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V. Woolf com o cocker spaniel Pinka, Monk's House, 1931. |
“L. está podando os rododendros.”
Esta é a última entrada que Virginia Woolf rabisca em seu diário. A data é
segunda-feira, 24 de março de 1941.
Quatro dias antes de encher os
bolsos com pedras e partir em direção ao Rio Ouse, ela vê seu marido Leonard
cuidando dos arbustos. O rododendro, do grego
rhódon (rosa) e
dendron
(árvore), floresce na primavera. Todas as suas partes são tóxicas e até mortais
se ingeridas.
Leonard Woolf poda esses arbustos
potencialmente letais quatro dias antes de sua mulher se afogar no rio. A morte
zumbe no ar. Será que Virginia Woolf verá, segundos antes de sua vida ser
irremediavelmente interrompida pelas águas do Ouse, como as rosas se metamorfoseiam
em pedras em seus bolsos? Pensará que ao afundar na água finalmente se
libertará da pedra de Sísifo representada pelas vozes que enchem como favos de
mel as entrâncias de sua cabeça?
“Não creio que tenham existido
duas pessoas mais felizes do que nós.” É assim que Virginia se despede de
Leonard.
1 É como se sua maneira de dizer: “Te amei mesmo entre os
rododendros, até entre o veneno. Ela não assina a carta de suicídio com seu
primeiro nome, mas com sua inicial: V. Uma identidade podada ao extremo, salva
por uma única letra, uma das últimas do alfabeto.
Podar: é disso que se trata a
escrita, chegar ao essencial, ao cerne do que se quer e deve dizer e não ficar
em silêncio, como Ludwig Wittgenstein instruiu: “Mrs. Dalloway disse que ela
mesma iria comprar as flores.” Será que Leonard, ao ler com o coração pesado a
despedida de V., verá as flores que crescem como por mágica nos rododendros que
havia podado apenas quatro dias antes?
Neste 28 de março de 1941, no rio
Ouse, que corre como se fosse a corrente sanguínea de Sussex, há mais pedras do
que no dia anterior. Há abelhas que voam pela atmosfera com a rapidez de balas
de canhão em busca de outra colmeia onde possam se instalar à vontade. Há um
corpo que foi podado na primavera e não será recuperado até três dias depois.
“Este corpo, com todas as suas
faculdades, parecia-lhe nada, absolutamente nada. Tinha a estranha sensação de
ser invisível, não vista, desconhecida […] e tudo o que me restava foi esse
avanço surpreendente e um tanto solene.” Flutuando rio abaixo, V. vê seu corpo
no corpo de Clarissa Dalloway. Ervilhas-de-cheiro ou
Lathyrus odoratus
são as flores que Clarissa compra na floricultura Mulberry, na Bond Street,
numa manhã em que o verão se desponta sobre Londres. Completamente diferente dos
rododendros, o aroma das ervilhas-de-cheiro inunda o corpo de V., que se torna
um organismo de água sob o sol enevoado da primavera.
No fundo do Rio Ouse, V. acredita
que vê flores queimando como queimaram diante dos olhos de Mrs. Dalloway. Acredita
que vê “mariposas cinzentas e brancas, voando, indo e vindo”. Prepara-se,
líquida, para a noite que se aproxima em plena luz do dia.
***
“Sim, provavelmente estou destruída,
doente, morta. Que terrível! Aqui eu caí dizendo: ‘Que estranho, flores’”,
escreve Virginia Woolf.
Esta entrada do diário de alguém
que se reduziria à letra V. por sua própria escolha é datada de terça-feira, 2
de setembro de 1930, após um passeio com a dançarina russa Lídia Lopokova,
casada com o economista britânico John Maynard Keynes, durante o qual V.
descreve suas enxaquecas com uma frase afiada: “A pressão como uma gaiola metálica
de som na minha cabeça.” Essas dores que percorrem a cabeça de Virginia Woolf
percorrem seus diários como um tremor feroz e permanente. Como um rio com um
leito cheio de pedras do tamanho da sua mão que serão depositadas nos bolsos de
um vestido talvez estampado de rosas.
Quando perde a consciência diante
de Lídia, Woolf pensa em flores. Poderiam ser os rododendros que o marido podará
antes de cometer suicídio? As enxaquecas parecem rododendros: são tóxicas e até
fatais em alguns casos. Sua mente é lentamente devorada por um apetite floral.
