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Dalton Paula. Maria Firmina dos Reis. MASP (Reprodução) |
“O nosso romance, gerou-o a imaginação, e não o soube
colorir, nem aformosentar. Pobre avezinha silvestre, anda terra a terra, e nem
olha para as planuras onde gira a águia.”
As primeiras palavras lidas em
Úrsula, no Prólogo, afirmam o
poder da criação. Criar é contornar o estilo do século e deslocá-lo em sentidos
diversos, afirmando a identidade nacional ao mesmo tempo que se pretende
miná-la. Maria Firmina dos Reis especializa a vanguarda ficcional da literatura
abolicionista ao conceber no exercício da escrita uma tarefa de dar existência
ao território obliterado do Brasil. Sem quaisquer dúvidas disso, o romance sai
ineditamente em 1859 sob o título autoral que facilmente acompanha seu nome:
“Uma maranhense”, simples e adjetivo, e ainda mais acertado porque ela conturba
“a conversação dos homens ilustrados”.
A conturbação vem logo no primeiro capítulo, “Duas almas
generosas”. A fisionomia da narração, muito ligada aos traços românticos,
acompanha o cenário campestre e guiado pela religião e marca o encontro de um
jovem
cavaleiro solitário com
um pobre rapaz sem esperança e sem gozos.
Quem são eles? O mancebo Tancredo e o escravo Túlio. O segundo, sendo humilde
ao hábito de escravo, auxilia o primeiro após um desmaio. Em poucos diálogos, o
homem brasileiro se desfaz em duas almas — o que “salva” o branco e o que pode
oferecer generosidade em troca apoiando a sua libertação. Ocorreu assim os
primórdios da verdadeira presença negra no interior do romance brasileiro:
sancionando o escravo na mesma planície narrativa de personagens comuns.
Compreendida a situação, Túlio resolve acolher o mancebo ao
levá-lo para a casa da senhora Luiza B., espécie de viúva matriarca em um
território senhorial. Como a narrativa precisa ser escrita atendendo ao
programa literário familiar, os cuidados da jovem solitária da casa, Úrsula,
encantam Tancredo em momento de delírio. Esse encontro tão furtivo e rompente
para instigar paixão é escrito para aproximar o amor das individualidades
sofridas por ambos, típico do compromisso ficcional com leitoras femininas:
“Amor! Esse sentimento novo, ardente como o sol do seu país,
arrebatador como as correntes que se despenham no vale, foi a varinha mágica
que transformou-lhe a existência. Julgou tudo um sonho encantador, cujas
doçuras começava apenas a apreciar.”
Adotada a paixão, insere-se vilania e oposição aos pombinhos
ansiosos por uma
eternidade de gozo. Esses elementos-obstáculos estão
fundamentados na hierarquia de interesses sociais e na ideologia das relações
pessoais mediadas por dinheiro. Nesse sentido, o casal principal adquire
definitivamente a ossada de protagonismo quando se explica o pano de fundo de
suas histórias pessoais cruzadas por infortúnios.
Do capítulo quarto ao sétimo, a técnica do
flashback
é oportunizada na conversa de Tancredo com Úrsula, em um momento que ele narra
como Adelaide, mulher que havia prometido voto de casamento, oficializou
matrimônio com o próprio pai do moço, após a morte da mãe. Daí o sacramento do
demônio
de traições e
do insultuoso escárnio na figura paterna em sua
trajetória.
História digna de peripécia romanesca é também o da origem
de Úrsula, fruto do casamento de Luiza B. com Paulo B. e da diferença de
nascimento
e
fortuna existente entre o casal. No capítulo oito, a própria matriarca
explica como a união despertou o ódio do seu irmão, o comendador Fernando, e
mais a frente revelando ser ele o assassino do pai da protagonista.
Esses dois contextos, dois passados tristes criados para
serem reabilitados pelo amor no presente, supõem a reprovação da centralidade
da figura masculina como condutor das ações coletivas. Vários são os fatores
que corroboram a esse argumento na escrita, desde a figuração de déspota que
Tancredo realiza de seu pai quando este subordina sua mãe à prepotência e
humilhação até o relato de Luiza B. sobre a vilania
incestuosa e
libidinosa
do tio de Úrsula quando afirma que forçará a sobrinha a casar-se com ele, por
meio de uma carta.
Aliás, no momento de revelação de Luiza B., que coloca
Tancredo e a personagem-título como primos, o caráter valorativo do homem
brasileiro virtuoso é idealizado por outro fato: a retribuição de Tancredo aos
cuidados de Túlio quando contribui para a compra de sua alforria, prometida
desde o encontro do primeiro capítulo. Assim, comprovando a hegemonia branca
aproxima-se o leitor da rede de subordinação do escravo, explorando suas
potencialidades como personagens.
