Por Manuel Fernández Labrada
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Christa Wolf. Foto: Oliver Mark |
No famoso filme
Cidadão Kane,
de Orson Welles, os últimos pensamentos do protagonista remontam a um episódio
aparentemente insignificante de sua infância, resumidos em uma palavra
misteriosa que causou confusão entre seus biógrafos. Somente o espectador do
filme descobre, no final, o significado do enigma; ou seja, uma vida cheia de
acontecimentos e triunfos pode ser ofuscada pela lembrança de um simples
brinquedo:
Rosebud. Não há dúvida de que os escritores também, quando
chega o momento de fazer um balanço, muitas vezes voltam seu olhar para a
infância. As experiências mais banais, até mesmo as mais dolorosas, há muito
esquecidas, retornam revestidas de uma nova luz. Talvez prevaleça a necessidade
de fazer as pazes consigo mesmo e com os outros. Descobrimos então que a
infância, já perdida no passado, era o tesouro mais precioso de todos, e
desejamos
salvá-lo enquanto ainda resta algum tempo... Há muito disso,
parece-me, nesta encantadora narrativa,
Augusto, composta por Christa Wolf no
último ano de sua vida. Uma narrativa muito breve que se refere a experiências
dolorosas de exílio e doença. Alguns eventos extremamente dramáticos são
lembrados com um olhar melancólico, mas também compreensivo. É reconfortante
ver que a escritora, depois de uma longa vida cheia de amarguras e decepções,
ainda consegue nos oferecer um texto tão belo e otimista, onde os valores
humanos brilham em contraste e assume uma sábia reconciliação com o próprio
destino.
Christa Wolf (1929-2011) é uma das
figuras literárias mais significativas da República Democrática Alemã. Nascida
na Prússia Oriental, nos territórios alemães que passaram à soberania polonesa
em 1945, ela foi forçada a empreender um exílio difícil e perigoso no Ocidente,
coincidindo com os últimos impasses da Segunda Guerra Mundial. Refugiada com
sua família em Kalkhorst, às margens do mar Báltico, dentro das fronteiras do
que mais tarde se tornaria a RDA, a escritora também atravessou a dolorosa
experiência de ser internada em um sanatório para tuberculosos instalado no
Castelo de Kalkhorst, o mesmo castelo onde se desenvolvem as experiências do
menino Augusto. Uma história tão curta correria o risco de passar despercebida
se não fosse salva pela beleza deslumbrante de sua prosa, pelo interesse
autobiográfico dos acontecimentos narrados e pela pura emoção contida em suas poucas
páginas.
Militante fervorosa do marxismo,
Christa Wolf foi membro do Partido Socialista Alemão (SED) por muitos anos,
embora com o tempo tenha se revelado um tanto distanciada das suas matrizes
ideológicas. Isso fica evidente em seu livro
Em busca de Christa T.
(1968), obra que, por seu individualismo declarado, causou grande surpresa e
inquietação no regime que governava seu país. Em seu romance
O que resta
(publicado em 1990, embora aparentemente escrito em 1976), ela não apenas
revelou (na hora errada, segundo seus detratores) algumas das misérias da
extinta Alemanha Oriental, mas também confessou ter colaborado, como
informante, com a própria Stasi. Por outro lado, o fato de Christa Wolf ter
expressado sua oposição à reunificação da Alemanha (posição compartilhada por
Günter Grass) pode nos parecer, da nossa perspectiva atual, um grande erro
(para onde iríamos agora, pobres de nós, com apenas metade de uma
locomotiva?).
Mas ela tinha suas razões; razões que ainda estavam muito vivas em 1996, quando
publicou seu romance
Medeia: uma revisão do mito grego em que a
provinciana
filha do rei da Cólquida desempenha um pobre papel na sofisticada corte de
Corinto; um reflexo da situação dos alemães orientais na nova nação unificada.
Todo esse caminhar contra a corrente, como era de se esperar, ofuscou um pouco
sua figura, sempre complexa e bastante polêmica, o que não a impediu de merecer
importantes prêmios, nem de ser considerada uma artista literária de primeira
grandeza.

