O vermelho e o negro: a tragédia da grandeza temporal

Por Guilherme França


Julien Sorel. Ilustração de Jean-Paul Quint para edição francesa de O vermelho e o negro, 1922. Arquivo BNF.



Publicado em 1830, O vermelho e o negro, de Stendhal, inscreve-se como uma das obras mais representativas da literatura francesa, não apenas por sua qualidade estética, também muito debatida, mas sobretudo por seu bom aproveitamento analítico no tratamento de temas como a mobilidade social, a construção da personalidade e os impasses ético-existenciais do indivíduo moderno. Longe de se limitar à moldura de um romance de formação, de um relato psicológico ou de crônica social, a narrativa permite, em alguma medida, o exame das tensões entre as ambições pessoais e as virtudes, a partir das quais surgem essas forças invisíveis que acabam por moldar o destino dos homens, servindo como um alerta quanto às pretensões desmedidas, que podem corroer a essência de nossa vida. Este ensaio propõe, portanto, uma leitura da obra a partir de uma perspectiva exclusivamente ético-filosófica, examinando as ações dos personagens e sobretudo do protagonista, bem como os dilemas morais que se apresentam a partir delas. Para isso, começamos por situar a obra analisada no tempo.
 
Ainda que este autor não seja um entusiasta da divisão de escritores e suas obras em “movimentos literários”, por distintas razões, vale apontar que O vermelho e o negro costuma ser citado como um texto emblemático do romantismo francês, período caracterizado pela análise psicológica dos personagens, assim como pela crítica à sociedade e seus hábitos, este aspecto já não tão incomum ou exclusivo, pois presente na literatura que o antecede.
 
Quanto à narrativa, esta se passa em uma cidadezinha chamada Verrière. Julien Sorel, o protagonista, vem de uma família cujo trabalho é manual e de baixo nível intelectual. Mesmo assim, o jovem, que foi ensinado boa parte de sua vida por um padre, possui uma talentosa e potencial erudição, sendo capaz não apenas de recitar o Evangelho mas também de fazer verdadeiras homilias em latim. Seguindo parcialmente aquilo que mais tarde aconselharia o filósofo espanhol Ortega y Gasset, o personagem olha para as suas circunstâncias, na tentativa de reabsorvê-las e, assim, traçar o plano para o futuro aristocrático que almejava. Em seus pensamentos, vislumbra apenas duas possibilidades de ascensão social: tornar-se membro do exército ou, então, padre. Esse é o motivo pelo qual, segundo alguns estudiosos, o título do livro representa a cor das respectivas vestimentas, ou seja, o vermelho (farda) e o negro (batina).
 
O jovem, como já mencionado, é dotado de inteligência aguda e de sensibilidade rara, mas suas qualidades são reiteradamente instrumentalizadas para finalidades estratégicas, e não para a realização de um projeto de vida fundado na razão prática, ou seja, a escolha dos meios corretos para atingir um fim último. Contrariando o que advertia Aristóteles, para quem a verdadeira felicidade (eudaimonia) não é atingida pela astúcia nem pela glória exterior, mas pelo cultivo das virtudes, Julien almeja simplesmente o reconhecimento e a ascensão social, sem submeter seus desejos a qualquer exame ético.
 
É interessante comentar que a singularidade do romance de Stendhal também reside, conforme observa o crítico Erich Auerbach, na forte relação entre a vida íntima dos personagens e as estruturas históricas que lhes condicionam as escolhas. Para Auerbach, seria quase impossível compreender a densidade da narrativa sem um conhecimento preciso da situação política, da estratificação social e das determinações econômicas que marcam a França pós-napoleônica.
 
O romance ecoa os conflitos sociais contemporâneos ao seu tempo. Àquela época, após a queda de Napoleão em 1815, a França passou por um período conhecido como Restauração, visava restaurar os valores, instituições e privilégios aristocráticos do Antigo Regime, dissolvido violentamente pelos revolucionários em 1789, mas agora por meio de uma nova monarquia. Contudo, a reação contra essa tentativa de retomada do regime monárquico se dava por várias frentes, razão pela qual, de maneira simplista, surgiu a Revolução de 1830, movimento que causou mudanças no quadro da monarquia, com a abdicação de Carlos X e ascensão de Luís Filipe de Orléans.
 