Além da história romântica (e repelindo alguns de seus
desfechos morais) tão comum entre os escritores nos primeiros anos da ficção
brasileira, o caminho alinhado passa a se circunscrever entre a reprovação da
instituição paternalista de obstinação classicista e a condição servil dos
escravos no Brasil. É a partir desse ponto que a obra se alinha com o discurso
contra-colonial balanceando o aparecimento de narrativas afrodescendentes.
Nas províncias do norte, Maria Firmina já cerca o típico
cavalheiro masculino e afere condição emotiva ao escravo por meio de Túlio (que
mais tarde nomeará capítulo próprio, insinuando sua importância nos conflitos).
Ela produz na escrita desvios para chegar no
buliço enganoso do mundo.
Ao redor, estão as
águas hibernais e a
abóbada celeste geradas
por um
Senhor Deus. Por dentro, vão se inserindo a
mórbida visão da
realidade, a
odiosa cadeia da escravidão e a
barreira do forte
contra o fraco. Paradoxalmente, se cria uma balança onde duas almas passam
a existir, a se igualar, pelas diferenças que as circundam.
Substantivos, numerais, pronomes e artigos passam então a
ser de uso comum, porém valiosos no primeiro romance escrito por uma mulher no
Brasil, quando observados com cuidado e em ato de leitura. A invenção das
personagens negras em posições de não-liberdade está pautada desde o início do
romance e contorna nomeações político-gramaticais.
É de despertar atenção, por exemplo, que os capítulos sete e
oito, ainda, carregam o nome de duas mulheres brancas, Adelaide e Luiza B.,
sendo logo sucedidas por um novo desvio — a experiência de (de)limitação da
africana sexagenária traficada. No célebre capítulo nono, “A preta Suzana”, a
historiografia se faz negra e afirma sua existência. Olhando por fora, a mãe de
criação de Túlio entrecruza a estrutura narrativa para dar significado ao
tráfico de escravos e a prática da escravidão. Mas Suzana intitula esse
capítulo interdependente sob a égide do adjetivo “preta”, o que é ainda mais
instigante para observar a experiência que a ficcionista faz da própria Língua
Portuguesa para pôr os pontos nos is.
Sendo excludente do espírito nacionalista, delegado a
produção de homens escritores até então, os desvios de Firmina perseguem a
própria possibilidade de narrar. Não é o homem, nem a mocinha romântica. Mas a
própria negra, a mulher escravizada, que preenche a homogeneidade estética e
política do romantismo hostil quando ele já garante respaldo na formação
nacional:
“Liberdade! Liberdade. . . Ali eu a gozei na minha mocidade!
— continuou Susana com amargura [...] E esse país de minhas afeições, e esse
esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah, Túlio! Tudo me
obrigaram os bárbaros a deixar! Oh, tudo, tudo até a própria liberdade!”
Por fora, é ainda mais interessante: o mesmo capítulo está
inserido praticamente no centro da narrativa, cortando o romance entre as
partes iniciais de ambientação e o encontro das personagens (logo após as
narrações de Tancredo e Luiza B.) e os desdobramentos do plano cruel do
comendador. O testemunho de Suzana é um ato de apoio e conselho a Túlio no
momento de reconhecimento de sua liberdade, e uma forma eloquente de inserir um
caminho que invade o romance e o faz enfrentar o arcabouço escravocrata do país.
“A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade fora sufocada nessa
viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.”
Retornemos ao casal principal. A tirania alçada em seu ponto
máximo pela figura do comendador resplandece a ideia de uma estrutura social
muito perigosa para todos, especialmente mulheres¹. O projeto estético de
Firmina reconhece os heróis românticos como vítimas desse
anjo do extermínio,
o Fernando P. – o comendador entre tantos outros que dominam as casas
provinciais.
Some-se a isso o aparecimento do decoro cristão como bússola
religiosa para recrudescimento dos planos emendados pelo vilão. O avanço da
história procede quando Tancredo e Úrsula decidem se casar às escondidas, em um
convento, antes do tio materializar à força seu desejo. Com a figura do Padre,
o romance não deixa de se impregnar da visão religiosa que oferece a) o
casamento consciente como estabelecimento de uma nova ordem naquela situação e,
b) remissão dos pecados para garantir o fim da tirania patriarcal e o
entendimento sobre a libertação dos escravos.