“Acabei de voltar de uma viagem
para enganar minha enxaqueca — deveria haver um nome para essas peregrinações —
em Hampton Court”, escreve em seu diário. Passear entre rododendros: esse é um
possível nome para a gaiola metálica que envolve e aprisiona a cabeça de V.
junto com as ideias que fluem por ela. Dentro da gaiola há apenas um pássaro
morto sobrevoado pelas abelhas em busca de algo doce no coração do corpo inerte.
V. fuma enquanto pensa. Enxaquecas
e rododendros, flores e pedras, abelhas e restos: qual é a possível relação
entre esses elementos, a sua conexão íntima? Por que a natureza cria ligações
entre coisas que não deveriam estar ligadas? Até onde é preciso ir para
encontrar a chave que abre a porta da gaiola que agora se fecha novamente com o
estrondo metálico que anuncia o retorno da dor às profundezas da caixa craniana?
***
“O passado é belo porque nunca se
entende uma emoção em seu exato momento”, escreveu Virginia Woolf na
quarta-feira, 18 de março de 1925.
Com esta anotação começa um novo
caderno, o Diário XIV. Ela deixou o anterior, Diário XIII, inacabado, e isso a
preocupa: ali está, inegável, o zumbido do desassossego que às vezes pode se
confundir com o murmúrio do passado, por mais belo que seja. O Diário XIII
termina com “alguns pressentimentos sinistros ao ver tantas páginas em branco”.
Páginas que lembram um jardim vazio e virgem onde logo começará a ser ouvido o
murmúrio dos rododendros em germinação.
Antes de (in)concluir o Diário
XIII, na entrada de terça-feira, 6 de janeiro de 1925, Virginia Woolf fala de
dias chuvosos e de um rio que transborda. “Muitas vezes eu não fui capaz de um
passeio. L. podou, o que exigia uma coragem heroica. Meu heroísmo foi puramente
literário”, se desculpa enquanto tenta ignorar o rugido sedutor das águas
subindo.
Está aí Leonard, o fiel marido,
podando, sempre podando: sabe que o casamento também é uma tarefa incansável de
jardinagem. Aí estão as páginas vazias cheias de rododendros que farão as vezes
de palavras dolorosas e potencialmente mortíferas. Aí está o rio inchado como
um ventre de água em cuja gravidez as pedras participam.
As abelhas evitam rododendros para
não produzir mel tóxico. Mel louco, como também era chamado na Grécia antiga.
Em sua
Anábase, o comandante Xenofonte relata o envenenamento por mel
sofrido pelos dez mil mercenários helênicos que invadiram a Pérsia sob as
ordens de Ciro, o Jovem: “Os gregos, uma vez subido as montanhas, acamparam em
numerosas aldeias bem abastecidas, e nada chamou sua atenção, exceto a grande
abundância de favos de mel que havia naqueles lugares. Mas todos os soldados
que comeram o mel ficaram doentes da cabeça, vomitaram e tiveram problemas de
estômago; nenhum deles conseguiu ficar de pé. Aqueles que comeram apenas um
pouco pareciam bêbados, aqueles que comeram mais pareciam loucos e alguns
pareciam mortos.” A loucura é doce como o mel, como a embriaguez, como o
coração do corpo morto. A demência também é uma gaiola de metal pendurada sobre
a cabeça de quem a padece e de onde às vezes se sente o cheiro das flores,
mesmo que estejam murchas.
“Cada flor parece queimar,
suavemente, com pureza, na terra enevoada”, reflete V. por meio de Clarissa
Dalloway. Cada flor é um incêndio que atrai as abelhas, mesmo em meio à fumaça,
pequenas brasas que carregam e trazem pólen e fogo para que o mundo possa
continuar vivendo ou sobrevivendo entre as chamas. Só o rododendro não arde de
vida. O rododendro é uma enxaqueca, a brasa de algo que se extinguiu sem deixar
vestígios, um aviso de morte disfarçado de favo de mel. Uma metáfora que
Leonard poda no jardim da loucura enquanto ao seu redor, no incendiado ar primaveril,
vibra o eco dos gritos alucinados de dez mil soldados com lábios rebuçados de
néctar.
***
“Não temos emoções completas a
respeito do presente, apenas do passado”, escreve Virginia Woolf no início de
seu Diário XIV.
