Viagem em torno de Tchekhov

Por Jaime Priede

Janet Malcolm. Foto: George Lang


Contradizendo seu estatuto de grandioso, há algo inerente na obra de Tchekhov que denota fragilidade. Na Rússia e nos Estados Unidos, ele inspira uma espécie de piedade mórbida. “Basta pronunciar o nome de Tchekhov para que as pessoas adotem uma expressão de como se um cervo tivesse entrado na sala”, escreve Janet Malcolm em Lendo Tchekhov. A autora tentará descobrir o que faz dele um grande escritor, oferecendo alguns argumentos contra as noções preconcebidas pela crítica e pelas biografias.
 
Malcolm, editora da The New Yorker, demonstra em seus livros que tem muito pouca fé em verdades objetivas. Títulos como o Nos arquivos de Freud, O jornalista e o assassino, A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limes da biografia e Lendo Tchekhov, dão ao leitor a impressão inequívoca de estar lendo algo não objetivo. Ao escrever sobre os outros, ela nunca se retira como autora, de modo que o leitor tem diante de si os fatos narrados e o que os outros dizem sobre eles, mas também a própria perspectiva de quem escreve, dividindo expressões, abrindo possibilidades, questionando.
 
Ela viajou à Inglaterra para escrever uma biografia de Sylvia Plath e o resultado foi um livro que aborda tanto os problemas da escritora quanto os problemas de escrever biografias. A mulher calada mostra a natureza falha da biografia como gênero porque toma partido, assumindo a subjetividade da voz narrativa com o apoio de todos os elementos inerentes à estrutura romanesca. Sem um pingo de ficção, ela constitui um documento confiável justamente pela admissão de um ponto de vista. Malcolm se baseia na tese de Anne Stevenson, autora de outra biografia de Plath: “Escrever não é algo que pode ser feito em um estado de ausência de desejo. A pose da imparcialidade, a farsa da equanimidade, a notável atitude de distanciamento, nunca podem ser mais do que truques retóricos; se fossem autênticas, se o escritor não se importasse realmente que as coisas acontecessem de uma maneira ou de outra, não se sentiria motivado a representá-las.”
 
Partindo dessas premissas, Janet Malcolm não realiza nenhum trabalho de pesquisa biográfica em Lendo Tchekhov. Novamente, ela compara o que vários biógrafos nos contam e recria a vida do escritor russo com base em uma pesquisa única que combina a leitura de suas cartas e obras com impressões coletadas em sua viagem à Rússia para visitar as casas onde viveu e os lugares sobre os quais escreveu. O tipo de viagem, aliás, que Raymond Carver planejava fazer pouco antes de um tumor cerebral deixá-lo sem possibilidade para isso.


 
A versão da morte de Tchekhov reconstruída por Carver em Três rosas amarelas é analisada pela autora junto com outras versões da cena que ocorreu em 2 de julho de 1904, em um quarto do balneário de Badenweiler. Ela submete as diferentes versões originadas a partir do relato da atriz Olga Knipper, mulher do autor russo, a um interessante exercício comparativo e atribui ao relato de Carver seu caráter híbrido ao misturar eventos reais e históricos com outros inventados, de modo que o leitor não especialista não consegue saber onde um começa e o outro termina.
 
Malcolm pode não perceber que Três rosas amarelas faz parte de um volume de histórias fictícias, então Carver coloca sua versão nesse reino como uma simples homenagem pessoal. De qualquer forma, o importante neste caso é que um livro de tom biográfico como Lendo Tchekhov não só não fica aquém da verdade, mas se aproxima dela da única maneira possível, ou seja, mostrando pontos de vista distantes, integrando dados biográficos e suas próprias reflexões, relacionando de forma convincente suas experiências durante a viagem com a obra de Tchekhov.
 
A escritora estadunidense começa a história dessa viagem em Oreanda, uma aldeia perto de Yalta, no banco ao lado da igreja de onde Dmitri Dmítritch Gurov e Ana Sierguéievna, a dama do cachorrinho, contemplavam o mar. Depois que sua bagagem é perdida no aeroporto de São Petersburgo, ela começa sua jornada tchekhoviana por meio de uma viagem física, acompanhada por guias que também se tornam personagens do livro, e uma viagem interior, acompanhada pelos personagens de Anton Tchekhov.
 
O sentido da vida cotidiana nesta obra se encaixa muito bem com a tradição do ensaio britânico à qual Malcolm pertence: pragmático por natureza, atento ao específico, ao concreto, ao sólido e alheio a ideias abstratas e teorias de pensamento. Portanto, uma das fontes constantes de investigação serão as cartas deixadas pelo autor russo: “As cartas e os diários que deixamos e a impressão que causamos em muitos de nossos contemporâneos são apenas a casca do núcleo de nossa vida essencial. Quando morremos, esse miolo é enterrado conosco. Esse é o horror e a dor da morte e a razão da inevitável trivialidade da biografia”.
 
A sombra da mortalidade sempre paira sobre os personagens de Tchekhov, a certeza de que a vida não é concedida duas vezes. A autora descobre ao longo de sua jornada que Tchekhov, como se fosse um personagem de si mesmo, guardava os segredos de sua obra literária tão tenazmente quanto os de sua vida pessoal: “Ele manteve silêncio sobre seus métodos de composição e destruiu a maioria de seus rascunhos”. Isso nos lembra, no entanto, que o menos messiânico dos escritores russos, o menos visionário, aquele que mais detestava as ideologias e a grandiloquência, sempre aconselhava aos escritores que lhe enviavam manuscritos a cortarem suas obras. Como ele diz ao seu irmão Aleksandr em uma carta datada de 1893: “Corte, irmão, corte. Comece na segunda página.” 


* Este texto é a tradução livre de “Viaje alrededor de Chéjov”, publicado aqui, em Letras Libres.

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