Por Gabriella Kelmer
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Lídia Jorge. Foto: José Fernandes |
A filha escritora revela à
severidade materna que escreve sobre perdedores por ser como um cão sob a mesa,
aguardando os restos — as migalhas, os resquícios — de um opulento banquete de
que só pode e deseja participar a partir de um posto de observação subalterna.
Justifica, nesse ímpeto, a produção de uma literatura não apenas desprovida de
finais felizes, mas também atenta aos esquecimentos e silenciamentos da
história. A mãe, inconformada de ouvir a filha dizer-se em termos tão indignos,
argumenta a favor dos grandes homens e dos inesquecíveis feitos. Desentendem-se
as duas personagens, por um tempo, e fica evidenciado como é diverso o que
esperam do mundo e o que veem de si mesmas.
Misericórdia, o romance
mais recente da portuguesa Lídia Jorge, publicado no Brasil em 2024, pode ser
compreendido como a adoção do olhar crítico daquela mãe, todavia articulado
pelo método da filha, com uma visão escafandrista da intimidade e do cotidiano
de seres ficcionais marginalizados como propulsora da criação literária. A
relação familiar e suas rusgas vinculam-se à produção em duas dimensões
concomitantes: de um lado, a obra tem como protagonista dona Maria Alberta,
alcunhada dona Alberti, figura materna que, vivendo em uma casa de repouso para
idosos, não pode compreender as escolhas profissionais da filha escritora; de
outro, a produção, desde seu título, é uma encomenda da mãe da própria Lídia
Jorge, autora que possui todas as credenciais literárias atribuídas à filha do
romance. Geram-se, assim, na zona nebulosa em que a literatura vislumbra a
vida, paralelos entre as mães, suas filhas e seus desentendimentos, havendo
inclusive menção, dentro da narrativa, ao enredo de obras publicadas pela
escritora, tornando-se evidente que coexiste com a ficção dados advindos da biografia
da autora.
A obra, em sua versão brasileira,
tem sido divulgada como “o livro que Lídia Jorge nunca imaginou escrever”.
Entretanto, a condução social da prosa, a hibridez de gêneros discursivos, a
captação de uma certa humanidade indelével, explorada em suas contradições
constitutivas, são traços que articulam aspectos conhecidos da trajetória
literária da autora até este ponto. Nesse sentido, não se pode dizer, ao fim da
leitura, que é surpreendente
Misericórdia ter nascido de suas mãos. Mais
ainda: tendo exercido até aqui uma prosa que é uma ode ao ínfimo e ao
desprezado, revelando as injustiças desoladoras de realidades ficcionais
esteticamente provocadoras, pareceu-me um tanto natural — e nem por isso menos
pungente — descobri-la na construção humana e desestigmatizante com que se
conhece a jornada de dona Alberti e de seus pares.
“Eu sei que a felicidade é um bem
muito escasso. Devemos guardá-la sobre o peito quando nos toca por perto,
encher com ela todas as algibeiras da alma, para servir de escudo quando o seu
oposto acontece, por isso não me incomodavam por aí além, estava preparada. As
raparigas alojaram-me na mesa, empurraram-me a cadeira de modo a que o meu
peito ficasse rente à toalha, partiram, não chegaram a dizer-me bom dia. Mas eu
levantei os olhos e senti por perto uma boa fonte de felicidade – a sala estava
repleta, pelas paredes havia enfeites de Páscoa e as minhas companheiras de
mesa saudaram-me. Entreguei todo o meu contentamento a elas. E se não me lembro
do almoço de Páscoa do ano passado, este não irei esquecer” (Jorge, 2024, p.
20).
