Decomposição de The call of Cthulhu

Por Eduardo Galeno


But the horror, set and stable,
Haunts my soul for evermore.
 
— Lovecraft



Desenho de Cthulhu por Lovecraft

 
1
 
Nas entranhas da escrita lovecraftiana, o modernismo frio só pode corresponder a uma sociedade quente. O modo no qual supunha a atitude que contempla o desejo não resolvido, impossível, dessa figura esverdeada, com seu bafo gélido, seus múltiplos tentáculos e expressão aterrorizadora, chamada Cthulhu, não é mesmo um tipo específico de resposta? Não se sabe ao certo, pelas linhas que sucedem o conto, da necessidade instaurada ao povoamento da entidade em circunstância e por intermédio do serviço dessa esfera social. Pode ser caracterizado, entretanto, o nivelamento inerente encontrado (muito) antes, em e após 1928. O chamado de Cthulhu, é verdade, se coloca numa contramão, mas contínua, do modernismo literário, porque amplia o horizonte para além do princípio utópico-redentor e, por outro lado, refaz um percurso de um universo que nem mesmo a teleologia modernista captou. Em outros termos: num polo, o mito de Lovecraft encontra a pós-mitologia, começo da violenta expansão da razão científica e, num outro, preponderando um cataclisma rítmico que engendra, em absoluto, um desvio não-antropomórfico, no lugar da arque-historicidade. Devido ao esboço ínfimo que abarca um não-tempo (“te traigo la visión desde el no tiempo”), um não-espaço — a situação total em que Cthulhu está —, essa mistura entre texto e organização da modernidade é dupla: de início, no primeiro, como fábula (textualidade) e como, no restante, em deleite de uma dinâmica que não representa, ou seja, ela repete. 
 
“Esse relance, como todos os temíveis relances da verdade, foi um lampejo decorrente de uma conjunção acidental de coisas separadas — no caso, uma notícia de jornal e as anotações de um professor universitário já falecido.”
 
Paralelamente, tudo adquire um ar de estranheza no ctônico conto. Tudo insinua aparência, mas ao mesmo tempo realidade. O que permite descambar na tortuosa duplicidade é o acidente, manejado nas letras pela sutil necessidade que impera — não menos paradoxal — quando Lovecraft narra esses anacronismos. O horror é um ponto de susto radical, e à arte — sabe lá como uma escrita pode intuir o movimento —, somente, com o seu caráter profético, pôde apontar ao indiferente, a uma fórmula que desenvolva distância.
 
O modernismo é transformado, enfim, em object of horror. A fragmentação e o ensejo das citações dispersas (frase criada por uma sintaxe deslocada, intertextos, carta, ficção metanarrativa, texto de jornal) contribuem tanto na continuação da literatura quanto na sua superação na forma pulp, longe do elitismo a cercear a criação e reprodução. Isso progride um agudo contrabalanço diante da Razão, já que demonstra, no ambiente do gênero do conto, a desqualificação unânime do eixo de tempo-espaço, a fragmentação que, quem sabe, está prenunciando a face escatológica pré-moderno/moderno/pós-moderno/apocalipse na literatura. No sentido de reação, Lovecraft introduz extrapolações ao modus operandi, permitindo a ascensão do estranho, totalmente estranho, exterior radical — mais do que Poe — na mundanidade. Em outras palavras, essa intrusão definitiva estrangula a ideia de mundo (entendido como ordenação homem-Ser). Entropia pura. Desregulamentação. Aceleração.
 
Nessa virtude de fuga ao cálculo, o conto sobre a aparição de Cthulhu apresenta um ato volitivo que descodifica a máquina. Quem atua, a priori, persiste em dizer e abalar a Razão do signo, inferido diretamente na economia política, do plano progressista, linear e monumental nomeado História. A Aufklärung desperta o interesse de ser pura destruição antes de qualquer coisa, cujo poder repercute a “plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude”, isto é, o que a Razão universal realmente faz não é tão só conter os fluxos da Natura perante a si, como também desvelar sua incapacidade de se deter em efêmera e contingente. Lovecraft sabe que, se isso não planejasse uma extinção de qualquer especialidade cronológica ao humano, outra coisa não haveria de provocar. A aposta mediante ao infinito recondiciona a finalidade do sujeito moderno, qualidade que escorre no topos do pensamento sobre o progresso. Deslocado, é óbvio. O jardim das delícias terrenas de Bosch é, finalmente — com o seu vapor disjuntivo — defraudado, aniquilado como posição. A força do colapso inicia um tipo novo de afeto: se os modernos não têm capacidade nenhuma de, sozinhos, se desvencilhar do devir-loucura de suas sociedades, Lovecraft faz do horror (da leitura) o medo do fim (da consciência).
 
