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Marc Ferrez. Ilha de Paquetá, 1885. |
A Associação Brasileira de
Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) realiza
anualmente um encontro — o Ghost Story Challenge. A ideia é, repetindo o que
ocorreu com o lendário encontro, em Villa Diodati, entre Mary Shelley, seu
esposo, Lorde Byron e seu empregado Polidori, inspirar os participantes com
ambientes e temas fantásticos.
O local escolhido foi a ilha de
Paquetá, no fundo da baía de Guanabara no município do Rio de Janeiro. Ainda
que bastante abandonada pelo poder público atualmente, a ilha é muito
preservada e guarda histórias que remetem ao Império e ao romantismo.
Eu poderia falar do livro que trouxe
o romantismo para o Brasil,
A moreninha (1844), escrito por Joaquim
Manuel de Macedo, autor que inspirou o jovem José de Alencar. De Pedro Paulo
Bruno, pintor que imaginou a ilha como refúgio bucólico romântico. Ou mesmo de
nomes como João Saudade (um escravizado), do Solar del Rey (a casa de um
traficante, Brigadeiro Gonçalves da Fonseca, que enriqueceu vendendo pessoas e
abrigava D. João VI) ou mesmo da lenda de Maria Gorda, que também remete à
escravidão. Euclides da Cunha, o rei português Dom Carlos I, Nelson Rodrigues, todos
são nomes com alguma ligação com o bairro. A ilha recebeu também muita gente
que queria evitar a sociedade ou foi obrigada a isso: José Bonifácio de Andrada
e Silva, exilado, é todo um universo. Ex-presos políticos e torturadores
também. Havíamos decidido incluir o tema ditadura na pauta, com uma palestra
com a advogada Ana Mulller, que ajudou a criar a Lei de Anistia em 1979. Mas
minha reflexão deixa esses fantasmas em busca de outros.
Foi escolhida uma casa magnífica,
na ponta da ilha, da qual se vê tanto o nascer como o pôr-do-sol — a Chácara da
Moreninha. Minha função era coletar e expor histórias que inspirassem essa
turma. Cheguei dias antes, Seu José (também responsável pelo centro cultural anexo)
me passou uma pilha de livros e comecei por ordenar minhas pesquisas. Aquelas
páginas amarelas tinham toda uma vida que eu não havia podido ver. Da minha
janela, via as aves soberbas, as pedras mudando de cor com o horizonte, um
peixe na boca de algum caçador, pensava nas horas que escorriam.
Falando com os moradores da ilha,
muitos ficaram interessados nas coisas que eu ia contando. Outras coisas me
contaram a senhora que cuida da Igreja (de 1698), o vendedor de açaí. Em todo
momento eu sentia a culpa por não ter o tempo necessário para ler tudo aquilo,
pensava como era complicado encontrar material mesmo nessa era digital e me
angustiava com a distância da população em relação à sua própria história.
A experiência foi incrível. Nosso
tour
empolgou a turma, a escritora Úrsula Antunes trouxe muitas referências sobre o
gótico e suas mutações contemporâneas; falamos muito da poluição da baía e as novas
abordagens focando na vingança da Natureza como nos havia ensinado o escritor e
pesquisador Oscar Nestarez. Ainda assim, aquele gosto amargo não saía da minha
boca.
A ideia de que o tempo foi
manipulado para nos distanciar de tudo que significa nossa luta e nossa
memória. Ainda mais que foi bem próximo da Caminhada do Silêncio, dia em que
lembramos as vítimas do regime de repressão patrocinado por empresários e militares,
esta também bastante esquecida.
Pouco antes, na cidade, na qual o
Império foi apagado pela velocidade do capital, meu bairro havia sido devastado
por árvores caídas no meio das calçadas, troncos sobre os fios elétricos,
postes derrubados pelo vento. Como criamos cidades tão monstruosas que sentimos
na pele uma natureza apagada? Ainda assim, seguimos nos movendo com gases
tóxicos, nossas árvores não podem se alimentar, presas no cimento, as
prefeituras ausentes como se Império fossem...
O buraco na rua fazia aniversário. Mas a primeira coisa que morre é o
imaginário. A imaginação repousa na cripta, o que se move é a máquina.
Esquecemos a história, esquecemos a natureza e
somos sufocados por efeitos que mal compreendemos.
Na ilha, o contraste entre a
riqueza do passado e o deserto de informações no presente é um horror em si
mesmo. Sem fantasmas, somos corpos ocos a serem ocupados por regimes de
produção de algum grande “empreendedor”. E, paradoxalmente, a reunião de tantas
pessoas generosas e imaginativas nos alimentava. A água suja da baía ainda se
movimentava com uma vida resistente. No fim do mundo, o livro pode dar vida aos
mortos. Ficamos observando o nascer do sol com o pássaro cinzento parecendo ter
milhares de anos.
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