Christa Wolf escreveu esta
história comovente, Augusto, com a intenção de presentear seu marido,
Gerhard Wolf, por ocasião do seu sexagésimo ano de casamento. Resumiu na
narrativa uma de suas memórias mais amargas — e ao mesmo tempo mais preciosas —
a infância. Uma memória que começava com um trem de refugiados bombardeado e um
pequeno órfão que só sabe sua data de nascimento. Embora a história seja
contada pela perspectiva do menino que dá título ao livro, a personagem de
maior peso é o da adolescente Lilo, pode-se dizer, alter ego da
romancista, que inspira um amor platônico no jovem órfão, tão necessitado de
proteção. Lilo é uma figura feminina de uma maturidade surpreendente, generosa
e nada possessiva em seus afetos, dotada de um seguro instinto ético (manifestado
em sua desaprovação pela macabra bravura de Harry). Não podemos esquecer
que Christa Wolf foi uma escritora muito comprometida com a luta feminista,
como se pode ver nessa extensa galeria de mulheres fortes que
protagonizam quase exclusivamente todos os seus escritos, e às quais devemos
acrescentar esta adolescente tão altruísta e corajosa que é Lilo.
Narrada na terceira pessoa, a
história se desenrola em duas ordens temporais diferentes, de importância e
extensão desiguais, mas cuidadosamente interligadas e correspondentes ao mesmo
personagem, Augusto. De um lado, o indivíduo adulto: um viúvo melancólico e
solitário que relembra os acontecimentos de sua infância enquanto dirige um
ônibus de turismo em uma viagem de Praga a Berlim. Um trabalhador prestes a se
aposentar que completa suas memórias de infância com a lembrança de sua desaparecida
mulher, Trude, ao mesmo tempo em que dá um testemunho indireto do modesto
ambiente social em que vive. Por outro lado, a criança órfã internada no
sanatório de tuberculosos do Castelo de Kalkhorst, que nos oferece um quadro
comovente das outras crianças que compartilham o mesmo destino. O ar insalubre
que respirávamos no famoso balneário de Thomas Mann também é encontrado aqui,
neste sombrio Castelo de mariposas, agravado pelas grandes dificuldades
sofridas por seus habitantes. Embora a narrativa também inclua perfis de
personagens adultas (médicos, enfermeiros, pacientes idosos etc.), os
verdadeiros protagonistas são as crianças e os adolescentes internados, cada um
com sua história dolorosa particular, sofrendo sozinhos as feridas que a guerra
dos mais velhos deixou como único legado. A narrativa consegue capturar um emocionante
contraste entre aquelas crianças que são piedosamente ignorantes de sua
situação, a maioria, e aquelas que foram forçadas a assumir precocemente um papel de adultas. É
o caso da já mencionada Lilo, que ajuda a cuidar dos doentes enquanto sofre o
pesado fardo de saber quem vai morrer.
Mas a história não se limita ao
destino de um punhado de vidas individuais, as crianças e adultos que povoam
este antigo sanatório localizado em um lugar inapropriado e insalubre — como é
repetidamente apontado — onde aguardam um triste desfecho, cuidados por uma
equipe escassa, sofrendo grandes carências de comida e aquecimento. A visão da
romancista vai muito além. No relato do bombardeio do trem de refugiados em que
Augusto viaja, assim como em outras alusões encontradas na voz do já adulto, não
é difícil descobrir um comentário oblíquo sobre aquelas tragédias esquecidas
sofridas por muitos alemães inocentes durante a guerra, silenciadas pelos
vencedores e apagadas de sua memória pelas próprias vítimas em uma espécie de piedosa
amnésia coletiva. Poucos alemães ousaram falar disso. É o caso, entre muitos
outros, do naufrágio do navio de refugiados Wilhelm Gustloff (1945) por um
submarino soviético, drama denunciado por Günter Grass no seu romance Passo
de caranguejo; ou os bombardeios devastadores de cidades alemãs (Dresden,
Colônia, Hamburgo) pela força aérea aliada, com milhões de vítimas civis, como
refletido naquela chocante interrogação antibelicista de W. G. Sebald: História
natural da destruição.
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Augusto
Christa Wolf
Fernando Miranda (Trad.)
Jaguatirica, 2014
48p.
* Este texto é a tradução livre de “Una infancia salvada
por el recuerdo”, publico aqui, em El Cuaderno.
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