2
 
Não são metáforas. É tudo real. O impossível é concebido, mas acontece.
 
Lovecraft, a par da concatenação que abre as portas da extensão da realidade, mais sinistra e exógena, a par dos devires cósmicos, condena o idealismo e afirma ser um escritor materialista. Claro, absorvendo não o que conhecemos por realismo clássico na literatura, tripudiando tudo o que incide em posicionamento contrário ao seu niilismo visceral e transtornado, o materialismo gnóstico lovecraftiano pressupõe a finitude do Homem, pior ainda do que aquela do phenomenon de Kant (embora ele, em matéria de estética, coincida com o alemão das críticas no que sugere ao alargamento do ideal da representação, cujo momento de auge vai ser Baudelaire e os surrealistas). Fico pensando, aqui, também nas táticas absorvidas daquele prefácio organizado por Hugo em 1827. O projeto de Do grotesco e do sublime reclama para si toda a atmosfera que, consciente ou não, se projetava frente a autonomia das várias artes durante a revolução romântica. Os contos de terror pós-XIX se distanciam drasticamente do plano retórico do feio pré-romantismo. A nova anatomia incendeia justamente o que antes estava submerso: como o canto bonito da personagem horrível de Eraserhead (Lynch).
 
Fica evidente que a predominância de Cthulhu, a Coisa, emerge da característica de dominação numenológica (perspectiva de deus) para o perceptor. O Grande Mistério aflige a psique, de modo que “Deus”, assim como em grande parte de toda a tradição filosófica, se vê colocado a um termo de conjuração para realidades maiores às que estamos habituados: “um dia a compreensão ampla de todo esse conhecimento dissociado revelará terríveis panoramas”. Badiou chegou a chamar essa apresentação de abertura à acessibilidade do Ser, “ali mesmo onde o Ser não se pode sustentar pela categoria [...] do objeto”. Sujeitas à rasura, as tensões ontopoéticas disseminam a autopoiesis da prática literária no próprio mundo, criando pontuações-esquizo na direção dos perceptos, à la Wilcox, o pintor dos sonhos delirantes.    
 
Como é óbvio em tantas teorias — institucionalizadas pela psicanálise —, a ideia sobre o sonho parte do princípio no qual o mundo exterior se deslocou. Mas não existe nada assim no conto de Lovecraft. De novo, é tudo real. O conto diz: sou real.
 
Quando o já tão analisado juiz Schreber, ao escrever suas alucinações em Memórias, dedica parte das entronizações femininas à experiência do divino, ele quer fazer da língua estrangeira uma intromissão, partindo do que é imanência para chegar à beatitude plena. Os vários signos que orientam a sua experiência são o excedente de inconsciência, partilhado e morto, naturalmente, pela materialidade gráfica. Acontece que, em Wilcox, o personagem “taciturno, de aspecto neurótico e eufórico”, sucedem o mesmo que em Schreber.
 
Não as mesmas propriedades, mas a mesma textura paraleliza ambos. Textura essa criada a partir dos elementos identificáveis num dispositivo terceiro, orientado entre o sensível e o inteligível, cujo nome o platonismo ousou chamar de khôra, nesse “espaço neutro de um lugar sem lugar, um lugar em que tudo se marca, mas que seria ‘em si mesmo’ não-marcado”. A saber, Schreber e Wilcox são espaços situados em disfunção espacial. Lidando com mortos, sem o desejo de lidarem com eles, dupla dilacerada pelo Real.
 
We are mankind/
We are manikin/
With and without mind/
With or without Darwin. (Broadcast)
 
É evidente: o eclipse que vem aí subtrai a diferença num único clamor. Na verdade, não significa uma subtração, e sim indeterminação. O campo indeterminado, na concepção de Scotus, por exemplo, é um desses sintomas que persegue Lovecraft. Através do objeto horrorizado, Lovecraft amplia os “extremos unidos por um conceito (médio) uno” (apud). Em outro sentido, ele exclui a binariedade nesse quadro! Daí abrindo uma brecha à pós-metafísica, já que tenta, pela literatura, alçar voos maiores que os da filosofia.
 
