O navio da morte, de B. Traven

Por Pedro Fernandes
 
Liberdade, sim, mas ela tem que ser carimbada. Liberdade de ir e vir em todo mundo, sim, mas apenas com a autorização do guarda noturno.
 
— Em O navio da morte, de B. Traven




A história das fronteiras é a história da longa disputa que estabelecemos desde quando potencializamos a noção de propriedade. No início do século passado o aparelho burocrático que sustenta o que hoje conhecemos como Estado estava em pleno funcionamento com o uso de mecanismos de controle capazes de determinar desde a ideia de cidadão aos seus trânsitos dentro e fora das fronteiras do seu lugar nacional. Todo esse aparelhamento serviu de interesse à literatura e a obra de Franz Kafka é reconhecida como sua viga-mestra.
 
Também outros escritores se mantiveram seduzidos pelo trabalho de explorar o absurdismo de situações propiciadas apenas pela usabilidade da burocracia que, sim, é necessária ao ordenamento, mas se tornou aparato de continuar servindo ao tipo social dominante; uma vez estabelecida as leis do capital, sabemos, o imperativo do burocratismo pode ser facilmente corrompido em favor de quem a condição financeira chega primeiro, antes da devida necessidade. De maneira que uma mesma lei pode servir a dois indivíduos de maneira diversa, salvando um e condenando outro.
 
O mundo depois de B. Traven, por exemplo, se expandiu vertiginosamente com a globalização, mas as leis que regem as fronteiras de cada Estado continuaram a garantir que o acesso a determinado país varia conforme o valor financeiro do cidadão; o trabalhador comum, por exemplo, deve cumprir sua condena de miséria em seu próprio país, enquanto aqueles que possuem determinado poder aquisitivo até podem transitar pelo país promissor e, a depender do caso, nele se estabelecer e constituir uma vida de progresso.
 
Uma parte dos agravantes passados no século vigente foi prenunciada nessa literatura interessada em trazer relevo para as circunstâncias situadas na zona das imprevisibilidades legais ou a ela condenada pelo excesso de observância ética ou pela falta do fator financeiro que intervenha em seu favor; uma literatura que se volta não para a vida marginal, por vezes até celebrativa dessa condição em favor do autoritarismo do regime de Estado, mas para os dispositivos constitutivos dessa condição e como estes se estabelecem e regem a vida dos indivíduos.  
 
O navio da morte, um dos livros da breve mas consistente obra literária construída por B. Traven, é um exemplo disso. A história de errância de um marinheiro desgarrado da condição de cidadão, usual no contexto referido pelo romance — os anos de imediata criação do passaporte e das leis de trânsito entre países —, repete-se diariamente em todas as partes do mundo; e a contínua reafirmação do acontecido, em menor ou maior grau, favorece a essa história um papel de arquétipo do homem encerrado no labirinto da burocracia.
 
No caso em evidência, estamos situados no instante imediatamente posterior a quando o aparelho burocrático falha pela revelia dos indivíduos, o instante quando, sem alternativas, passamos a transitar pela sombra do sistema, aceitando taciturnamente a sentença imposta de existir não-existindo. B. Traven nota a impossibilidade de regressarmos ao ponto original da liberdade, mesmo que o seu protagonista chegue à conclusão de que sua pátria é: “Onde ninguém me incomoda, não quer saber quem sou, o que faço, de onde venho”. Mesmo no submundo a que é condenado, os efeitos da máquina estatal aparecem visíveis; seus conterrâneos que não se identificam ou que forjam uma identidade são, muitas vezes, reconhecidos pela nacionalidade autoatribuída.
 
O romance narrado em primeira pessoa por um dos tipos benjaminianos — o homem de larga experiência cultivada como viajante — encontra-se estruturado em três livros que não segmentam o curso dos 48 fragmentos que fazem as vezes de capítulos. No primeiro, este marinheiro examina seu périplo na busca pela regularização de sua identidade e, nesse caso, não é apenas a nacionalidade, porque se trata de um indivíduo criado à solta, sem os pais, apenas condicionado à sobrevivência, mesmo que, quando se encontra à serviço do S. S. Tuscaloosa, não deixe de alentar certo de desejo de alguma vez regressar a Nova Orleans e estabelecer-se numa vida pacata.
 
Ao ser abandonado pelo navio depois de uma saída noturna consentida pelo capitão, o marinheiro passa a ser continuamente interpelado pelo serviço de segurança devido sua condição de apátrida, afinal o único documento capaz de provar algo ao seu respeito para o Estado escapou na fuga do Tuscaloosa.  De cônsul em cônsul, de prisão em prisão, de ajuda em ajuda, o errante escapa até ser cooptado para o Yorikke, um dos muitos navios que vagueiam sem destino enquanto esperam pelo fim iminente. Este é círculo das agruras, o inferno de Mr. Gales, e o segundo livro.
 