É essa mesma dona Alberti a
narradora em primeira pessoa, a relatar seus dias no hotel Paraíso, casa de
repouso na qual decide viver até o fim da vida. Impossibilitada de exercer
longamente a escrita devido à fraqueza das mãos, ela compartilha os seus dias com
um gravador; seus únicos registros no papel correspondem a pequenos poemas, que
confessa serem registrados com muito custo. Os capítulos, em geral curtos,
reconstituem os dias, sendo a transcrição — “infiel, como não poderia deixar de
ser” (Jorge, 2024, p. 7) — o procedimento a tecer a maior parte do romance, por
meio de iniciativa executada por uma volição de um(a) narrador(a) exterior aos
fatos narrados. Introduzido antes da voz de dona Alberti, em um preâmbulo, pode-se
inferir ser essa figura quem organiza áudio e texto em capítulos aos quais é
atribuído um título.
Quanto à construção romanesca,
cabe dizer que a dicção da personagem, hábil, simbólica e direta, aponta para uma
percepção aguçada e singular, marca de uma habilidade linguística e literária
que pode ser entendida como uma herança não intencional deixada para a filha.
Embora seja fundamental questionar até que ponto o romance é constituído
internamente pela volição de dona Alberti, já falecida quando do recolhimento
de seus áudios e de seus pertences, o procedimento literário e a voz da
narradora são autênticos e nunca tornam inverídico o procedimento adotado e os
parâmetros estabelecidos pela obra enquanto criação ficcional.
Em termos de eventos narrativos,
conhecemos a personagem central depois que ela decide pela mudança, deixando
para trás o imóvel em que vivera (intocado por sua recusa de retirar dele
qualquer objeto) devido a um acidente doméstico. Muda-se para a casa de repouso
com a dignidade e a severidade de quem, dotada de lucidez e vontades
irredutíveis, resigna-se perante a implacável aproximação da morte. Lá descobre,
ao contrário de suas expectativas, que a vida ainda tem largos caprichos, mesmo
em tão improvável ambiente.
“Eu não deveria ser uma pessoa
assim como sou, sempre à espera do belo, do grandioso, do poderoso. Talvez um
pouco desajeitadamente, levantei a mão, despedi o rapaz. Disse-lhe — “Obrigada,
você fez uma boa acção. Já se pode ir embora.” E ele foi. Arrependi-me. Mas eu
tenho este feitio, quero demais, mando demais, amo demais alguma coisa que não
alcanço, e quando não a atinjo, procuro desesperadamente transformar o que
existe de modo a aproximar o objecto defeituoso da realidade inalcançável. Não
sei onde colocar os meus pensamentos que são demasiado amplos para o vaso da
minha cabeça e para o volume do meu coração” (Jorge, 2024, p. 34).

Ao longo de suas considerações, Dona
Alberti desvela as interessantíssimas personalidades que a rodeiam. Há, de um
lado, os trabalhadores do Hotel Paraíso, que se diferenciam, principalmente,
pelo respeito ou pela indiferença com que tratam os internos, em especial a
protagonista. Os maus tratos não deixam de ocorrer no contexto do
estabelecimento, em uma elaboração que aponta para a despersonalização
vivenciada pelos idosos; ao longo do romance, todavia, são reconhecidos
principalmente os bons cuidadores, como a ingênua paraense Lilimunde (nome
aliás incomum a ouvidos brasileiros), chegada à Europa pelo auxílio de uma
igreja evangélica, à qual deve parte do seu salário; a terna Nina Mercedes,
espanhola com mãos e palavras de imensa suavidade; ou o marroquino Ali, que
mobiliza a empatia da protagonista ao ser exposto à humilhação por sua
orientação sexual. Eles introduzem questões contemporâneas, trazendo consigo a
vida, as angústias e os dilemas de uma juventude que converge a Portugal desde a
Europa, a África, o Brasil. Essas vidas, em pleno desenvolvimento, paralelas à
trajetória minguante de dona Alberti, de algum modo a enlevam, fazendo com que
se ocupe em preocupações e agrados, nascidos como gratulação pelo cuidado recebido,
mas mantidos por um gradual e genuíno interesse no outro. Dona Alberti,
inclusive, é muito gentil em seu contato com a juventude, compreendendo a
necessidade da vivência em primeira pessoa, como fica evidente quando afirma
não ter o direito de “surpreender com a minha experiência de pessoa que viu
muito do mundo rolar” (Jorge, 2024, p. 238). São essas relações, bem como o
laço mantido com o cunhado e a filha, a via pela qual, já longe dos
noticiários, a personagem passa a experienciar a vida externa ao Hotel Paraíso.
