Interpretando Dom Quixote

Por Juan Montes


Quixote leitor de novelas de cavalaria. Juan Salvador Carmona, José del Castilho. Biblioteca Nacional da Espanha.


Quando o fidalgo que passa a se chamar Dom Quixote de La Mancha deixa sua aldeia em busca de aventuras, fama e glória, transformado em um cavaleiro andante, ele se encontra clinicamente louco ou se trata de uma alma livre, um rebelde radical que busca abandonar sua existência monótona e cinzenta para viver outra vida, uma vida fictícia melhor, mais emocionante, completa e feliz do que a vida real?
 
Uma leitura cuidadosa do Dom Quixote sugere que a segunda possibilidade tem mais um toque de verdade do que a primeira.
 
Cervantes repetidamente chama Dom Quixote de louco e declara reiteradas vezes seu desejo de enterrar de uma vez por todas o crédito e a fama dos livros de cavalaria com as disparatadas histórias de seu cavaleiro. Mas as entrelinhas deixam dúvidas sobre as verdadeiras intenções do novelista, esse grande comediante e bufão que zombava de tudo e de todos, começando por si mesmo. As declaradas intenções devem ser vistas mais como uma condenação obrigatória dos comportamentos estranho e antissocial de Dom Quixote, das “mentiras” da ficção, no contexto da egocêntrica Espanha católica e intolerante do início do século XVII, que apenas algumas décadas antes havia abraçado avidamente o espírito contrarreformista.
 
Como seu livro mostra em uma infinidade de episódios e anedotas, Cervantes era um apaixonado defensor e admirador do poder sedutor da ficção, de sua capacidade única de entreter e elevar a alma acima das trivialidades cotidianas. Na pobre Espanha e miserável que ele descreve tão bem com cru realismo, a ficção, os livros de cavalaria, que já então caíam no esquecimento, eram uma verdadeira salvação terrena, a porta para uma vida mais rica e ambiciosa que a vida em si.
 
Cervantes admirava profundamente a imaginação e a fantasia dos livros de cavalaria, seu poder soberano de transcender e transbordar a realidade e substituí-la por outro mundo melhor e mais fascinante. Dom Quixote deve ser visto na verdade como um elogio à ficção e não como uma condenação. Dele, um fabulador total, um crente convicto de que a ficção é tão real ou mais que a vida real, é impossível aceitar uma condenação de Dom Quixote como louco. É realmente a primeira broma de uma contínua paródia da experiência humana.
 
Alguns psiquiatras e psicólogos que estudaram o livro de Cervantes sustentaram que Dom Quixote era realmente doente mental. Diferentes teorias, amplamente apresentadas desde o século XIX, diagnosticaram o cavaleiro andante com esquizofrenia, transtorno delirante, transtorno bipolar, demência senil e paranoia megalomaníaca, entre outras patologias. Para um estudioso, Dom Quixote está imerso em suas próprias alucinações e delírios recorrentes devido a um ataque de melancolia — uma depressão, diríamos hoje — em idade avançada. Por outro lado, eram em parte resultado da repressão sexual do fidalgo de La Mancha.
 
Por outro lado, os episódios de lucidez de Dom Quixote — seus brilhantes discursos intelectuais, por exemplo, acerca da superioridade das armas sobre as letras, sobre o valor da poesia na casa de Diego de Miranda ou o elogio das ficções cavalheirescas antes do cânone — não são incompatíveis com um quadro esquizofrênico, uma personalidade dividida que alterna períodos de plena conexão com a realidade com períodos de escuridão mental. Um crítico chegou a entender a loucura de Dom Quixote como um simples artifício técnico, uma mera ferramenta funcional para estruturar o livro e justificar sua existência.
 
Uma revisão de vários episódios da novela nos permite sustentar uma hipótese menos científica ou técnica, porém mais literária e, por isso, mais verdadeira. Não podemos esquecer que Dom Quixote é antes de tudo um jogo de espelhos sobre o valor da ficção, da literatura, como arma para enfrentar a existência. O fidalgo Quijano ou Quijana — como o reconhece por esse nome um camponês que vive ao lado dele [Capítulo V, primeira parte] — escolhe ser Dom Quixote. É uma decisão racional e consciente de um homem são.
 
Aproximemo-nos da vida do fidalgo no início da sua história: ele tem quase 50 anos — quase um velho para a época — e não tem mulher nem filhos. Está ocioso, entediado. Não possui praticamente nenhum horizonte vital, nem intelectual nem sentimental. E se dedica à leitura dia e noite. Vende terras e compra livros e mais livros. É a leitura de ficção que o impulsiona a viver outra vida, deixar sua triste existência e se tornar aquilo que ele admira. Dom Quixote imita seus admirados cavaleiros andantes e cria invenções para ser igual a eles. A imitação e invenção são os dois instrumentos de seu empreendimento da emulação.
 
