Visitações à Defesa de Palamedes, de Górgias

Por Afonso Junior

Antonio Zanchi. Palamedes e Odisseu. Museu Nacional de Arte da Bielorrússia


 
Em Análise dos argumentos jurídicos presentes na Defesa de Palamedes de Górgias, Thatiane Santos Meneses se debruça sobre o texto gorgiano que recorre a um episódio da mitologia: Palamedes discípulo de Quíron, descendente de Dânao, rei do Egito, foi enviado à Ítaca para buscar Odisseu para a guerra; usando de astúcia, desmascarou seu estratagema (a loucura fingida); segundo versão posteriormente fixada por Gaius Hyginus, autor latino, Odisseu mais tarde forjou uma carta de Príamo, rei dos troianos a Palamedes e conseguiu condená-lo à morte.
 
O livro, que tem origem em dissertação defendida na Universidade Federal de Sergipe, começa por mergulhar no mundo dos sofistas, no qual Protágoras colocará em jogo o conceito de verdadeiro, já que cada um o julgaria a partir de como chegam-lhe os fatos e as informações, e Górgias defenderia que entre o lógos e as coisas reais há um abismo, e quem diz reproduzir fielmente a realidade incorre em engano.
 
A autora analisa o contexto desses pensadores — uma Atenas marcada por debates políticos que exigiam captar a atenção do público e demandavam “mestres do falar”. Ela pergunta se seria possível partir do conceito de filosofia estabelecido por Platão para se definir os limites sobre saberes válidos.
 
Na mesma linha, Silva (2013) afirma:
 
“Sabe-se que em  meados  do  século  V  a.C.  o  sistema  educacional  antigo,  a  ρχαα παιδεία (Nuv.961), baseado no ensino dos poetas canônicos, na ginástica e na música, teria se revolucionado com a chegada dos sofistas (...)  O  movimento  surgiu,  segundo  Poulaklos  (1995,  11-15),  da  necessidade  de  treinar  cidadãos  para  os  mais  variados  cargos  políticos,  no  contexto  da  instauração  da  democracia  na  Grécia  no  século V a.C. Em meio a tal configuração, discursar bem, tanto para defender-se num processo judicial quanto para angariar votos em seu favor, seria fundamental.” (p. 81)
 
Em meio a atividades práticas que, entre outras coisas, fundariam a Ciência Política e a Teoria do Direito, novos conceitos e perguntas surgiam, como no caso da Lógica, estruturada em meio a posições contrastantes. Ainda que a figura do advogado não fosse presente, mostra a autora, já que os logógrafos (cidadãos reconhecidos por sua habilidade oratória) repassavam ao acusado seu “roteiro” para a defesa, os tribunais já contavam com 201 cidadãos escolhidos por sorteio e havia leis estabelecidas pelo menos desde Drácon (século VII a.C.).
 
Górgias nasceu na colônia grega de Leontinos na Sicília entre 485 e 480 a. C. Foi enviado como embaixador para Atenas em torno de 427 a.C. para solicitar ajuda militar contra Siracusa, no que foi bem-sucedido; retornou para Atenas alguns anos depois e ensinou na cidade em troca de pagamento; foi convidado a abrir os Jogos Pan-Helênicos obtendo tamanho reconhecimento que seus discursos passaram a ser lidos nessas ocasiões. Foi conhecido pelo uso de figuras de linguagem e impactou grandemente a arte da oratória, com seus desdobramentos no período helenístico e romano.
Logo no começo do seu discurso, o filósofo mostra como pretende usar a forma para defender a verdade:
 
“Se o acusador Ulisses me acusasse visando a salvação  da Grécia,  ou  porque sabia perfeitamente que eu entregara a  Grécia  aos  bárbaros, ou porque  presumia  que,  de  qualquer  forma,  as  coisas  assim  se  passavam,  nesse caso,  ele  seria o  melhor dos homens. E como não, se ele salvava a pátria, os filhos, a Grécia inteira, punindo, além disso, o culpado? Mas, se foi por inveja, por desonestidade e perfídia  que  ele urdiu a  presente   acusação,   do   mesmo modo que, por aquelas razões, seria  considerado  um  excelente  homem,  por  estas  mesmas será  considerado  um  péssimo  homem.” (Górgias, Defesa de Palamedes, 1, apud Mesquita, 1994, p. 50).
 
Thatiane Santos Meneses analisa pormenorizadamente os argumentos de Górgias para estabelecer a inocência do personagem: mostra o caráter de Odisseu, exibe a incoerência de se provar a inocência por um ato que nunca aconteceu, defende que não há como uma traição desse tipo passar sem testemunhas, cita o proveito que a comunidade obteve pelos gestos passados do herói, propõe que trair os seus atrairia males também para si etc.
 
De modo surpreendente, a pesquisadora (a partir de sua leitura da Retórica de Aristóteles), demonstra a infiltração de ideais gorgianos na tradição “ortodoxa” da filosofia. Tanto a necessidade da probabilidade (estabelecendo verossimilhança) como da apresentação de provas (testemunhais ou materiais) são elementos herdados na Retórica que seguiram parte do discurso jurídico. Aristóteles falará nas deduções lógicas dos entidemas — quando se mostra que, sendo verdadeiras certas proposições (aceitas pela maioria das pessoas), outras diversas têm de ser verdadeiras (por exemplo: Dorieu recebeu uma coroa como prêmio, ou seja, foi vencedor em Olímpia). Entidemas (chamados silogismos na dialética) podem ser demonstrativos (quando acusação e defesa aceitam as mesmas premissas e a conclusão provém das premissas) ou refutativos (quando a conclusão não é o que prega o adversário). O estudo mostra como Górgias usa tanto entidemas demonstrativos como refutativos ao longo do texto.
 