Esse cenário de instabilidade entre herança aristocrática e aspiração burguesa não compõe apenas o pano de fundo da obra, mas também se inscreve no próprio interior do protagonista, que se vê diante de seu primeiro grande dilema: considera-se intelectualmente superior à pequena burguesia de onde provém, e por isso almeja o reconhecimento social; contudo, nutre profundo desprezo pelos valores da aristocracia, que representa justamente o universo em que deseja penetrar. Ainda assim, com as qualidades intelectuais que possui e com um anseio de realização em seu imaginário, o jovem torna-se um preceptor de crianças, atividade comum à época, considerando a ausência de obrigatoriedade do ensino formal.
 
Julien então é contratado por Sr. de Rênal, prefeito da cidade, para que cuide da educação de seus filhos. Abandonando desde logo qualquer senso de prudência e integridade, o jovem se envolve amorosamente com a esposa de seu patrão, a Sra. de Rênal, que abandona igualmente as virtudes esperadas para o matrimônio, dando início a uma relação extraconjugal, momento em que a narrativa toma contornos notadamente atrelados ao romantismo — mas nem por isso o livro pode ser entendido como uma história de amor.
 
Embora a primeira-dama da cidade seja uma mulher mais velha, casada e com dois filhos, os diálogos com Julien e os pensamentos que expressa diante deste não mostram uma relação de hierarquia ou autoridade. Como uma adolescente, e sem conseguir controlar-se, a madame sucumbe aos desejos e calafrios na barriga com alguma facilidade, reduzindo o papel do rapaz a um sedutor nato; isso gera no jovem professor uma confiança apta a fazê-lo seguir desfrutando desse poder imaginário que um homem adquire diante de um coração feminino apaixonado.
 
A passagem oferece um campo fértil para a problematização ética das relações humanas marcadas pela instrumentalização do outro. Percebe-se que ambos os personagens abdicam, ainda que por razões distintas, das virtudes esperadas em sua condição: Julien, movido por vaidade e ambição, vê na sedução não um ato de amor, mas um exercício de poder; Madame de Rênal, por sua vez, cede ao desejo com uma ingenuidade quase pueril em prol de seus desejos sensuais, negligenciando os deveres do matrimônio e do cuidado familiar. Embora estejam secretamente juntos, o motivo para cada beijo é distinto no coração de cada um.
 
A relação não tarda a se tornar um escândalo e Julien deixa a cidade, mas é acolhido novamente na alta sociedade parisiense, agora pela família do Marquês de La Mole, que o emprega como secretário. Mesmo com os resultados problemáticos de suas inclinações ambiciosas, o jovem enxerga uma nova chance de continuar sua jornada de ascensão. Porém, a sua dificuldade em buscar um fim último que transcenda a pura ambição e o consequente relaxamento das virtudes traz um novo problema: a sua presença despojada e obscura na casa dos La Mole rapidamente chama a atenção de Mathilde, filha única do Marquês, mimada e cheia de fantasias. Nas palavras de Auerbach, Sorel se torna um hipócrita de plena consciência ao conviver com quem despreza, e essa postura incomum aos olhos da bela aristocrata torna-se, paradoxalmente, uma arma de sedução.
 
A nova relação amorosa se inicia com os mesmos problemas éticos já vistos, ainda que com contornos distintos. Julien segue desejando uma relação que lhe propicie oportunidades de ascensão, mas percebe que, ao contrário da Sra. de Rênal, Mathilde não segue aquele ideal de ternura cristã, delicada e angelical, preferindo antes um sentimento de transgressão, consubstanciado em amar alguém que desafie os códigos da nobreza à qual pertence. Um arquétipo quase clichê, convenhamos, ainda hoje presente no imaginário das jovens moças, no qual Julien é retratado pelos pequenos burgueses universitários.
 
A relação oscila entre noites de desejo e desprezo entre os amantes, até que a gravidez de Mathilde rompe com a brincadeira amorosa dos jovens. Apesar da raiva de seu sogro, Julien recebe dinheiro, acomodação e um cargo. Neste momento, quando tudo tende a uma vida pacata ao lado de sua esposa e o filho que está por vir, os resquícios de ações impensadas do rapaz acarretam uma nova tempestade. Em um rompante de redenção, sua ex-amante denuncia toda a sua forma de agir em uma carta que chega às mãos de seu sogro, cujo início é: “o que devo à causa sagrada de religião e da moral me obriga, senhor, à difícil missão que venho cumprir”. O impacto é imediato: a farsa moral e existencial construída por Julien desmorona, e ele, mais uma vez deixando de lado a razão virtuosa e tomado pelo orgulho, retorna a Verrières e comete um ato irreparável — atira contra Madame de Rênal na igreja da cidade.
 