De outro lado, estão os internos,
que ocupam — entre idas definitivas e vindas temporárias — as outras sessenta e
nove vagas do estabelecimento. Alguns atiram-se à vida que resta, vivendo uma
série de casos amorosos, como ocorre a Dona Joaninha, que ainda esconde o sonho
de aprender a ler, ou se convencendo da possibilidade da ação política e
revolucionária no âmbito da organização do estabelecimento, como desempenhado pelo
senhor Tó, cuja energia se torna fonte de mobilização. Outros se confiam nas
diferenciações, de classe ou nacionalidade, de sexualidade ou de eminência da
prole, como forma de se singularizarem. De um e outro modo, há, na velhice
apresentada pela obra, a evidenciação de subjetividades autônomas, independentes,
pujantes, em uma construção que desafia a redução e a impotência em geral atribuídas
aos idosos dentro dos contextos capitalistas.
Cada vez mais enredada nas
vivências que a cercam, é de dona Alberti e de sua prosa direta e sensível que
emana a força maior do romance. Reservada, sua figura transita entre a altanaria
e a profusão sentimental, mantendo um exterior duríssimo a maquiar uma
capacidade avassaladora de viver emoções. Os dois traços se articulam simultaneamente
no âmbito da criação da personagem, que ademais aponta para uma geração de
mulheres remanescentes de uma experiência na qual o gerenciamento da vida
doméstica e familiar tolhia a sentimentalidade, compreendida como fraqueza. É
nesse sentido que suas revelações — sua confidência, conforme ofertada ao
leitor — são profundamente impactantes, pois revelam uma postura que repele o
arroubo emocional e imediatamente se arrepende pela inclemência com que se
porta; que se orgulha da ausência da filha após um desentendimento enquanto
anseia silenciosamente pelo seu retorno.
“Todo este cruzamento de vidas
dói-me mais do que a minha vida. Quando aqui cheguei e vi setenta pessoas
sentadas, imóveis, caladas, passando-lhes por cima a bênção da tevê, desejei
que viesse uma peste invisível que nos levasse a todos ao mesmo tempo, saltando,
de mãos dadas, para o outro lado desta praia. Achei que havia muito que
tínhamos perdido a vida. Que éramos restos inertes da existência passada.
Mentira. Os restos da nossa vida estão activos, e crescem e explodem sem
controlo” (Jorge, 2024, p. 269).
A vida no Hotel Paraíso — com suas
perdas, que atestam a proximidade da morte, e com seus momentos altos, quando
os espíritos se renovam para o senso de coletividade e para as possibilidades
ainda vivas da experiência — é transformadora para a protagonista, que, embora
sem perder inteiramente a rigidez comportamental, notabilizada em decisão grave
tomada na porção final do romance, acata o surgimento da novidade e articula a
transformação de verdades até então invioladas. Dentro do confinamento, vive as
discriminações, a desumanização, a amizade e o amor; assiste adentrarem, pelas
portas e janelas, fluxos de pessoas, de humores, de crises sociais; articula a
resistência da luminosidade e da validade dos encontros, ainda que estejam eles
ocasionalmente esmorecidos pelo convívio com a morte. Descobre, enfim, nos
atritos com o universo de indivíduos que a cercam, outras formas de entender a
literatura, de lidar com a aproximação do fim, de conceber o amor romântico. Nesse
ímpeto, desestrutura sedimentos de toda uma vida, abrindo espaço para experiências
e concepções que preenchem os dias mesmo perante a dependência física e o
isolamento.