Sentindo-se outro, sendo um cavaleiro andante, ele se reconhece jovem, belo e forte, sente-se valente, cheio de energia e força, como confessa ao cônego naquele diálogo transcendental para compreender o sentido último de Dom Quixote [Capítulo L, primeira parte]. Ele não é mais o homem quase velho trancado em sua propriedade sem esperança: agora sua vida encontra um sentido, uma missão, tem uma pessoa amada por quem trabalhar e sofrer. Pode ter sucesso na vida, ser alguém que faz o bem e justiça a donzelas e inocentes. Pode deixar um legado, uma transcendência. Pode se sentir vivo novamente.
 
A ficção é o caminho que o leva a ser quem ele realmente quer ser. No primeiro capítulo, antes de se tornar um cavaleiro andante, Quijano tem o desejo de “pegar a pena e dar um fim ao pé da letra” às novelas de cavalaria que lê. O seu é, em princípio, um impulso literário que surge da necessidade quase física de transformar a realidade em ficção. Ao se tornar cavaleiro, Quijano toma uma decisão livre e por vontade própria. “Parecia-lhe conveniente e necessário”, escreve Cervantes.
 
No final de sua primeira excursão, após ser espancado no meio de um grupo de mercadores, Dom Quixote imita o lendário Valdovinos — que, segundo a história, foi abandonado ferido na floresta após uma batalha — para aliviar sua humilhação. O cavaleiro busca consolo e orientação na ficção. “Concordou em recorrer ao seu ordinário remédio”, diz a novela. E então, quando o fazendeiro encontra o viandante gravemente ferido e o guia de volta para sua aldeia, “esquecendo-se de Valdovinos”, Dom Quixote age como Abindarráez, o protagonista de uma história moura, que é capturado e levado cativo por um guarda espanhol. E quando o vizinho de povoado o repreende, dizendo-lhe que ele é o honesto senhor Quijana e não Valdovinos ou Abindarráez, Quixote não nega e responde significativamente: “Eu sei quem sou”.
 
O episódio da penitência de Serra Morena [Capítulo XXVI, primeira parte], à imitação de Amadis de Gaula, também é eloquente. Dom Quixote envia Sancho de volta à aldeia com uma carta para Dulcinéia. Ele fica sozinho e se retira para fazer penitência no alto de um rochedo, como Amadis fez no desolado Peña Pobre, transfigurado em Beltenebrós. “E ali voltou a pensar no que já havia pensado outras muitas vezes antes, sem nunca ter resolvido o impasse: qual seria melhor e mais proveitoso, imitar Roland nas loucuras desaforadas que praticou, ou Amadis nas melancólicas”, começa o capítulo. Dom Quixote não apenas decide conscientemente imitar um cavaleiro, mas também decide qual deles é o melhor para imitar após um processo mental lógico-racional. Ele compara, mede, qualifica e finalmente decide pelo Amadis.
 
Mais tarde, em outro episódio importante, a novela de Cervantes nos conta que seu herói inventou sua aventura na cova de Montesinos, um lendário cavaleiro comum nos romances medievais castelhanos. Dom Quixote fica curioso para conhecer a famosa cova, localizada perto das lagoas de Ruidera, em La Mancha, e decide descer às suas profundezas com a ajuda de uma corda. Sancho o espera acima. Ao subir, o cavaleiro conta como conheceu o próprio Montesinos e como o levou ao seu palácio para conhecer seu primo Durandarte. No jogo de espelhos entre ficção e realidade, Cide Hamete (o muçulmano — sinônimo de mentiroso na época — primeiro autor da história, segundo a grande broma urdida por Cervantes) duvida da veracidade do episódio na cova. Mas ele imediatamente acrescenta: “Na época de seu fim e morte, dizem que se retratou e disse que a havia inventado, porque lhe parecia apropriado e se encaixava bem com as aventuras que havia lido em suas histórias”. Dom Quixote não apenas inventa, mas nos dize o que faz isso por conveniência. Se inventou uma vez, por que descartar a possibilidade de que não tenha inventado outras aventuras porque se encaixavam na sua personagem, na nova pessoa que ele queria ser e se tornar?
 
O diálogo com o cônego, no final da primeira parte, é outro episódio decisivo para entender o sentido último do livro e as verdadeiras intenções de Cervantes. Talvez não seja exagero dizer que a chave de Dom Quixote está nestas páginas. O cavaleiro foi preso em uma carroça de bois após uma artimanha do padre e do barbeiro e, derrotado, regressa para a sua aldeia. Nisso encontram o cônego. Os dois têm um extraordinário diálogo sobre a natureza e o valor da ficção. O cônego sustenta que as ficções são mentiras perigosas que levam à ruína do homem trabalhador e honesto e das pessoas comuns ignorantes. É um entretenimento vulgar e inútil que é prejudicial não apenas aos indivíduos, mas também à sociedade. “Inventores de novas seitas e de um novo modo de vida”, assim designa significativamente os livros de cavalaria. Recomenda que Dom Quixote leia melhor as escrituras e as biografias dos grandes homens da história.
 
