Entre as cenas do cinema que mais
me comove está a de uma multidão de crianças que, extasiadas, assistem a um
espetáculo de marionetes em
Os incompreendidos (1959). François Truffaut
se concentra nos rostos dos pequenos, e assim os planos abrangem o que parece
ser uma infinidade de sorrisos desdentados, de olhos brilhantes, assustados ou
até entediados. De repente, atravessa um plano com dois meninos mais velhos,
Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) e seu melhor amigo, René Bigey (Patrick
Auffay), que planejam um furto sem prestar muita atenção aos bonecos que narram
aparentemente o desfecho de “Chapeuzinho Vermelho”. O papel dos protagonistas é
semelhante ao do crítico, que não deve se deixar ficar muito impressionado,
enquanto as outras crianças representam o público ideal: aquilo que veem (mãos
disfarçadas de lobo e outros personagens) é claramente falso, mas as crianças
presumem que seja real; algumas parecem que vão chorar, enquanto outras gritam
de alívio quando o mal é derrotado. De certa forma, é uma imagem da relação
entre o cinema e seu público.
Em seu filme mais recente,
Grand
tour (2024), o diretor português Miguel Gomes recorre em várias ocasiões às
marionetes. É a primeira vez em sua filmografia — se não me engano — que esses
objetos aparecem, mas muito antes disso, Gomes já produzia um cinema que expõe
os elementos do quadro como criaturas manipuladas por alguém por trás da
câmera: ficções. De
Entretanto (1999) a
Grand tour, percebe-se
sempre uma artificialidade premeditada ligada ao resto do imaginário
cinematográfico português: Manoel de Oliveira, Margarida Cordeiro, António
Reis, Pedro Costa, Rita Azevedo Gomes, João Pedro Rodrigues, João Nicolau,
juntos renunciam ao realismo para fazerem um cinema que, embora não fale de
câmaras e cenários, é sempre sobre o próprio cinema. A intenção não é desiludir
o público inocente de Truffaut, mas desafiá-lo a produzir uma ilusão com algo
tão claramente artificial quanto uma luva em forma de lobo.
A técnica portuguesa é também um
ato de memória, pelo menos para a geração de Gomes e Costa, que se refere
militantemente ao cinema clássico e mudo. Costa, por exemplo, dedicou-se desde
Juventude
em marcha (2006) a reviver o John Ford de
Sargento Rutledge (1960),
enquanto Gomes adquiriu fama internacional graças a
Tabu (2012), que
desde o título até a forma faz alusão ao grande diretor expressionista F.W.
Murnau e seu filme
Tabu: uma história dos mares do sul (1931).
Tabu,
de Gomes, no entanto, não é pura nostalgia, mas um jogo de anacronismos e
absurdos onde uma banda de rock toca a versão de “Baby, I Love You” dos Ramones
(o áudio é da gravação de 1980), no Moçambique pré-revolução, quando a banda de
Nova York nem existia.
O enredo de
Grand tour deve
ser reconhecível até mesmo pelos espectadores mais dedicados: um homem foge de
uma mulher ingênua e obsessiva que o persegue e tenta fazer com que ele se
apaixone por ela contra sua vontade. É essencialmente o mesmo que o clássico de
Howard Hawks,
Levada da breca (1938). Em uma breve entrevista, Gomes
confirmou a conexão: “Esse filme foi exatamente o que tínhamos como referência.
A Crista [Alfaiate], a atriz, e eu discutimos que nosso filme tinha algo a ver
com o de Hawks, mas de uma forma um pouco disfuncional, porque em
Levada da breca
os atores trabalham juntos, mas aqui eles nunca se veem, então seria uma
comédia maluca um pouco disfuncional.”
Grand tour é contado
primeiro da perspectiva de Edward (Gonçalo Waddington), um oficial colonial
inglês que escapa de sua noiva pelo sudeste asiático em 1917. Sua jornada
involuntariamente se torna o que ficou conhecido no início do século XX como
grand
tour da Ásia, que começava em algum lugar dentro do Império Britânico e
geralmente terminava na China. No final desta parte da história, bem no meio do
filme, tudo recomeça, mas da perspectiva de Molly (Alfaiate), uma personagem
excêntrica que faz barulhos de trombeta quando ri, o que acontece com
frequência, e que tem uma determinação fanática de se casar com Edward.
O enredo é, na verdade, inspirado
em um encontro com o equivalente a Edward, relatado por Somerset Maugham em seu
livro de viagens
Cavalheiro de salão, embora Gomes tenha encontrado na
história uma oportunidade de aludir ao cinema clássico, uma inspiração
irresistível para sua filmografia.
O recente filme de Gomes tem muito
em comum com
Tabu, da convenção o texto colonial e a narrativa
melancólica do romance, até seu retorno a aspectos do cinema mudo, como íris e
intertítulos. Sobre aquela época, o diretor diz que “havia mais talento dentro
de um sistema mais codificado — para realizar o potencial do cinema, que é
inventar um novo mundo. Filmar o nosso mundo, mas também inventar um mundo
paralelo, e isso aconteceu com uma força que é mais difícil no cinema hoje.”
Apesar disso, sua intenção não é
simplesmente reproduzir o que desapareceu: “Para mim, o importante é misturar
tudo, não renunciar ao papel que o cinema pode desempenhar hoje, filmando o
mundo de hoje, tentando pensar o mundo de hoje, mas também não deixando de lado
a memória do que foi o cinema e de suas potencialidades.”
Talvez seja por essa razão que
Grand
tour se deleita com anacronismos. O filme foi rodado em duas etapas:
primeiro, Gomes levou o protagonista em uma viagem pela Tailândia, Vietnã,
Filipinas, Japão e China, onde ele e sua equipe filmaram em vários formatos,
incluindo filme colorido de 16 mm. As cenas em que os protagonistas aparecem
foram filmadas em um estúdio com cenários e figurinos do início do século XX,
em preto e branco, e por isso a história é frequentemente contada sob a
perspectiva da invisibilidade; ou seja, acima das imagens da viagem de Gomes,
ouvimos uma narração na língua de cada país sobre o que não podemos ver; às
vezes, ele fica em silêncio para nos deixar assistir à filmagem de um filipino
cantando “My Way” e, tomado pela emoção, engasgando no refrão final. Em Saigon,
a câmera filma a avenida atrás de um veículo e observa uma valsa espontânea de
motociclistas se movendo como sementes de dente-de-leão no ar.
Grand tour é um teatro de
imagens onde a ficção se entrelaça com o documentário para produzir uma ilusão.
Voltamos ao teatro de marionetes, no qual a mão ou o corpo inteiro do
marionetista às vezes é visível, mas sua presença não deve ser suficiente para
nos distrair das emoções, pois é parte inerente do trabalho. Em uma cena do
filme presenciamos o inusitado: a edição de Gomes nos mostra os técnicos de
iluminação de
Grand tour observando um personagem morto e depois o vemos
reviver. Os cineastas, os marionetistas do personagem, se emocionam e dão um
passo para trás em relação à sua própria criação. “O incrível dos fantoches”,
diz Gomes, “é que como elas é possível realizar milagres. Como no cinema. Já vi
milagres em filmes antes; nunca os vi na minha vida.” O cinema, pelo poder da
imaginação, é uma utopia, um sonho, onde o impossível tem lugar, e onde a
inocência do espectador assina um pacto de fé.
Comentários