Larraín com sua Maria Callas, um ventríloquo a mais do streaming

Por Alonso Díaz de la Vega




Parece que cada novo filme do diretor chileno Pablo Larraín é uma tentativa de negar a si mesmo. Se compararmos a montagem dos seus filmes de há uma década, mais ou menos — Neruda e Jackie (2016), Ema (2019) —, com a dos mais recentes — concretamente O conde (2023) e Maria Callas (2024) —, poderemos assistir à dolorosa extinção de uma individualidade em ascensão, formada por imagens incoerentes como a consciência, e por uma narrativa difusa que dava mais interesse à sensação do que à história. Em seu lugar surge um estilo cada vez mais claro — para não dizer óbvio —, melodramático e mecânico. Larraín não foi um dos grandes cineastas contemporâneos em seu auge, mas naqueles filmes ele demonstrou o potencial de se refinar até se tornar um, apesar de excentricidades como seu olhar ansioso em um filme de libertação feminina (Ema) ou a expressão frequentemente grotesca de abuso infantil dentro da igreja católica em O clube (2015). Aquele Larraín mais livre era um artista em busca de sua própria voz. Hoje, ele dá a impressão de ser um funcionário a serviço dos interesses da Netflix, como sugerem seus dois últimos filmes, distribuídos pela empresa de streaming.
 
O conde e Maria Callas sustentam a obsessão do diretor por ícones do século XX, que anteriormente incluíram Pablo Neruda, Jacqueline Kennedy e Lady Di, mas há uma simplicidade nos retratos mais recentes que sugere o envolvimento da Netflix, envolvida desde a pré-produção de O conde. Maria Callas foi comprada no Festival de Cinema de Veneza para distribuição nos Estados Unidos, embora pareça que o filme tenha sido feito por demanda pela empresa, um dos membros da qual disse há algum tempo que não produziriam mais “projetos de vaidade” como O irlandês (2019), de Martin Scorsese, porque não geravam os números de público desejados.
 
O icônico, em O conde e Maria Callas, expande-se, ao contrário da exploração mais intimista de seus antecessores. Spencer (2021) ainda continha uma tensão interessante causada por uma mulher associada à moda (Kristen Stewart) interpretando outra (Lady Di), posando como ela, mas no final prevalecia a imagem da britânica levando os filhos ao McDonald's, numa tentativa de resgatar sua normalidade para não ser vítima de uma fábula de princesa. O conde, que representa o ditador Augusto Pinochet como um vampiro, e Maria Callas, cuja ideia da diva da ópera é reduzida à sua personalidade pública, concordam com a frase de Friedrich Nietzsche: “Há mais ídolos do que realidades no mundo”. Se os primeiros filmes de Larraín sobre protagonistas históricos foram uma tentativa de encontrar essa realidade, seus mais recentes cedem ao imaginário popular, faminto por majestade.
 
Maria Callas começa com a morte da diva, o que dá origem a uma montagem clara quanto ao propósito de Larraín: Angelina Jolie a interpreta em um primeiro plano em preto e branco e começa a cantar. No centro da imagem, se cruzam recriações de filmagens de Callas em aeroportos, cercada por fotógrafos; também a vemos no palco colhendo flores, ou na companhia de seu amante, Aristóteles Onassis (Haluk Bilginer). O efeito é uma revelação verdadeiramente impensável: Callas era um ícone. Fritz Lang disse corretamente que os filmes estão contidos em sua primeira cena, e nada muda nas duas horas seguintes de Maria Callas. Larraín parece controlado pelo roteiro de Steven Knight, que também é o produtor executivo do filme.
 