É preciso dizer, em cima, que O chamado de Cthulhu experimenta o Real por ele próprio ser real. Sua singularidade, posta em desequilíbrio constante além da arquitetura da página, não apaga a existência comum, com os outros entes. Nisso consiste o poder de descodificação, pelas imagens, através da mediação entre o transe e o sonho. Irrevogável, esse êxito nasce da compreensão das impossibilidades (antes de Samuel Beckett, já falava em inominável): não há diferença alguma que rompa pedra, animal e homem: nenhum dos três completa a Essência e, por isso, a condição necessária da arte moderna se refere imediatamente ao problema do impossível. Verbi gratia do distanciamento entre especulações distintas, Lovecraft renega Heidegger, filósofo-modelo do século XX, nesse quesito: embora a existência do lamento da arte de não conseguir dar acesso ao pleno, ela consegue ao menos puxá-lo em desintegração: “foi dos artistas e dos poetas que as respostas pertinentes surgiram”.
 
3
 
O Sol negro da melancolia da escrita lovecraftiana está menos no esoterismo nazi contemporâneo do que em Kristeva, sintomatologista da depressão contemporânea. Irônico. Em particular, deve vir a explicar o dilema da abjeção perpetrada nos personagens racializados. Nesse ínterim, o efeito da operação abjetar conduz ao estado de ser abjeto (ou pode ter o caminho inverso), cujo refluxo atravessa a interação de contraste entre as duas esferas (como é possível deslizar entre expulsar e ser repulsivo?). Na constituição do luto pela situação do derrame ocidental perante ao Outro (corpo-dejeto, sempre), fruto do racismo que é puramente invenção moderna, o escritor vira, mesmo que às avessas, um “etnógrafo”. O trâmite de expulsar qualquer sublimidade nos corpos outsiders de O chamado de Cthulhu, em oposição à interpretação geral, não é um simples ato de xenofobia dentro da vida de Lovecraft, mas de xenofobia metamorfoseada no rito essencial da literatura, que é o de denegação absoluta. Puxando ao máximo o carretel do weird na transmissão dos aspectos díssonos e radicais para o transbordamento do sujeito, a mitificação da biografia se esvai. Basta lembrarmos das palavras lançadas de Freud, em 1936, a Arnold Zweig: “quem se faz biógrafo se compromete com a mentira”. Biografia e literatura são autoexcludentes. Toda verdade literária é sem rosto.
 
Dito de um jeito, as passagens da mescla das vozes fictício-narrativas e biográficas não têm fundo. Noutro lado, elas são proféticas, reais, visto que, nessas “violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o ameaça e lhe parece vir de um fora ou um dentro exorbitante”, grandes facções da arte contemporânea tomaram a frente do devir-lixo, da abjeção (a drag queen Divine de Pink flamingos, por exemplo).
 
“[...] todos os prisioneiros revelaram-se homens vis, mestiços e mentalmente perturbados.”
 
Assim, os diabólicos esquimós, o vodu haitiano, os nativos da Índia, os imortais chineses e afins preconfiguram o phobos como ornamento do dinamismo criativo (o desprendimento entre fobia e poética é superado). Segundo Warburg, desse limiar da consciência, passa ocasionado o estímulo do cérebro como medium à memória, por meio do qual a chama acesa da força fóbica incendiava os primórdios da humanidade, “o tempo todo e para sempre — esquizofrênica”. Nas sociedades primitivas, o horror aos raios, que caía do vórtex do céu, criou os primeiros deuses. À vista disso, construído pelo evento, a “assimilação ao corpo transcorre entre o homem e o ser alheio, animado ou inanimado”, respaldando o indígena de Warburg no percurso à acumulação daquele indício de pujança mitológica dos adoradores de Cthulhu. Querendo ou não, “ídolos trazidos em épocas imemoriais das estrelas sombrias” ratificam precisamente o elo biomórfico do totemismo à ideia impregnada na estátua da Coisa. Ancestralidade pulsante. Aqui, estes espasmos ultrassensíveis, hipersensibilidade psíquica para o texto de Lovecraft, nascem “como imagens oníricas vindas da região proibida do ímpio demonismo pagão” que, aliás, ligam o alto Renascimento italiano aos rebentos assíduos do onirismo dos pueblos. Para os totêmicos dos Estados Unidos, “a temida serpente deixa de ser temível assim que é adotada como pai”; para aqueles do conto, o mesmo: Cthulhu é o pai de todos os subterrâneos.
 
O alien — primitivos, loucos e artistas — infecta a física do organismo como se fosse um vírus. Em O chamado de Cthulhu, a existência da fobia branca, enquanto pacto sereno da intolerância, tão somente é verificável quando se sublinha a inexistência de representações, só ao caracterizar a crise simbólica imbricada ao texto. Paradoxal. A negação, desse jeito, dos abjetores, dá sentido menos à não responsabilização, à evacuação do sujeito que, em outra via, à emergência da elevação insurreta do povo dos grafos ao calcanhar de Lovecraft. O que é incômodo (Das Unheimliche) em sua visão configura, precisamente, o que há de tão familiar (Heimlich). Esse recalque perante a diferença possui o informe batailleano na dimensão conceitual, despojado pela transgressora semelhança descontínua, igual ao domínio do dedão do pé (orteil) da Documents, “sedutor-repulsivo; fascinante como uma contradição”.
 