Dom Quixote se exalta, revolta-se e rebela-se ante as palavras do cônego. Como podem os livros de cavalaria — as ficções — ser mentiras se todos, jovens e velhos, ricos e pobres, educados e ignorantes, os leem com afeição? Não é verdadeiro o que é tomado como verdade pela maioria? Podem ser falsas e enganosas a maravilha, a plenitude, a felicidade que alguém sente ao lê-los? “Leia esses livros”, responde Dom Quixote, “e verá como eles o banem qualquer melancolia que tiver, e melhoram a condição, se estiver má. De mim posso dizer que, depois de cavaleiro andante, sou valente, moderado, liberal, bem-educado, generoso, cortês, ousado, gentil, paciente e sofredor de trabalhos, prisões e encantos.” Dom Quixote tem plena consciência do que fez e do porquê fez.
 
Um pouco mais tarde, num diálogo com o padre, [Capítulo I, segunda parte] Dom Quixote mostra uma inconformidade radical com as mudanças da época que vive quando velho, com a vida tal como é nos seus últimos anos. Reflete amargamente de fora, dividindo-se novamente, criticamente. Ele, diz, só quer mostrar aos homens que a vida de um cavaleiro andante é a melhor do mundo. O mundo está errado porque agora “triunfa a preguiça sobre a diligência, a ociosidade sobre o trabalho, o vício sobre a virtude, a arrogância sobre a bravura e a teoria sobre a prática das armas”. Dom Quixote não gosta desta vida; ele quer outra.
 
Ao longo da segunda parte, quando ele já é um cavaleiro famoso porque suas aventuras da primeira parte foram publicadas e lidas em toda a Espanha, também são os diferentes personagens que ele encontra ao longo do caminho que inventam coisas para Dom Quixote, seja para entretenimento, seja para engar ou e zombar dele. O cavaleiro às vezes aceita essas invenções porque elas lhe convêm e se encaixam bem em sua nova vida, às vezes duvida e outras vezes as rejeita completamente, como quando Sancho tenta fazê-lo acreditar que uma aldeã de “cara redonda e cara chata” de Toboso é sua senhora Dulcinéia. Sem dúvida, pensa Dom Quixote, alguns encantadores transformaram sua amada na pequena e feia aldeã. Ele é um ser sempre atento e disposto a cumprir o papel que se propôs a desempenhar.
 
Perto do final do livro, um derrotado Quixote renova seus impulsos emulativos, planejando se tornar um pastor. Novamente, a imitação é consciente. E quando se convence de que nunca mais poderá ser Dom Quixote, nem representar uma nova vida que o distancie de quem ele é, cai em profunda tristeza e melancolia que o levam à morte. Nessas últimas páginas, o novamente fidalgo renuncia aos livros de cavalaria, adotando os argumentos do cônego. Sua diatribe parece forçada e artificial. Ele então renega para em seguida poder chamar o padre, fazer um testamento e morrer de forma católica. Não é acaso.
 
Cervantes jamais poderá confirmar ou desmentir qualquer hipótese sobre a natureza do seu Dom Quixote. Estará sempre aberto à interpretação, o que é, sem dúvida, uma das principais razões do enigma do livro e da sua vigência literária.
 
Mas, em última análise, e talvez este seja o motivo mais poderoso para apoiar a hipótese aqui apresentada, o fato de Dom Quixote não ser verdadeiramente louco é o que dá pleno sentido ao livro de Cervantes. Seu herói é acima de tudo um canto à liberdade e um grande elogio e homenagem à ficção. Sem uma não há outra, sem a outra não existe uma, parece-nos dizer Cervantes. A ficção, quer nos dizer, é uma parte da existência tão importante ou mais importante que a vida real.
 
Dom Quixote pode, de fato, ser visto como uma sucessão de histórias, a maioria das quais tem a liberdade como tema central. A pastora Marcela, os amantes Cardênio e Lucinda, o cativo e Zoraida, Dom Luís e Dona Clara, Quitéria e Basílio — todos querem exercer plenamente sua liberdade. Dom Quixote quer ser livre quando decide começar uma nova vida. Todas as personagens do livro, exceto o clero e os parentes de Quixote, elogiam a ficção sempre que têm oportunidade. O estalajadeiro diz que não há melhor leitura no mundo do que a dos livros de cavalaria e que os dois ou três que tem “realmente me deram vida, não só a mim, mas a muitos outros”. [Capítulo XXXII, primeira parte]. O nobre Diego de Miranda acumulou uma extensa biblioteca, e gosta mais de ler os profanos que os devotos, especialmente aqueles que “se deleitam com a linguagem e admiram e assombram com a invenção” [Capítulo XVI, segunda parte]. Não é difícil ver Cervantes por trás de todos eles.
 
A ficção, diz Cervantes, alimenta a realidade tanto quanto a realidade alimenta a ficção. E nos liberta. Graças aos livros, o infeliz cavaleiro se torna, por um tempo, quem ele realmente quer ser, e durante esse tempo, podemos imaginá-lo feliz. 


* Este texto é a tradução livre de “Interpretando a Don Quijote”, publicado aqui, em Letras Libres

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