Dona Alberti guarda consigo uma
bolsinha, que carrega junto ao peito, onde esconde o que lhe é mais caro: seu
tesouro se constitui de “um bilhete manuscrito dobrado, um bloco de seis folhas
em branco de tamanho A8 e um pequeno lápis apanhado à faca, marca Viarco”
(Jorge, 2024, p. 7). O bilhete é uma herança deixada pelo sargento João
Almeida, interno do Hotel Paraíso que, depois da morte repentina, fornece
despretensiosamente à personagem o mais valioso presente: algumas linhas que
comunicam, a ela, um apaixonante interesse pela vida. Além do bilhete, estão os
papéis e o lápis apontado, que em diversas direções interpretativas — seja como
hábito adquirido, seja como precaução em casos emergenciais — apontam para um
vínculo com a escrita que ultrapassa as impossibilidades físicas do momento
vivido. Retornamos assim à discussão da literatura, recolocando, ao lado da
filha escritora cuja visão se desenvolveu completamente, uma mãe também
escritora, embora não publicada, cuja existência talvez tenha sido a marca de impotências
circunstanciais que a impediram de articular sua visão própria, conquanto a
escrita lhe seja absolutamente fundamental.
Colocados lado a lado os papéis, o
lápis e o bilhete, simbolizando, respectivamente, a escrita, em sua
materialidade, e a vontade irremediável de experimentar o mundo, torna-se clara,
dentro da criação literária, a motivação para dona Alberti falar ao gravador, quando
o registro escrito torna-se impossível. A escrita é pulsão de vida no âmbito do
romance; não à toa o reencontro com o bilhete — que se sucede à tocante
descoberta da misericórdia do outro, do amor desinteressado que é fonte de
cuidado e pertinácia — mobiliza a vontade da personagem de viver e de narrar.
De viver e de escrever (mesmo com a voz).
“No meio da minha miséria,
acontecia alguma coisa inesperada, tratavam-me bem, faziam as pazes comigo.
Deitavam-me numa cama lavada. Uma delas passou as mãos pelo meu corpo,
agasalhando-me. Como se eu merecesse, tinham misericórdia de mim. Eu aceitava.
A do Jeová recebeu à porta um tabuleiro. Continha um copo e uma palhinha. Uma
das outras, desconhecida, tomou o copo, aproximou a palhinha dos meus lábios e
eu bebi o seu conteúdo até ao fim” (p. 309).
Resta destacar, enfim, que termina
a obra com a chegada da covid, discutida a partir de um procedimento
abertamente inventivo. O capítulo, intitulado “Sete parágrafos em seu nome”, é
narrado em primeira pessoa por uma dona Alberti que se pode inferir ser apenas
imaginada, sendo ela quem relata a entrada avassaladora da pandemia no Hotel
Paraíso (e, de modo contíguo, nas instituições para idosos). É um ponto tocante
da obra, no qual se veicula a ausência de trabalhadores, a rápida infecção, o
caos absoluto dos sistemas de saúde e da sociedade como a conhecemos do ponto
de vista daqueles que seriam vitimados pela doença.
Desde o início da obra, dona
Alberti vive embates com a noite, figura metamorfa de tons fantásticos que
adentra seu quarto nas horas mais vulneráveis e a atormenta com perguntas
decisivas, revirando seu conhecimento de geografia, seu amor pela própria
filha, seu medo de morrer. Ao longo do romance, são diferentes as maneiras com
que a protagonista recebe a noite (alusiva à morte). Em dado período, chega ao
ponto de ansiar por sua chegada, entregar-se a ela, para depois esquecê-la, ou
lutar contra ela. Com a entrada da covid na casa de repouso e a infecção da
personagem, evidencia-se ainda a resistência à derradeira investida da noite. É
bastante representativo da obra como um todo que a narração se encerre com a
esperança na recuperação da própria saúde por parte de dona Alberti e com a
alusão à juventude e sua alegria, à infância e suas cantigas.
Escolhe Misericórdia, a
cada saída, a cada retorno, a substancialização daquilo que, avassaladora e
indiscutivelmente humano, assim permanece, até o fim. O romance, memorável, foi
para mim uma experiência em algum ponto intransmissível, inefável, motivo por
que recomendo sua leitura, como alguém que, tendo-o em mãos, em muitos momentos
esqueceu a crítica em favor do êxtase e do arroubamento.
______
Misericórdia
Lídia Jorge
Autêntica/ Contemporânea, 2024
384p.
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