Atracamos, aqui, que estas experiências místicas e de delírio, refletidas pelo caos originário e também ulterior, as superstições relatadas tão malvistas pelos ocidentais, não estavam em distâncias abissais a Lovecraft, como se acostumou a ser dito. Muito pelo contrário. Transferida em total apego aos doentes da cabeça e aos desajustados, os abjetados, a arte e sua especulação plantam continuamente perfurações na civilização, ao menos quando conflagram a ferida, a expondo. É oportuno falar que a produção lovecraftiana faz parte desse escopo. Lovecraft também conjurou os mundos invisíveis a favor da “sensação de vertigem espectral”, próxima àquela experiência, nomeada nas Cartas por José de Anchieta em 1560, durante a colonização.    
 
4
 
Tornar o problema da diferença entre vida e morte enlameia a matiz. Mas pouco se acha, nesse resgate, alguma coisa de predomínio consciente. Porque, além das dessemelhanças particulares entre mortalidade e eternidade, ainda há uma tremenda virada de uma na outra. O jogo de espelho resulta numa suspensão (anastrófica?), mesmo que animada pelas sombras da extinção. Novamente, não existe nada por trás disso, a não ser uma profunda desrazão, não capturável pela teoria. Talvez um dos poderes de Cthulhu seja esse: o de prolongar, demorar a hora do desastre sendo ele próprio o ente do dis-aster. O dístico do árabe louco Abdul Alhazred inclina, de maneira perfeita, o que dissemos — Não está morto o que eterno jaz/ No tempo a morte é de morrer capaz —sobre a impossibilidade. Sabemos da autonomia absoluta do Nach ao Leben, mas não podemos esconder a dificuldade de pensar as sobrevivências no interior do conto, muito menos se colocadas as maneiras pelas quais elas aparecem. Portanto, a dinâmica interpõe a conversa violenta e incessante entre termos, variados termos que se conectam em contiguidades, preponderantes em tríades e quadrados (como exemplos distintos, vemos homem-realidade-Cthulhu, vida-morte-sobrevivência-extinção, artista-louco-primitivo, raça-medo-desconhecido-sujeito, autor-leitor-horror etc. etc.). Por sinal, esse exercício em que um termo se choca com o(s) outro(s) é superior, em relevância, na apreensão do movimento ambíguo de Lovecraft, um tipo de condição necessária. H. P. Lovecraft: mestre dos quiasmas. H. P. Lovecraft: mestre dos quiasmas… declinação da geometria errante, porém ainda geometria.
 
Vida e morte — dois nomes que se completam? Não e sim. Se complementam à medida em que o transcendentalismo recorrente em seus caminhos se espatifa no chão, já que a finalidade é a de serem possuidoras da nuança. No entanto, sobra, para nós, apenas a separação radical: “cada termo da disjunção exclui o outro”. A certo preço, a “Cidade Ciclópica de pedras verdes e musgosas”, de geometria toda errada, escapa do labirinto. A certo preço. Enquanto ficção, esse preço é pago pela continuidade do impasse: por mais que Cthulhu acorde do sono de milhares de anos, pela telepatia ainda estava apelando à irresoluta comunicação (morto-vivo, sobrevivente). A famosa sobrevivência que Baudrillard rasga e cita em 1976, onde a realidade, na simbiose com o imaginário, desfaz todo intercâmbio. No meio, o simbólico pode assumir nisso uma parte à parte do alinhamento entre R e I, assumindo a sobrevivência como inimizade. É exatamente o acontecimento em O chamado de Cthulhu: se o código determinado pula do círculo vicioso da correlação, a razão se deve à estratégia da échange [troca]. “A vida entregue à morte” é a tempestade na qual Lovecraft adentra, pois, a partir da submersão total, da loucura que vem do mar, crueldade matemática e poesia se encontram e se esgotam num único enunciado. A vida e a morte são dissolvidas se imaginário e realidade são (RI = S).
 
“Na casa em R’lyeh, Cthulhu, morto, aguarda sonhando.”
 
Podemos intuir, ao menos, algum contato à conjuntura de paradoxos de Cthulhu.
 