Essa frase poderia ser corroborada
por Rhoda, uma das sete personagens principais de
As ondas, o sétimo
romance de Virginia Woolf, publicado em outubro de 1931. Sete, sete: os números
podem ser um refúgio quando se entra e sai da gaiola metálica da dor. Por suas
virtudes ocultas, ressalta o matemático Hipócrates de Quio: “o sete tende a
realizar todas as coisas; é o dispensador da vida e a fonte de todas as
mudanças, pois até a lua muda de fase a cada sete dias: esse número influencia
todos os seres sublimes.”
Refúgio de um mundo tempestuoso do
qual se sente exilada desde criança é exatamente o que Rhoda busca em meio ao
turbilhão formado por seis solilóquios que giram em seu entorno com a perícia
rítmica que V. aplica na composição de seu sublime favo de mel literário. (O
sétimo solilóquio, que seria de Percival, foi interrompido pela morte.) O que
Rhoda quer, sim, é um quarto todo seu, de preferência povoado de música para
neutralizar o zumbido em sua mente que eventualmente a levará a provar o mel
amargo e louco do suicídio. Quer uma janela para si que lhe permita olhar o
oceano que lhe pertence desde a infância e que se condensa na tigela de água
onde ela deposita breves e tristes oferendas de pétalas.
Em
As ondas, as flores
abundam, como aquelas que Clarissa Dalloway compra numa manhã diáfana, “como um
presente para as crianças na praia”, quando um ar fresco sopra como “o golpe de
uma onda”. Rhoda pensa em um quarto todo seu, mas com flores e sem abelhas,
porque já basta as abelhas que enchem sua cabeça e a separam de tudo ao seu
redor. Pensa, ainda, nas “flores visionárias” sonhadas por Percy Bysshe Shelley
num poema que é na verdade uma pergunta. “Voltei correndo. Meus lábios disseram:
‘Pegue/ estas flores!’. Mas para quem?”, diz Shelley. Dai-me essas flores para
eu colocá-las no meu quarto com vista para o mar, onde me afogarei, pensa Rhoda.
E Shelley replica em voz soante: “Juntarei minhas flores e as presentearei —
Oh! Quem?” Mas agora ninguém mais o contesta. Não há ninguém no quarto do
passado, o que é bonito porque raramente descobrimos como habitar o lar
tumultuado que é oferecido pelo presente.
No quarto onde escreveu seu Diário
XIV e
As ondas, V. pensa em flores. Pense em Leonard, paciente, podando
rododendros por entre os quais se espreita, astuta, a loucura que tomou conta
de dez mil soldados gregos. Rhoda,
rhódon, rododendro: será que V. fez esse
nexo nominal e fonético? Quanta flor há em um nome, quanta melodia há
semelhante àquelas que Ludwig van Beethoven escutava em sua surdez? Quanto de
V. há em Rhoda? Qual é o cheiro da identidade como a que Rhoda deseja dissolver
nas ondas, como a que V. decidirá oferecer às águas do Rio Ouse?
O presente é uma falsa e
incompleta flor, diz V. para si mesmo, seu aroma sempre vem do passado e
retorna ao passado porque o hoje é o passando enquanto o aspiramos. Acende um
cigarro. Abelhas voam pelo seu jardim, compondo uma sinfonia tão bela quanto
insana. “Antes de escrevê-los, penso nos meus livros como se fossem música”, relembra
de ter admitido enquanto a corola de um gramofone liberava seu pólen invisível.
Quando criança, V. costumava se
cercar de flores talvez visionárias, embora seu rosto não lembrasse tanto o de
Percy Bysshe Shelley como o de Joana d'Arc. Quando criança, Rhoda costumava ver
navios escondidos nas flores que colhia: “Todos os meus navios são brancos. Não
quero as pétalas vermelhas dos gerânios ou das malvas. Quero pétalas brancas
que flutuem quando inclino a taça. Agora tenho uma frota remando de praia em
praia. Deixarei cair um galho como se fosse uma jangada para um marinheiro que
está se afogando. Também deixarei cair uma pedra para poder observar as bolhas
subindo das profundezas do mar.”
Cada flor, V. poderia ter dito
entre nuvens de fumaça, é na verdade uma pedra esperando para ser guardada num
bolso.
***
“O estado de espírito ideal para a
leitura é muito raro, à sua maneira um prazer tão intenso quanto qualquer
outro, mas geralmente uma dor.” Foi o que Virginia Woolf escreveu em 16 de
junho de 1925, enquanto suava no verão quente após a publicação de
Mrs.
Dalloway, seu quarto romance, lançado um mês antes, em 14 de maio.