Do mesmo modo, como dito, Górgias usa o argumento da verossimilhança tão cara a Aristóteles — a coerência dos fatos baseada no que acontece comumente.
 
Fazendo bom uso de sua experiência como advogada, Meneses aponta sutilezas que desmontam a simplificação que acompanhou a figura de Górgias. Ressalta a relatividade dos termos usados como denúncia — como Sócrates foi, por muitos, chamado também sofista. Outro exemplo é quando Górgias afirma que nem todas as pessoas serão persuadidas pelo discurso, porque contam suas opiniões firmes, as quais podem ser fonte de enganos. Ou seja, ainda que o discurso possa ajudar na criação de um ambiente e uma emoção que aproximam o ouvinte da visão do orador (por exemplo, com o que Sêneca chamará demostrandae rei causa), dá-se aqui uma recepção negociada (lembrando o que hoje se estuda nos estudos literários e da comunicação como Teoria da Recepção).
 
Colocando ênfase na necessidade de provas objetivas, o leontino afirma a prevalência da verdade, justamente o conceito que se popularizou (apressadamente) como sendo aquele contra o qual proclamava. “A verdade dos fatos” deve surgir imediatamente das palavras ouvidas ou se deve usar um método de precaução para evitar o erro: “aguardai mais tempo e decretai a sentença de acordo com a verdade” (Defesa de Palamedes, 35, Op. Cit., p. 59). Reunindo diversos autores que já trataram de revalorizar a prática e a teoria dos sofistas (entre eles Aldo Dinucci, seu orientador) a pesquisadora atualiza o debate sobre os sofistas e sua influência.
 
Por fim, o texto tenta responder à pergunta colocada anteriormente: Defesa de Palamedes seria um material didático seguido como modelo jurídico ou apenas peça de propaganda de Górgias? A autora relata que, pela primeira vez, é reconhecido o peso da educação nas possibilidades do cidadão: não apenas a hereditariedade, mas o esforço poderia definir o agir em sociedade. E cita a frase de Jacqueline de Romilly (2017, p. 327) sobre os sofistas: “Tudo: eles provaram, criaram, inauguraram tudo...” Conclui-se que, em Defesa de Palamedes e Elogio de Helena, Górgias teria como objetivo demonstrar que ambos tiveram condenações injustas, criando um modelo de retórica judicial que será seguido.
 
Traumatizados que somos pelos efeitos da oratória fascista que levou à Segunda Guerra, tendemos a esquecer que a persuasão só é possível em regimes de igualdade (ainda que parcial); a tradição e a autoridade impedem ou anulam acordos coletivos. Por outro lado, a onda pós-estruturalista (em que pesem os exageros) nos deu maior consciência sobre os efeitos de verdade que estruturam mecanismos de dominação; nossa percepção de ciência é muito mais próxima a de hipóteses provisórias que são coerentes com um “mentir em conjunto” capaz de estabelecer previsões efetivas, do que com o determinismo laplaciano do século XVIII.
 
Também aceitamos que muitas vezes podemos operar os fenômenos sem saber exatamente as causas. A sociedade capitalista, que exigiu pagamento por toda atividade, também rompeu com a maior acusação repetida contra os mestres sofistas. Tudo isso nos aproximou deles, em que pese a propaganda de Platão; não por nada “sophistes” eram chamados os Sete Sábios da Antiguidade.
 
Um dos maiores achados da pesquisa é justamente a explicitação do pensamento de Górgias, que contradiz muitas vezes o estereótipo sobre ele. Partindo do material conciso de um discurso-modelo de uma defesa, a autora soube contextualizar o sofista, posicionar-se no debate relativo a uma nova recepção desses pensadores e ampliar a argumentação trazendo relações com outros autores clássicos, em especial Aristóteles. O desafio que representa contrapor teses secularmente estabelecidas com análises minuciosas deve ser valorizado. A contribuição na abertura de um debate necessário sobre a revolução do período é notável. As relações com nosso próprio tempo, que se voltou sobre a linguagem, e os debates contemporâneos sobre relativismo e verdade científica são um campo a ser explorado.


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Análise dos argumentos jurídicos presentes em A defesa de Palemedes, de Górgias
Thatiane Santos Meneses
Montecristo Editora, 2023
79 p.

Romilly, Jacqueline de. Os grandes sofistas da Atenas de Péricles. Trad. Osório Silva Barbosa Sobrinho. Editora Octavo, 2017.
Silva, Barbara da Costa. Declamação como gênero: definição, origens e prática. Letras Clássicas, v. 17, n. 2, p.77-100, 2013.
Mesquita, Antonio Pedro. Górgias. Testemunhos e Fragmentos. Philosophica: International Journal for the History of Philosophy, v. 2, n. 3, p. 137-142, 1994.
 

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