Onde acaba o narrador

Por Pedro Sorela


Mario Vargas Llosa. Foto: David Levenson



Talvez o ensaísta e professor sejam o lado menos conhecido dos Vargas Llosa que convivem com o romancista. Algo inevitável, dada a maior popularidade do romance, embora um tanto injusto pois A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary é a melhor explicação que conheço da contribuição decisiva de Flaubert para a literatura. E sua História de um deicídio, tese de doutorado sobre Cem Anos de Solidão de seu então amigo e vizinho em Barcelona, ​​Gabriel García Márquez, continua sendo uma referência indispensável nos estudos sobre o escritor colombiano, e foi um dos primeiros nesse gênero. Mario Vargas Llosa também escreveu um ensaio sobre Tirant, o Branco e uma generosa coleção de artigos dedicados a outras obras literárias, de prólogos para obras clássicas e contemporâneas reunida em A verdade das mentiras, livro no qual ele desenvolve sua teoria de que a ficção é necessária para entender a verdade humana.
 
Vargas Llosa também é um dos poucos escritores de língua espanhola que aceita o desafio de usar uma linguagem acadêmica (no bom sentido do termo) e, de um seminário em Oxford em 2005, segundo ele, se forma a ideia de um ensaio acerca de Os miseráveis. No entanto, eu conhecia o projeto desde quando, há quinze anos, ele o mencionou com entusiasmo em uma entrevista que me concedeu e foi publicada no jornal El País. Entusiasmo compartilhável: o romance de Victor Hugo ​​é um dos livros mais eficazes, como vejo há anos, em levar jovens universitários a uma leitura digna desse nome, jovens que muitas vezes são vítimas de currículos pitorescos e, não raro, reacionários, nos quais a literatura ocupa espaço de mera decoração ou doutrina para o politicamente correto.
 
E tudo isso, entusiasmo e planos de estudo, é relevante. Porque, diferentemente de uma tradição crítica e didática míope que, por exemplo, tende a considerar este mega romance apenas como uma espécie de folhetim — o que também é, brilhantemente —, Vargas Llosa ensaísta o caracteriza por uma generosidade leitora rara na crítica e incomum no meio acadêmico, mais propensa a chafurdar em seu próprio discurso: o que antes era chamado de defeito do texto como pretexto agora é postulado como escola (e não é brincadeira: vejam as legiões de desconstrutores convencidos de que o que Barthes e Derrida propuseram é contemplação verbal do umbigo). Em Vargas Llosa, a generosidade parece mais uma exigência intelectual da crítica, algo necessário para a compreensão de um texto, como argumentaram John Berger e George Steiner. Este também coloca o crítico em um nível mais alto, como fez o Renascimento, o crítico também é um criador, uma ideia que Eliot e Greene enfatizaram.




Como acontece com Shakespeare, qualquer tentativa de falar de Os miseráveis ​​e de seu autor é fracassada desde o início, dada a impossibilidade de encerrar tal esforço. E foi o que aconteceu também com Vargas Llosa, que com a minúcia que lhe é característica (como em seus romances: veja A festa do bode ou A guerra do fim do mundo) assinala que terminar a bibliografia de e sobre Hugo exigiria trinta anos de leitura ininterrupta, e se declara resignado a nunca terminar de conhecer o escritor.
 
Mas, ainda que condenado a não esgotar as fontes, assim como estudamos o Shakespeare dos românticos, ou o dos comunistas, o estudo de Victor Hugo serve para estudar o próprio ensaísta ou sua época, que em sua obra interpretativa revela suas obsessões e valores.
 
Além de mestre da escrita, sempre tive a intuição de que Victor Hugo é para Vargas Llosa um modelo de escritor, comprometido com as causas de seu tempo e que inclusive pagou seu compromisso com um longo exílio — aquele que permitiu a escrita definitiva de Os miseráveis ​​, que não pode deixar de lembrar o do próprio escritor peruano, ex-candidato à presidência do Peru e depois perseguido por Fujimori.
 
Em relação à escrita, em seu ensaio sobre Os miseráveis, Vargas Llosa deixa clara mais uma vez sua preocupação com o narrador: quem escreve, que recursos ele se concede e com que autoridade, e qual é sua coerência. E, de fato, esse pode ser o problema literário central, ou pelo menos narrativo, do nosso tempo.
 
Em três de seus ensaios, o autor de A tentação do impossível volta no tempo no estudo do que ele chama graficamente de deicídio: ao deixar de representar um mundo e propor outro, por assim dizer, de uma nova criação, o escritor (Flaubert, García Márquez) é um deicida, um substituto de Deus. E isso acontece — e perdoem a pressa da alusão — paralelamente ao desaparecimento de Deus na filosofia, ao surgimento de novas certezas, digamos científicas, e à insegurança desse novo criador que, acrescento, abalado por acontecimentos que mudam nossa ideia do homem (a bomba atômica, Auschwitz, o Gulag), não pode mais falar com o otimismo do narrador onisciente e tem que buscar outras ferramentas, mais condizentes com suas novas inseguranças.
 
Como Vargas Llosa explicou, García Márquez inventou com novas regras um mundo “tão recente que para designar as coisas era preciso apontar com o dedo” e Flaubert inventou a ausência do narrador e a linguagem autossuficiente, que permaneceu, por assim dizer, apenas no ar, e da qual (digo eu) descendem os teletipos da Reuters.
 
Voltando atrás, o passo seguinte foi o estudo daquele que, segundo o ensaísta, foi o último (embora haja muitos contemporâneos) dos grandes escritores oniscientes, isto é, os clássicos, ou seja, aqueles que não têm escrúpulos, não só em se permitir conhecer a fundo todos os recantos de uma sociedade e seus personagens, mas também — e esta é a fronteira decisiva — em intervir com regras flexíveis quando o consideram conveniente. Muito, e às vezes até de forma implausível, no caso de Victor Hugo, “o divino estenógrafo” que é a presença principal do romance, segundo o ensaísta. Não é por acaso que Victor Hugo considerou Os miseráveis ​​um livro religioso um longo ensaio sobre o bem, o mal e Deus como causa última nem que o ensaísta de A tentação do impossível dedique uma longa reflexão final a esse aspecto em seu ensaio.
 
Lidos em sucessão, esses ensaios de Vargas Llosa constituem não apenas uma exposição clara do que é a modernidade na literatura e como esta chegou, mas também um eco de suas próprias concepções literárias — com lampejos sugestivos como o de que o romance “tende a se expandir e durar” por natureza — que complementam os capítulos da autobiografia do escritor em Peixe na água.
 
Ora, a fronteira da modernidade, que Vargas Llosa propõe na autolimitação dos poderes do narrador, inaugurada por Flaubert e convincente até pouco tempo, continua, a meu ver, cada vez mais questionada pelas sucessivas e por vezes anárquicas entregas da chamada autoficção que, de J. M. Coetzee a W. G. Sebald e talvez anunciadas por Henry James e Jorge Luis Borges, corroem essa fronteira, colocam-se no centro mesmo do debate e repensam a busca do narrador do nosso tempo. Adoraria saber o que Vargas Llosa pensa sobre essa mudança de fronteiras, se é que isso é verdade. 


______
A tentação do impossível: Victor Hugo e Os miseráveis
Mario Vargas Llosa
Paulina Wacht; Ari Roitman (Trads.)
Alfaguara, 2012 
176p.



* Este texto é a tradução livre de “Dónde termina el narrador”, publicado aqui, em Letras Libres.

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