O diálogo de Knight faz muito para envelhecer o que vemos e insistir na iconolatria. Os personagens não conversam, mas sim — da primeira à última cena — se confrontam em duelos de engenhosidade verbal, como naquele clássico de Stanley Donen, Charada (1963), mas o que foi então um filme de sua época, artificial como boa parte do cinema clássico e new wave, aqui parece fora de contexto. Larraín poderia brincar com esse aspecto, e de fato o fez em filmes anteriores, mas sua direção é tão plana em Maria Callas que tudo o que se percebe é uma intenção de traduzir o texto de Knight em imagens. Lembro-me bem daquelas sequências de Neruda em que o poeta chileno começava uma frase em um espaço e terminava em outro. O filme era um estranho sonho de busca e liberdade que poderia muito bem descrever o próprio diretor agora, entre as pressões econômicas de entregar uma produção de sucesso e o desejo de manter sua personalidade. Ocasionalmente, há momentos como os de Neruda, como uma sequência em que a protagonista canta e é vista em dois lugares simultaneamente, mas, em geral, prevalecem as conversas repletas de frases espirituosas.
 
“Meu corpo”, explica Maria Callas a um entrevistador, “sabia que eu era um tigre”, referindo-se à sua incapacidade de engravidar. “Jackie era sua esposa, mas você era sua vida”, lhe contam sobre seu relacionamento com Onassis. Ambas as frases capturam não apenas o tom intensamente melodramático do filme, mas também alguns dos temas que insistem na grandeza sobre-humana da cantora.
 
A atuação de Jolie tem momentos interessantes em que o colapso interno transborda para o exterior, principalmente diante da impotência de voltar a cantar (o filme narra a semana anterior à morte de Maria Callas e especula que em seus últimos dias ela se dedicou a recuperar a voz após uma década sem fazer uma apresentação pública); no entanto, apesar dos esforços de Jolie para dar alguma humanidade à sua personagem, o texto exige — e a sujeita a — sempre se comportar como uma imagem robusta e invulnerável. Pouco antes de morrer, numa cena sentimental, o filme mostra Callas em seu apartamento; seus criados, que foram até a loja, podem ouvi-la junto com o resto das pessoas atônitas na rua, ouvindo o canto de um cisne moribundo. Se fosse exagero, teria subido ao teto, como os Beatles.
 
As distorções chegam a tal ponto que Knight e Larraín inventam um efeito colateral da medicação de Maria Callas em seus últimos dias: uma série de alucinações que a obrigam a perguntar aos personagens ao seu redor se um entrevistador de televisão que a acompanha por toda parte (Kodi Smit-McPhee) é real. Gostaria de pensar que Larraín está tentando recriar o perseguidor inventado por Neruda, interpretado por Gael García no filme sobre o poeta, mas o efeito é mais semelhante ao do recrutador do Departamento de Defesa dos Estados Unidos em Uma mente brilhante (2001), de Ron Howard. Ao substituir o onírico pela banal — e até culturalmente ultrapassada — narrativa da loucura, Larraín retorna ao estilo dos vencedores do Oscar de mais de 20 anos atrás.
 
A obsessão pela sustentação do mito assume um ângulo politicamente reacionário se considerarmos que a ideia do sobre-humano, das grandes mulheres e homens que movem a história, não só representa uma mentalidade ultrapassada pela historiografia, mas também coincide com a admiração contemporânea por certas figuras empresariais. No mesmo sentido, chama a atenção que Knight e Larraín optem por mostrar a Maria Callas do passado cercada por homens poderosos como Onassis e John F. Kennedy (Caspar Phillipson), mas ignore completamente sua proximidade com um poeta revolucionário como Pier Paolo Pasolini, que colaborou com ela em sua versão cinematográfica de Medeia (1969) e se apaixonou por ela, embora sem a possibilidade de ser mais do que seu amigo. Também é desconcertante que as menções a Jacqueline Kennedy, esposa de Onassis e, portanto, rival de Maria Callas, reduzam a ex-primeira-dama estadunidense a uma figura caprichosa e odiosa, quando Larraín tentou ilustrar o oposto (o sofrimento de uma mulher que estava proibida de chorar porque personificava o luto de uma nação) em Jackie.
 
Ao contradizer simbolicamente sua própria filmografia, a autorrejeição de Larraín se concretiza. Nada resta daquele cineasta, exceto um contador de filmes para televisão pouco acima da média, mas não um cineasta: um ventríloquo de prestígio para a Netflix. 


* Este texto é a tradução livre de “Larraín con su Maria Callas, un autómata más del streaming”, publicado aqui, em Gato pardo.

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