Por Renildo Rene
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Thiago Souza de Souza. Foto: Arquivo pessoal. |
Sentir e escrever são dois elementos expressivos possíveis
ao luto neste romance. Com a descontinuidade de uma relação física paterna,
causada pela morte, várias são as tentativas individuais empreitadas por um
filho para organizar as emoções na história trazida por Thiago Souza de Souza,
em sua estreia pela editora Taverna, ali no ano de 2021.
O protagonista ao qual temos o campo de vista adentrado em Jamais
serei seu filho e você sempre será meu pai perde seu pai ainda novo, aos
três anos, após um acidente médico causado pela inserção de dipirona por uma
enfermeira. Já adulto (a morte foi em 1993; o genitor estava em seus trinta e
seis anos), ele recorre ao processo de escrita para explorar a angustiante
sensação da ausência e o impacto familiar post mortem. Quando narra
certos episódios de sua vida, esse narrador nos diz também sobre a repercussão
daquele episódio original em diversas fases de compreensão de seu luto — o dia
dos pais na infância, a busca por entendimento sobre o erro clínico, os
problemas com a mãe.
Tudo encontra sua maneira encadeada de dizer, recorrendo ao
ponto de origem dolorido, repetidamente, e em esforços de imaginação. Esta
última tarefa é mais explícita ao leitor e poderíamos dizer que encontra
espécie de autojustificação em diversas ocasiões: do artifício de invenção
sobre algo não vivido (“se eu continuasse imaginando, meu pai continuaria
comigo”) às mentiras usadas pelo eu-criança para fugir do confronto em público
(“Eu costumo inventar desculpas assim para todo mundo que me pergunta se eu
tenho pai, cadê ele, e depois não lembro qual desculpa já usei, qual é a
próxima que vou usar”).
Esses momentos em que vemos, capítulo a capítulo, um filho
tentando se aproximar do pai por aquilo que não teve durante seu crescimento,
força o abandono do enredo nuclear e puxa para o centro do romance uma
diarística ficcional. Ou melhor, epistolar. Há um exercício de escrita de
cartas como esforço genuíno de se conectar emocionalmente e poder prevalecer a
alcunha de “pai”, o destinatário. Assim, os capítulos aparecem todos ordenados
com três partes dentro de si: uma narração própria do filho, um trecho de uma voz
narrativa singular, a ser descrita mais à frente, e uma carta destacada escrita
também pelo filho.
Mas me parece que a inserção dessa escrita epistolar
contorna muitos vieses individualistas. Thiago nos apresenta um personagem tão
apegado à sua própria dor e a sua específica relação com ela que não há
abertura de margem para outros/as sujeitos da própria família. E quando há (o
caso da mãe), a presença externa se torna pequena porque há avanço somente
nessa linha bilateral fechada entre pai-filho. Diria que mais para o segundo
porque na sua narração o protagonista desperta extensões de si sobre todos os episódios.
Ele vai se projetando nesse outro e deixando-nos ver apenas um falar ao pai,
e não o falar com o pai (até mesmo quando pretende se enxergar aos olhos
dele).
Misto de sentimento egocêntrico próprio desse luto, e isso
os psicanalistas podem discutir melhor do que eu, a ampliação das emoções
sucumbe-se às validações postas na unidade final. No compromisso de narrar o
sentir, o filho se compromete apenas na contínua afirmação de que escreve sobre
o vivido.
Por exemplo: a terceira voz que aparece aqui é a própria
dipirona falando desse menino. À primeira vista, isso chama atenção e não à
toa. Quantos remédios já observamos narrando uma história? Aqui, o famoso
comprimidinho vai nos dizer quão dolorosa foi aquela ausência, de como o filho
se pega pensando na enfermeira etc. O interessante está na própria
característica do elemento-motivador da morte trazer certa perspectiva de
complacência com o menino — e isso é resultado da própria fabulação dele em seu
cotidiano.
Mas isso já não nos é enfrentado, fronte ao espectador, pelo
próprio filho? Meia imaginação, meia confirmação do humano que derrama todos os
seus sentimentos em todas as páginas, a nossa terceira narradora mantém
relações mais cerradas com o narrado pois seus objetivos são pouco
vislumbrados. Trecho dela narrando:
“Porque a sua história não tem como continuar a não ser em
novos capítulos iniciados em novas folhas, sem obedecer a uma ordem
cronológica. A palavra continuação não pode fazer parte disso, e espero que ela
não apareça mais por aqui. A palavra ruptura, sim, a considero mais bonita que
interrupção, e ela vai permear tudo, vai aparecer mesmo quando ausente, vai
estar em todas linhas.”
