Jaci: um retrato dos pecados capitais das grandes obras na Amazônia

Por Luis Fernando Novoa Garzon




 
Em Jaci: sete pecados de uma obra amazônica, documentário caleidoscópico de Caio Cavechini, os próprios trabalhadores contribuíram para a realização do filme — compartilhando seus vídeos. Aproximadamente 30 câmeras diferentes foram usadas ao longo de quatro anos para captar as imagens, sendo algumas dessas de entrevistas, outras de registro da vida no canteiro de obras. Grande parte das imagens foi captada por celulares de trabalhadores que construíram as Usinas Hidrelétricas (UHEs) de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira em Rondônia.
 
As imagens que abrem o filme são da Revolta dos Trabalhadores na UHE de Jirau em 2011. Fica claro, logo de início, que o filme não é sobre o Distrito de Jaci-Paraná, localizado nas adjacências de Porto Velho, capital do estado. Jaci é uma entre milhares de atingidas pelas grandes obras do chamado Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), mas é a partir de seu cotidiano drasticamente alterado que se estende o fio narrativo do filme. Jaci é instada ao sacrifício, assim como Geni, da canção de Chico Buarque, “Geni e o Zepelim” (1979). Geni incorpora a exploração e opressão circundantes, e por isso se torna objeto de transferência dos agentes mesmos que as promovem, a maldita que segue de programa em programa, até chegar o grande aparato e seu comandante.
 
Quando se recusa a deitar-se com aquele que encarna o carrasco capaz de tudo desmanchar no ar, é, por um momento, elevada à bendita condição de salvadora. Logo depois de atender ao apelo geral, Geni volta a ser moralmente condenada e oprimida. Não é à toa que as imagens que encerram o documentário de Cavechini são as lágrimas de uma jovem, não mais bendita de Jaci. Amazônia usada, violentada e descartada, até a fronteira seguinte, até o fim da fronteira, até o fim.  A construção das Usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau reiteram e amplificam o método de extermínio da diversidade socioambiental amazônica. Tudo em nome da expansão de cadeias produtivas concentradoras e insustentáveis, eis o pecado (do) capital.
 
O cotidiano dos trabalhadores engajados na construção da hidrelétrica é retratado de maneira direta e próxima: a jornada de trabalho que inclui os longos deslocamentos, as filas para tudo, o trabalho pesado, a hierarquia e pressão a que são submetidos os barrageiros — trabalhadores volantes, de obra em obra, entremeados pelo garimpo — para atingirem metas estabelecidas pela empresa. Nesse sentido, os operários dos grandes canteiros de obra também são comparáveis à Geni: suportam o ritmo frenético de produção, submetem-se ao confinamento e têm seus direitos constantemente violados; daí partem para a próxima empreitada, sucessivamente.
 
Fica claro que, especialmente na hora do trabalhador reivindicar seus direitos perante a corporação — juridicamente aparelhada — o domínio da língua está ligado a poder. Poder de argumentação é igual a poder de decisão. E a decisão é sempre pela maior produtividade. Em Trem-fantasma, de Francisco Foot Hardmann, é relatado que os medicamentos ministrados aos trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré fechavam uma equação que garantia meramente a sobrevivência — e portanto a produtividade — dos trabalhadores. Produtividade para nos salvar? Para nos redimir?
 
Os relacionamentos de trabalhadores de Jirau com as prostitutas de Jaci-Paraná são explicitados no brega (cabaré). Curiosamente, esse mesmo brega, quando filmado em 2014 para o documentário Entre a cheia e o vazio, havia sido transformado em abrigo para os desalojados pela cheia histórica do rio Madeira. O número de bregas em Jaci em 2014 era maior que o número de escolas e igrejas, por isso serviram de abrigo.
 
A cena dos trabalhadores decidindo pela manutenção da greve em 2011 — contra a determinação do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, que no passado era quem puxava as greves de massa — é um registro precioso. O discurso dos representantes da empresa alegando que os custos da obra são repassados para o país e para o consumidor, justificando que “não tem como ser diferente”, reforça a falta de planejamento e responsabilidade dos Consórcios controladores das duas hidrelétricas.
 
Quando a imensa maioria de trabalhadores decidiu ignorar o sindicato adestrado, um deputado (sócio particular de um dos Consórcios) fez da defesa da usina uma “defesa nacional” e acusou os grevistas de sabotagem e terrorismo, conclamando a vinda a Força Nacional para reprimi-los. Segundo os relatos dos operários, a Revolta dos Trabalhadores de Jirau foi intensificada como resposta à intervenção policial. Logo após a repressão, os trabalhadores famintos e desorientados se puseram em marcha com destino a Porto Velho (a 120 km de Jirau). A mídia local narrou o episódio como se a cidade estivesse sob ataque iminente de fugitivos de um presídio. 
 
A cheia histórica do rio Madeira em 2014, potencializada pela operação irregular dos reservatórios das Usinas, e suas consequências desdobradas, são flagradas pelas câmeras que capturam os desalojados pela água e pela imprevidência e a truculência da Defesa Civil que criminaliza os ribeirinhos que se recusam a deixar suas casas. 
 
Cena final, brega vazio: muitos seguiram para Belo Monte, outros voltaram para suas famílias; e lá permanece a jovem, nem mais tão jovem, em Jaci. Suas lágrimas percorrem seu rosto e todo o filme contando a sua história particular no mosaico de vidas que a obra reúne. É o “ônus do progresso”, justifica um deputado federal, diretamente interessado.  É a forma de naturalizar a transformação irreversível da paisagem, do meio ambiente e das histórias de milhares de pessoas — para o benefício exclusivo de grandes grupos econômicos. O processo desse sofrimento ocultado das lentes oficiais está registrado limpidamente em Jaci: sete pecados de uma obra amazônica.

 

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