Ao mês de junho também corresponde
o dia em que Clarissa Dalloway sai em busca de flores para decorar a festa que
será ofuscada pela morte de Septimus Warren Smith: “Junho fizera todas as
folhas brotarem das árvores. As mães de Pimlico amamentavam seus filhos. A
Marinha transmitis mensagens ao Almirantado. Arlington Street e Piccadilly
pareciam aquecer o ar do parque e levantar as folhas, ardentes e brilhantes, em
ondas daquela divina vitalidade que Clarissa amava. E, como teria adorado tudo,
dançar, andar a cavalo […] Ela tinha a sensação constante, enquanto observava
os táxis, de estar fora, longe, muito longe no mar e sozinha; Sempre considerei
muito, muito perigoso viver, mesmo que por apenas um dia.” Todo despertar traz
consigo o risco de cair em um sonho do qual não se desperta mais. Cada dia traz
consigo sua inevitável noite eterna.
Dois junhos separados por apenas
dois anos. 1923: Mrs. Dalloway se aventura como uma faca que corta todas as
coisas na manhã de Londres, no exato momento “em que todas as flores — rosas,
cravos, lírios, lilases — estão brilhando; brancas, violetas, vermelhas,
laranja escuro”. 1925: Mrs. Woolf sente mais uma vez a floração da infinita
tristeza, certo tipo de segundo marido tão leal quanto Leonard. A dor de ler, a
dor de escrever, a dor de esperar pelas resenhas de
Mrs.
Dalloway.
Junho, as enxaquecas de junho, as flores de junho sobre as quais pairam as
abelhas da loucura.
As rosas da floricultura Mulberry
parecem à Mrs. Dalloway, em junho de 1923, “tão frescas como os lençóis de
babados recém-lavados e dobrados”. Rosa, do grego antigo
rhódon: o que é
perfumado, o que exala um cheiro que pode deixar alguém louco. Mesmo que seja
tóxico ou porque é, justamente, tóxico. Aí está, recaído e pronto para ser
podado por mãos pacientes, o rododendro.
Aí está ela, sofrendo de
enxaquecas em seu próprio quarto com vista para um vasto oceano interior, V. aguarda
o destino de Clarissa Dalloway, que, vencida pela sensação de estar sozinha no
mar, compra flores para o suicídio de Septimus Warren Smith, que se lançará
para o vazio de uma janela como a que Rhoda reivindica para si em meio ao
murmúrio incessante de
As ondas.
***
Em 19 de agosto de 1925, Leonard e
a mulher pedalaram no calor do verão até Charleston, a icônica propriedade do
Círculo de Bloomsbury. Iam comemorar o décimo quinto aniversário de Quentin
Bell, o segundo filho de Vanessa, irmã mais velha de Virginia Woolf, a que é
responsável por desenhar as capas de seus livros. Existem dois V. na família.
Nas décadas seguintes, Quentin se tornará o biógrafo mais conhecido da segunda
V., a tia materna que inspirou o jornal da família (
Charleston Bulletin)
criado por ele e seu irmão mais velho Julian no verão de 1923.
Em pleno jantar de comemoração em
família, Virginia Woolf desmaia. Terá caído, dizendo, como fará durante outro
desmaio em setembro de 1930 na companhia de uma bela dançarina russa: “Que
estranho, flores”? Será que pensará em Sally Seton, amiga e amante juvenil de
Clarissa Dalloway, que prenuncia a propensão a oferendas que Rhoda desenvolverá
em
As ondas: “Sally saía, colhia malvas-rosa, dálias e todos as espécies
de flores que nunca tinham sido vistas juntas antes, cortava os talos e as jogava
boiando em bacias d’água”?
Exausta, V. se diagnostica quando
recupera a consciência na casa de sua irmã Vanessa. Mas se passara apenas duas
das oito semanas de retiro intensivo para trabalhar em
Passeio ao farol,
seu quinto romance, publicado em maio de 1927 e no qual ela escreveu: “O branco
das flores e algo de cinza nas folhas conspiravam para despertar nela um
sentimento de ansiedade”. E mais: “As palavras (olhava pela janela) soavam como
se fossem flores flutuando na água lá fora, separadas de todos, como se ninguém
as tivesse dito, como se tivessem ganhado vida por conta própria.” Flores e
palavras, água e janelas: a música que soa nos livros de Virginia Woolf é cheia
de ritornelos.