Primeiro, a ficção é apenas uma caixa de imagem, gerada por um espetáculo de insignificância. Nesse lado, o insignificante possui a palavra impura em deflação para a alteridade, mas esta mudança de forma requer, sim e bem mais, uma mudança de conteúdo. Exacerbar (extrair) a palavra é escalpelar sua notação. Sem ser descrição, formada em ligeira consonância com o cosmos, a única certeza que o grande mito de Cthulhu engendra é o da queda (contre le monde, contre la vie, inseria Houellebecq). Essa força potente, eficaz querela ao espalhar no universo um desejo insaciado, é a força libidinal da jouissance ctônica sem freio. Para tanto, não pode haver um tipo pressuposto de misantropia na escrita lovecraftiana.
 
Não estava submissa a esses termos. É outra coisa, uma coisa mais profunda (superficial em plano de referência, no entanto). Se Lovecraft repara no esquema cosmológico da comunidade através dos óculos da irreversibilidade entrópica, o antropismo está nesse pano de fundo colocado em xeque (em conjunto, igualmente, ao finalismo da vida). Como se pode ver, a adoção niilista de sua melancolia frente ao cosmos revela um modo pelo qual não corresponde, de jeito algum, ao solipsismo. Lovecraft abala a vida, e tem razão em fazer, frente ao próprio significado utilitário impregnado no coração do conceito de vida enquanto tal, enquanto bandeira teológica da modernidade.
 
Quem não pensa na extinção, pensa a partir de Cthulhu. Ela vai vir. De fora ou induzida por dentro. E ele espera, espera sonhando…
 
“[...] eu jamais dormirei tranquilo outra vez ao pensar nos horrores constantes que nos espreitam por trás da vida.”
 
5
 
A residência da catatonia no aspecto físico do Grande Ancião, essa fissura necromante que designa um fascínio extensivo às portas do nosso mundo e da nossa cultura, é pura demonstração de real vínculo. Estamos presentes à sincronia das diacronias, perpetuamente postas num carrossel fantasmagórico. O homem e o mundo daquele tempo — marcados pela quebra da Bolsa de Valores americana de 1929 —, já não eram o mundo e o homem de O chamado de Cthulhu. Aqui, a tese do visionário artista acompanha a ressonância das ondas e marca os passos antes do acontecimento. A arte consegue ter predileção como quase-evento. Ela está entre a luz que abre a história e o objeto passante na agonia da escrita. O som por detrás da porta rangendo, nesse tom, é um sinal do que se passa na hora vindoura. Rápido, o caráter ilimitado que amplia a visão para o futuro é tão violento quanto os cultos às figuras monstruosas. Até em referência ao passado mítico, como já sublinhado. E, dessa forma, forças são conjugadas, mas uma é diaspórica para cima, outra retrocedente para baixo. Se amplia. Ampliar até desconcertar e atingir.
 
Lovecraft, um pós-moderno em eras modernistas? Um modernista cheio de nojo e ódio e negatividade e, portanto, um reacionário não-modernista? Ou um revolucionário de sinal trocado? Quem sabe um modernista que renegou o modernismo…
 
Por essas e tantas, não há uma linguagem, uma arte, um livro em abstrato e geral. As formas descontínuas aperfeiçoam o não-lugar por sua concreção. É ali que a peça está pregada. É exatamente ali, nesse espaço vazio, em que tudo está. A possibilidade de sentido dessa ruptura não vem na análise das formações subsequentes de linhagem que traçam Lovecraft ao século XXI. Pelo contrário, já estavam lá. Tomando Hegel de empréstimo, a coruja de Minerva da literatura levanta voo mesmo antes, na madrugada, antes do alvorecer. A criação, por exemplo, de virtualidades digitais, recentemente vindas, não só qualifica a ficção lovecraftiana no anseio hipersticional, como também afirma sua prosa deslocada, mas idêntica, ao nosso século. O século XXI é marcado pelo gênio híbrido (a figura de Cthulhu). Não, como afirmam os angélicos transhumanistas, pela singularidade do tecnocapital, que busca o condicionamento vigorante, rumo à imortalidade, do corpo. Mas sim pela ideia de descentralização do homem, pela quebra desse interdito secular que tantas e tantas exemplificações demonstraram ser constituído de uma poderosa sinalética dominante. Lovecraft não quer defender uma nova forma de homem, apesar de apresentá-lo.
 
No seu conto sobre Cthulhu, ficam em jogo, em pêndulo, esses eixos nauseantes: de um lado, a superação do pensamento que afirma a inexistência (ou impertinência) das agências não-humanas e, por fim, de que estamos vendo nascer, sob nosso nariz, após a morte de Deus e da Alma como receptáculos adjacentes ao Mundo, uma nova organização de poderes. Hoc ipsum est.
 

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