Entre as
nódoas do pecado empenhadas por Fernando ao
final do romance, torna-se explícito o mecanismo da tortura violenta para
repudiar as atitudes de Túlio e Suzana, assassinados por ajudarem o casal
principal, e para a tentativa de desposar Úrsula matando também Tancredo, na
porta da igreja. Sua ação compreende a execução de seus desejos como projeto de
conservação de seu poder e se cumpre no chicote:
“Úrsula podia deixar de aceitá-lo por tutor, e, ainda
aceitando-o, recusar-se energicamente a ser sua esposa. O comendador estava
afeito a mandar, e por isso julgava que todos eram seus súditos, ou seus
escravos.”
Os escravos, os negros. O recurso de inserir esses
indivíduos como personagens que são violentados e assassinados é estendido ao
próprio sentido de individualidade que eles têm e são negados. O próprio
romance já prepara desde o início em momentos que há mais numerosas vítimas do
comendador ao que realmente se lê. Firmina preenche o todo hiperbólico do
romantismo com pontos de histórias afrodescendentes que culminam em um arquivo
radical na estrutura de
Úrsula.
O estilo próprio de vislumbrar tais personagens no mesmo
parâmetro narrativo dos brancos, sofrendo as auguras da escravidão, em
passagens sinuosas, dá um rompante na ficção. Colocar-se na posição de
escritora faz da nossa maranhense uma criadora vigorosamente arrojada no seio
da literatura nacional em pleno oitocentos. A sua cabal linguagem de
transgressão contra-colonial é tão visível que engana ingênuos leitores.
Artifícios como esses são vários e utilizados
meticulosamente para entrever a história principal, de modo a substanciar o
universo romântico por dentro. Como se estivéssemos diante de uma inscrição de
personagens dentro de outros. Nesse caso, as figuras negras estão inscritas em
pontos específicos da história principal — as relações triangulares de
amor/ódio nas famílias brancas — mas também completam o romance. Túlio, Suzana
e Antero, todavia, não se estabelecem apenas nos limites que tocam a
superficial história romântica. O desenvolvimento das relações sinuosas e
aberta entre eles — vale lembrar que o aparecimento de Antero ao final da
narrativa não é oposição ao lugar de Túlio, por ele ser guardião da casa do
comendador, mas diversificação das relações existentes de escravos no período —
singulariza ao leitor vontades e sensações partidas do ofício criador e
irrompendo na obra.
Daí, então, que vemos a atitude política germinada na
própria estrutura romanesca que não abrira espaço ao escravo. A letra de Maria
Firmina dos Reis vai bagunçando por dentro para ganhar sentido e a cada nova
página a subversão vai se irrompendo por momentos-chave. A história de
Úrsula
é, por dentro, a grande e primeira narrativa da escravidão brasileira no ramal
do projeto nacionalista-indianista oficial. Por isso, a existência da escritora
ocorre no ato de criar: dominando o sistema literário, ela não cria uma
história nova, porém escreve no interior de uma já conhecida, ramificando-a.
Abrindo o livro novamente
Era 1859.
Os passos dados revelam, em maior ou menor parte, como alçar
à personagem aquele/a que não é vítima do amor, e assim interpor instrumento
vasto sobre a situação de negação da liberdade civil aos africanos escravizados
no país. Naquela seara da violência paternalista e pela simbologia da figura
feminina “vítima e acanhada” Maria Firmina dos Reis movimenta o uso da
linguagem por escolhas interessantes e em alento.
Se as possibilidades de indicar significados tem valido
esforços em reascender o seu alcance, a interpretação de sua composição
estética, a conjugação de vários sentidos ao(s) literato(s), despontam ainda o
modo original como a escritora conhecera a soberania masculina e ainda assim
incutiu nova imaginação em pleno século XIX².
O resultado é ainda mais impressionante porque trágico.
Maria Firmina dos Reis, uma maranhense, cruzou o final infeliz do casal Úrsula
e Tancredo com o sistema de violência servil; criou imaginação combatente em um
projeto que intervêm na estrutura romanesca e ficou apagada por séculos³ até
retornar em nosso círculo social por vicissitudes do destino (eis aí a real
cultura do cancelamento praticado nas instituições literárias). É como se a
autora estivesse nos dizendo: o sofrimento de Úrsula (sucumbida como “louca”) e
Tancredo (assassinado por enfrentar a soberania) se perde em tantos outros e
tantos maiores. Mas a perversidade do Comendador em sentir resignado e
arrependido, ao final do último capítulo, é ainda mais violento porque não
acolhe nenhuma das imagens de escravidão negada, nem condena a prática de
servidão secular no Brasil.
Agora é 2024.
224p.
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