Quinze dias depois de seu sobrinho
Quentin completar quinze anos, V. escreve: “Permaneci aqui deitada, naquela
estranha vida anfíbia de dor de cabeça.” A enxaqueca, uma companheira fiel com
quem também se assina um contrato de casamento. A enxaqueca e a escrita, a enxaqueca
e a leitura. A enxaqueca nas tardes de “borda dourada” do verão que parece não
ter fim.
A enxaqueca transforma V. em uma
criatura que se move, não sem dificuldade, entre a água diáfana do mundo, onde
flores e pétalas flutuam como parte de enigmáticos rituais, e a terra sombria
da dor. Onde os rododendros crescem, insidiosamente.
***
“Aos sessenta, vou sentar e
escrever minha vida”, aponta Virginia Woolf na segunda-feira, 8 de fevereiro de
1926. E assim começa o que se tornaria o Diário XV.
Seus diários, ela mesma admite,
são a fonte das memórias, de onde elas surgirão. “A matéria-prima para essa
obra-prima”, acrescenta, num começo talvez excessivamente otimista, talvez
excessivamente utópico. Porque infelizmente a obra-prima que esta autobiografia
sem dúvida teria sido nunca verá a luz. V. decidiu afogar-se em 28 de março de
1941, aos cinquenta e nove anos, deixando atrás de si uma das despedidas mais
chocantes da história da literatura: “Meu querido, tenho certeza que vou enlouquecer
de novo. Não podemos passar por mais uma daquelas crises terríveis. E, dessa
vez, não vou sarar. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso
estou fazendo o que me parece a melhor coisa.”
Na morte de V., suas próprias
palavras ecoam de forma dolorosa. O rio Ouse a levou dez meses antes de seu
sexagésimo aniversário, uma margem temporal que teria alcançado em 25 de
janeiro de 1942. Ela não se sentará à sua mesa de trabalho na Monk’s House, em
East Sussex, fotografada por Gisèle Freund em 1965, para dar forma escrita a
uma vida marcada pela dor e pela enfermidade mental que, no entanto, aparece
espalhada em formas muito diferentes em seus nove romances, o último dos quais
(
Entre atos) publicado postumamente.
Quem se senta para tentar colocar
a vida e a escrita de V. em ordem após seu suicídio é Leonard, seu marido.
Leonard, o podador paciente, o especialista em rododendros. Em 1942, um ano
após o afogamento de V., este jardineiro amoroso publicou
A morte da
mariposa e outros ensaios, um volume composto por vinte e seis obras em
prosa diferentes nas quais lemos: “Ela [uma mulher] ainda tem muitos fantasmas a
combater, muitos preconceitos a superar. Na verdade, na minha opinião, levará ainda
muito tempo até uma mulher possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com
um fantasma que precise para matar, uma pedra contra a qual se bater”. Pedras,
invariavelmente pedras no poderoso rio das palavras.
No prólogo dessa coletânea de
textos de V., Leonard se refere à seriedade com que sua mulher “levava a arte
de escrever, mesmo para jornais”. E uma anedota basta para ilustrar isso. Antes
de morrer, ela resenha um livro cujo autor fica tão surpreso, tão
agradavelmente surpreso, que quer o texto datilografado. Leonard localiza o
rascunho original do artigo manuscrito e descobre “nada menos que oito ou nove
revisões completas” digitadas pela própria V., que conclui o belo ensaio
dedicado a um entardecer sobre Sussex: “‘Vão embora agora’, disse para os meus
eus juntos. Já cumpriram seu propósito. Chegou o momento de nos despedirmos.
Boa noite.’ E o resto da viagem transcorreu na deliciosa companhia do meu
próprio corpo.”
Como se soubesse que o corpo
espectral de V. o observava atentamente, Leonard ressalta que até mesmo os
textos inéditos incluídos em
A morte da mariposa e outros ensaios foram
cuidadosamente revisados. “Tudo o que fiz”, afirma, “foi pontuar e corrigir
erros óbvios. Eu sempre revisava os manuscritos dos livros e artigos de V.
dessa maneira antes de serem publicados.”
Mas o que Leonard Woolf realmente
quer dizer é outra coisa. Quer dizer: eu sempre estive aí, no jardim ensolarado
mesmo estriado de sombras que é o casamento, podando os rododendros para
neutralizar seu veneno o máximo que pude, à luz da primavera. Sempre me
preocupei que as flores de V. brilhassem, a salvo das abelhas da loucura, longe
das pedras com que a morte enche nossos bolsos para dificultar a passagem pelo
rio caudaloso da vida.
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