Momentos como esse acima, em que a dipirona narra, exibem
como sempre prevalece, implicitamente, a obstinação em torno daquele menininho
escrevendo (e não de uma nova interlocutora entregando novas perspectivas sobre
a história). Essa escolha, entre todas da obra, me parece arriscada sem deixar
de ser bastante interessante. De um lado, a afirmação do remédio se fragiliza e
fica aquém de ganhar credibilidade. Do outro, as falas da dipirona se tornam
tão iguais, como a dose do comprimido, que sua dissolução se torna demorada
porque o efeito pretendido aqui é outro. É menos a dor e mais escrever sobre a
dor.
Jamais serei seu filho... inicia naqueles episódios
de lembrar como é viver após a morte, mas à medida que seu protagonista se
enerva em falar de si o romance é outro. O romance do uso próprio. Tudo que
está escrito meticulosamente pelo autor circula a áurea do filho do falecido e
vira traços de afirmação existencial na escrita. As cartas, diálogos que dizem
ao pai apenas suas expectativas. O remédio, apenas instrumento fantasioso de
ver a si por outro ângulo e criado para fins individuais.
Podemos olhar a relação do pai e a nossa relação de leitor com
o protagonista de jeito um tanto quanto curiosas se questionamos como o
protagonista quer ser ouvido, lido e entendido. Quem pode estar ali, entendendo
a dor? Me parece perfeitamente cabível ter uma espécie de espectador
contornável como elemento simbólico dessa resposta: a expectativa de observar
os dias de luto — e a restrição a isso é bastante superficial — perde fôlego
porque a narrativa contorna-nos a sermos espectadores do simulacro da escrita
ensimesmada. E isso sem deixarmos de conjugar o papel de leitor para fruir o
romance porque o escritor está ali por trás configurando as relações ficcionais
para julgarmos a personagem.

Duas presenças anteriores não me escaparam enquanto tentava
me penetrar aqui. Thiago faz justa companhia para com seu conterrâneo Jeferson
Tenório, na criação desses filhos em busca da compreensão do luto e das
tentativas de domá-lo. Sendo
O avesso da pele uma construção cabal do
perfil de Henrique pelo filho, o leitor se presentifica de maneira tão delicada
na obra que não resta outra saída senão tentar participar com Pedro de sua
criação aberta ao redor da figura paterna e das relações familiares. Enquanto
isso,
Jamais serei seu filho... investe no entendimento material da
palavra: tudo dito é concebível no escrito do enlutado, porque o narrador só
está interessado em escrever e exibir isso.
(não é defeito da obra; é personalidade do personagem)
A outra presença é mais clara a todos aqueles que pensam
sobre problemas paternos na literatura:
Carta ao pai. Aproximação mais
exata, e se não for influência direta é muito fácil de ser sentida, o expurgo
epistolar é de um todo utilizado como se pudesse desatar todos nós de anos
vividos em sofrimento. E como em Kafka, nós só podemos pensar em como o
narrador de Thiago, muitas vezes orientado pelo psicólogo, só tem que escrever
para materializar a palavra daquilo que ele não entende. Não se engane, caro
leitor/a, a nossa leitura é também interessante para acolhê-lo.
A obra em si pode ter complicações: o remédio lá não ganha
tanto destaque enquanto voz narrativa, as cartas podem parecer meio mornas por
sua tentativa de emocionar rapidamente e o protagonista circunda tudo em si. Contudo,
esse imaginado exercício de escrita sai um pouco mais louvável nas páginas
finais porque se torna objeto de interesse e é o título que nos lembra que esse
indivíduo tenta se compreender entre ausência e presença, mas impossibilita a
coexistência com o ausente quando prioriza somente a si.
“Criei um mundo só nosso, e agora percebo que estou ficando
preso dentro dele. A sensação de estar encerrado numa fábula em que só eu
acredito é desesperadora. Ninguém pode me puxar de volta, eu preciso sair
sozinho.”
As pontas de ambiguidades em algumas páginas e a própria
ideia do enredo clareiam um novo ficcionista no bom uso de provocações, e nas
possibilidades de explorar melhor seus universos imaginados. Aliás, a criação
desse mundo, como diz o narrador, por elementos de invenção fecunda atrai
“vontade de estabelecer alguma ordem ao caos de narrativas” e, ao mesmo tempo,
a atenção para desfrutar dessa aparente busca por verdade quando se escreve o
luto.
Para o seu primeiro romance, vemos o caso simpático de
alguém residente em seu tempo e nos domínios do que se tem hoje sobre escrever
sua própria dor e como compartilhá-la com outro, em meio aos interesses do
mercado literário. Thiago não canaliza isso para a sua figura, mas para a
criação do seu personagem não nomeado. Fruto de vários períodos de escrita em
oficinas e publicado em trechos menores ainda em 2020,
Jamais serei seu
filho e você sempre será meu pai foi antes uma espera, um dia a se cumprir,
e hoje já é algo sólido e apontando para uma carreira a se observar.
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Jamais serei seu filho e você sempre será meu paiThiago Souza de Souza
Editora Taverna, 2021
196p.
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