A narrativa segue com outras tragédias pessoais que aprofundam o drama de Julien, mas interrompemos aqui o fio dos acontecimentos para concentrar-nos no que se revela o verdadeiro eixo moral da obra: suas relações amorosas com Madame de Rênal e Mathilde de La Mole. É por meio desses vínculos que se explicitam, de forma mais aguda, os conflitos internos do protagonista e os impasses éticos que perpassam sua trajetória.
 
No primeiro caso, o jovem sedutor encontra, talvez inadvertidamente, a possibilidade de um vínculo afetivo com alguma autenticidade por parte de sua amante, a quem podia manobrar os sentimentos, reduzindo tudo a um exercício de conquista. No segundo, engendra uma relação fundada em jogos de poder com astúcia mútua, na qual o amor se converte em moeda simbólica de troca: para ela, uma ruptura do tédio, para ele, o prestígio. Para Mathilde, amar Julien é um ato de revolta simbólica contra os códigos da aristocracia; para Julien, seduzi-la é afirmar-se como digno de um mundo que o repele. Nas duas relações, Julien age orientado pela lógica da instrumentalização: o outro é sempre um meio para a realização de um fim narcísico, o que seria problemático até mesmo na ética kantiana — ainda que o próprio Kant, ao fundamentar sua moral em deveres formais, pareça incapaz de lidar com a espessura concreta das paixões humanas, como nos recorda a tradição da ética das virtudes.
 
Recorrendo à filosofia moral aristotélica, a ausência da phronesis — a prudência que orienta a escolha dos meios em vista de fins virtuosos — é, assim, o traço marcante da conduta de Julien, um indivíduo que não reconhece qualquer fim último para além da ascensão social. Seu erro não é apenas moral; é ontológico. Ele ignora um problema fundamental da existência segundo a tradição aristotélica/ tomista: a necessidade de atribuir sentido às próprias escolhas em um horizonte que transcenda o êxito imediato. Como resultado, sua vida torna-se uma sucessão de gestos performáticos que encobrem o vazio de um projeto existencial sem substância.
 
E como de costume, é apenas depois de vivenciar uma série de tragédias pessoais e se encontrar à beira da morte, que Julien finalmente vislumbra a insuficiência dos objetivos arquitetados para a existência. A epifania que ocorre nos últimos capítulos do romance não é propriamente redentora, como em outros romances, mas reveladora: o jovem compreende e assume que os poucos instantes de felicidade genuína que teve durante toda a sua busca por ascensão foram na presença de Madame de Rênal, não por aquilo que ela representava socialmente, mas pela autenticidade de seu afeto. Esse reconhecimento, contudo, não o redime, pois já não há tempo para refundar sua trajetória.
 
Stendhal, ao construir a figura de Julien Sorel, não se limita a criticar a hipocrisia social, os trejeitos aristocratas ou o oportunismo político. Ele nos entrega, querendo ou não, a possibilidade de pensar sobre a relação entre livre-arbítrio, responsabilidade, desejo e verdade. O fracasso de Julien — reconhecido por ele próprio — em alguma medida encarna o sujeito moderno que, ao abdicar de uma vida ética ou fazer pouco caso das virtudes, em favor do sucesso imediato, termina por dissolver sua identidade em simulacros. Os talentos desperdiçados, a inteligência reduzida a uma técnica de manipulação, o amor rebaixado a moeda de troca: tudo neste homem converge para a denúncia dos antigos em relação à tragédia que pode se tornar uma grandeza sem virtude.
 
A trajetória de Julien Sorel ilustra muito bem uma verdade que atravessa séculos de reflexão moral: o homem que não reconhece um fim último para sua existência permanece vulnerável a toda finalidade ilusória. Quando a vida se organiza apenas em torno da aparência, do prestígio ou da afirmação de si diante dos outros, os atos jamais serão orientados por uma verdade interior. Sem um telos que confere unidade e sentido à existência, até mesmo as maiores conquistas tornam-se mesquinharias, e o sujeito se vê condenado a vagar entre metas sucessivas que, uma vez alcançadas, revelam apenas o vazio que sempre ocultaram.
 
Ao final, a história de nosso protagonista denuncia o drama íntimo de um homem incapaz de ordenar sua vida a partir de um bem real. Sua inteligência, seu esforço e até mesmo seu sofrimento, ainda que fossem compreendidos como verdadeiros e sem qualquer má-fé, não encontraram coesão porque foram orientados por fins que não resistem à prova da verdade ou da morte. O vermelho e o negro permanece, assim, como um convite silencioso à reconsideração da vida moral: sem a presença de um bem último que integre desejo, razão e ação, tudo se converte em ruído, encenação, mentira, fingimento e, quem sabe, tragédia. A grandeza sem virtude não é apenas impossível — é destrutiva.


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