre marca e sonho popular, capaz de fazer história ao remexer e retrucar tantas esperanças. Assim, falamos em pistas próprias ao funcionamento interno de seus versos, daquilo que nos apresenta e comove. Conhecer o livro de perto é, de certo, fonte profícua para fazer o que Beatriz Malnic sugeriu em sua apresentação: tomar Vandré para além da caricatura. Nesse sentido, tanto o criador quanto suas criações guardam ainda muitos segredos capazes de dar o que falar.
 

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