Exposição Quasi-Corpos

Por Eduardo Galeno


Lygia Clark. Máscara abismo, 1967. Portal LC (Reprodução)


Gullar referenciou o movimento contemporâneo nos rastos da conceituação de quasi-corpo. A pergunta é: o que vem a ser?
 
Fenomenologicamente, isso se situa na representação da representação, naquilo que é formado no seio da sua aparição concreta como fuga. A obra aparece, no mínimo, “despedaçada”. O hiato entre arte e vida fica cada vez menor e daí parte para ser hierarquizado intencionalmente no solo da vertigem obscura, alinhado de modo negativo um ao lado do outro.
 
Pensemos no brilhante ensaio de Rosalind Krauss, “A escultura no campo ampliado” (1979), e ressaltemos o ponto central do que seria um quasi-corpo na primeira frase do texto: “o único sinal que indica a presença da obra é uma suave colina, uma inchação na terra em direção ao centro do terreno”. A sinalização de Perimeters/ Pavillions/ Decoys (Mary Miss, 1978) vaza blocos de similitude, mas eles são serializados na amplidão semiótica (tanto horizontal como vertical). O que é bastante preciso para confirmar a tese de que Lygia Clark, se movendo adiante da brutalidade geométrica, ousou reparar a via parmenidiana e fincar a de Heráclito a partir das composições pós-1960.
 
O certame é a reprodução total do estilo num bios. Percebam que a partida nuclear da nova escultura que emergiu no tempo de Clark residia em mover ao máximo o cotidiano e a interação do espectador, tentando reconciliar o cérebro de um sujeito à práxis, a experiência à atividade. Alguns meios para o esclarecimento dessa moldura estão na lei de equivalência e troca que podem ser produzidas no pensamento de uma artista como Lygia. Em “Breviário sobre o corpo”, ela fala:
 
“As minhas mãos têm milhões de anos. São como crateras de terra gretada pelo passar de estações milenares, com rios correndo dentro, quase na superfície, veias onde corre o sangue projetado pelo coração que alimenta todo o meu corpo de oxigênio, veias entumecidas, fibrosas, em relevo, elástico e macias como o próprio balão cheio de ar.”
 
Estilhaçada pelos fragmentos de bala que o dispositivo da arte tem, a corporalidade de Lygia se une à da criação. O órgão mão, sintagma diversas vezes citado durante o texto, cede espaço para o combate de invenção que espia no soar da acefabilidade, do contato puro (ela dizia “ave sem asas”). O corpo é um corpo a fazer, um quase mas não ainda de todo. Numa das páginas que escreve em seu diário (1964), sonha com um homem, fazendo amor, que entra com o pênis e o deixa lá. Incorporação.
 
As grandes transformações ressoam.
 
“O ouvido que se abre para a palavra que não se formula mas que é invadido pela língua que o modela no seu interior, a sonoridade da concha onde todos os sons irreconhecíveis tomam corpo e se Materializam através dos nervos, numa vibração magnética que sobe à flor da pele como trepadeira, procurando no ‘o outro’ o suporte do seu existir.” (“Breviário sobre o corpo”)
 
Esse tilintar de coisas — braços e pedras, animais marinhos e filosofias sensualistas e tal — ela pôde dar nome próprio: Matéria. Tudo assim se resume a seco e molhado, tudo se funde num só gesto apontado para baixo.
 
“A antiarte é, pois, uma nova etapa (é o que Mário Pedrosa sabiamente formulou como arte pós-moderna; é o otimismo, é a criação de uma nova vitalidade na experiência humana criativa; o seu principal objetivo é o de dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora”, afirmava Oiticica em julho de 1966 nas anotações sobre o parangolé. Devido ao grau de parentesco formal entre os dois, sugiro colocar as suas palavras para combinar a análise geral sobre Clark. Pedrosa, inclusive, aponta, num comentário que fez em 1965, que a partir do momento em que o público pudesse tocar na obra, sentir tatilmente a sua presença, ali mesmo ela passaria a ser não-arte, puramente estético-vital. Em outros termos, foi um acabamento da razão kantiana de gosto, juízo elencado singular e livre que possibilitou, dentre outras coisas, a fruição do objeto na sua totalidade (a vir transcendental).


 
Lygia Clarck Quasi-Objetos


A estruturação do self, que pretendeu no finzinho da sua existência, converge exatamente em torno da ideia de símbolo de Jung (a casa-corpo da mandala, por exemplo). Em Septem sermones ad mortuos, quase na década de 1920, o psicólogo retrata o vazio e a plenitude do pleroma na autorrealização do Eu. Nessa perspectiva, os complexos psíquicos estão por inteiro na demanda da criação, afetando os aspectos do inconsciente relatados ao ditame proposicional da matéria artesanal. A fusão requer um certo reconhecimento, a tão buscada fusão entre corpo e obra na experiência. Precisando ir ao fundo do ser, sua astúcia liquidaria a disparidade de dentro e fora, longe e perto, passado e futuro, enfim, eu e outro. Daí a extrema facilidade com que ela responde as perguntas feitas por algumas relações nunca antes penetradas. Para Lygia, não há estamento: as partes do mundo estão sempre prontas para transitarem.
 
“Dar-se às mãos quando se dança é oferecer-se a si e ao outro o prazer da solidão quebrada por um memento na comunicação de dois corpos que, em princípio deveriam se completar sempre, o cheio e o vazio, janela aberta, convite ao debruçar-se.” (“Breviário sobre o corpo”)
 
A faculdade que rege o fim da obra está no tecido da imaginação antes de ser linguagem. Na realidade, a quebra da linguagem, a linguagem como entendemos, é sentida e planejada dentro do ambiente fervoroso de criação. Criar significa dar valor ao ânimo inato do corpo: a expulsão da autonomia da escultura, o derramamento do grande jardim no quarto arquitetônico, o ato em ato, o fluxo do mar, o vento nos poros do rosto.
 
Me impressiona o jeito que Lygia transforma os quantum e os reparte em qualidades orgânicas. Ao pé da letra, as artes plásticas não poderiam ser feitas assim até meados do século passado. O salto que ela conseguiu dar inaugura novas fontes de retorno da função social, além de erguer uma resposta mais ponderada sobre os usos do consumo em relação a seus antecessores. Frente a contradição, Peter Bürger compreendeu a bipolaridade da arte pós-romântica que cabe perfeitamente na nossa analisada: se o sensível está em a, o entendimento da forma está em b. A ética sai aí. O paralelismo acompanha a distensão do que é fixado em proposital desinteresse: o pulo do gato mora, ao elucidar as posições dos últimos 150 anos, na deliberação funcional que a Gestalt toma conta. Como dizia, resumidamente, Marcuse, “imagens de uma insatisfação”. Nesse sentido, as modernidades tardias não conseguem se desvencilhar do subterfúgio onto-teo-teleológico das narrações. Quando falamos de arte, ou quando podemos falar de arte pós-vanguardista, estamos falando de comunidade. Basta vermos a extrema facilidade que ela, Lygia,  atravessou as revoluções político-libidinais daqueles anos para tirarmos essas conclusões.
 
Vejo a exploração da anarquitetura de Lygia em perfeito estado de abertura. Ela cerra a passagem para infectá-la com um motivo labiríntico, acontecimental (igual àquela performance da fita de Möbius que cada participante não cortava da mesma maneira).
 
“Cascos de cavalo cujo pé é feito de um só dedo, esse revestido por enorme unha, pés de galinha, mão espalmada, aberta horizontal e chata, o gesto no ‘o ciscar’, o espasmo no ‘o agarrar-se’”, em “Breviário sobre o corpo”.
 

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