Entre o primeiro e o segundo é notável algumas variantes que interferem no funcionamento do próprio romance. A predominância da ação é vertida para a descrição — a degradação do navio e dos humanos que nele habitam e trabalham, tudo interessa ao novo integrante do Yorikke. Esse exercício retarda o andamento temporal dos acontecimentos e contribui para acentuar o drama padecido pelo marinheiro; substitui-se certo tom agridoce do relato de viagem que de alguma maneira se encontra nos acontecimentos do primeiro livro pelo efeito de horror perquirido por um ponto de vista que havia especulado outra face para a morte. Singular, nesse sentido, é quando as sentinelas da fronteira entre França e Espanha atribuem-lhe a pena de morte e — até a sua realização desfeita como se um embuste — passam a tratá-lo com as honras de um figurão da guarda. Daqui à passagem para o Yorikke, tudo se acentua. A morte é sempre uma pena lenta, terrível e dolorosa, ainda que isso possa ser uma condição autopermitida, como percebe, devido a nossa consciência de esperança, sendo a diferença que nos coloca inferiores aos animais:
 
“Antes de eu morrer e vir me juntar aos mortos, eu não entendia como é possível existir a escravidão, o serviço militar, como é possível que homens física e mentalmente saudáveis se deixassem caçar por canhões e metralhadoras sem protestar, por que as pessoas não preferem mil vezes o suicídio a suportar a escravidão, o serviço militar, as galés e as chicotadas. […] Nenhum homem pode descer tão baixo que não possa afundar ainda mais; por mais pesado que seja seu futuro, ele poderia suportar um ainda pior. Eis por que seu espírito, que supostamente o elevaria acima dos animais, ao contrário, o rebaixa a um nível inferior a eles. Eu já conduzi animais de carga, camelos, lhamas, burros e mulas. Já vi dezenas deles se deitarem quando estavam apenas três quilos acima do peso, ou quando se julgavam maltratados; eles teriam se deixado açoitar até a morte sem reclamar — isso eu também vi — em vez de ser levantarem pra levar sua carga ou de aceitarem os maus-tratos. […] Mas o homem? O senhor da criação? Ele adora ser escravo, ele tem orgulho de bancar o soldado e de ser derrotado, ele adora ser chicoteado e torturado. Por quê? Porque ele é capaz de pensar. Porque ele é capaz de pensar em ter esperança. Porque ele espera que as coisas melhorem. Esta é a sua maldição, nunca a sua sorte.”
 
O último livro regressa ao tom do primeiro. Sua força para a ação é acentuada no desenvolvimento dos acontecimentos resultados da pequena estadia no Empress of Madagascar, o segundo navio da morte a que é condenado o marinheiro — desta feita, sequestrado —, reavivando uma das afirmativas levantadas pelo companheiro de morte no Yorikke, Stanislaw, para quem, não existe saída para a vida depois de um homem ingressar nesse submundo de Hades, exceto se por um milagre escapar a um naufrágio da embarcação. Se no primeiro livro predomina o absurdismo, se no segundo o drama, aqui, é a vez do trágico. Mas, nenhum desses aspectos são plenamente realizados sob o risco de colocar em crise o próprio funcionamento do romance porque estão alinhavados com a linha da ironia que perpassa do começo ao fim das aventuras de Mr. Gales.
 
Este marinheiro confunde-se com o seu criador. B. Traven é, sabidamente, uma incógnita. Não se sabe sua origem, quando nasceu, quem eram seus pais, o que fez durante a vida além de escrever, por onde andou. Um errante situado também fora do regime burocrático do literário — este que continua a apelar ao vivido pelos escritores para limitar e explicar os acontecimentos desenvolvidos na ficção, como se as duas coisas fossem obrigatoriamente correlatas, como se a literatura devesse cumprir o requisito de alineada à estrutura dominante, como nós cumprimos em relação ao Estado.
 
Mas, se um século depois ainda lemos a errância de uma incógnita fabulada por um congênere é porque, fora ou dentro das linhas impostas pelos sistemas de separação que forjamos e aperfeiçoamos continuamente, nos sobram três coisas: a literatura não existe amarrada ao estatuto do autor, sendo este a tábua de salvação ou de condena da obra; identificamo-nos com o princípio inalienável da liberdade; e, ante o Estado que diz nos proteger, se não somos o poder dominante, somos, embora os que sustentam o funcionamento da ordem, todos incógnitas, quando muito, um número vigiado desde quando vimos ao mundo.  

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O navio da morte
B. Traven
Érica Gonçalves Ignacio de Castro (Trad.)
Imprimatur/ 7Letras, 2024
320p.

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