Do mito à literatura, uma nova tradução de Meletínski

Por Rafael Bonavina

Eleazar M. Meletínski, meados de 1950. Foto: Lidia Iakovlevna Guinzburg.

 
Recentemente foi lançada uma nova tradução da obra do importante pesquisador russo Eleazar M. Meletínski (1918–2005) que complementa o seu material já publicado no Brasil. Meletínski foi um dos mais importantes estudiosos da poética histórica e da relação entre literatura e mito, seus livros continuam editados na Rússia e no mundo até hoje e são amplamente lidos pelo público interessado. O reconhecimento da sua contribuição para o campo fica evidente pela honrosa homenagem da Universidade Estatal Russa de Humanidades (RGGU), que deu seu nome ao Instituto de Estudos Superiores de Humanidades (IVGI).
 
No Brasil, a obra de Meletínski já conta com uma importante tradução para o nosso idioma do livro Os arquétipos literários (originalmente publicado em 1994), ainda usado como bibliografia fundamental para muitas disciplinas e cursos universitários. Apesar de ser relativamente curto, o livro consegue criar um panorama bastante amplo da relação entre o mito e a literatura, encontrando as raízes mitológicas de alguns personagens típicos; por exemplo, os pícaros e malandros, cujas raízes estão, segundo Meletínski, no trapaceiro mítico (trickster). Além de Os arquétipos, alguns de seus artigos também já foram traduzidos para o português e se encontram publicados em revistas acadêmicas, como a Revista RUS, em especial os que se dedicam especificamente à transformação do mito em literatura, como o par de ensaios “Conto e mito” e “Mito e conto”.

Um dos mais significativos, e talvez o mais importante, livro escrito por Meletínski já foi trazido para o Brasil em 1987 pela editora Forense Universitária, com tradução de Paulo Bezerra, sob o título A poética do mito. Nesse longo e detalhado estudo, o pesquisador soviético busca esmiuçar algumas permanências das mitologias antigas na literatura, incluindo aí tanto a popular quanto a erudita. Para isso, o seu autor começa fazendo uma revisão ampla e profunda das várias abordagens acadêmicas do mito, o que chamaríamos hoje de estudo de estado da arte. Seu olhar experiente ora faz críticas pontuais, agudas e pertinentes, ora as elogia sem exagerar suas qualidades. Depois disso, nas duas partes seguintes do livro, o estudioso soviético focaliza sua atenção na literatura: primeiro o caminho de sucessivo afastamento do mito que a literatura toma até o século XX, processo do qual falaremos um pouco adiante; e, na seguinte, aborda as razões e consequências da transformação operada pelo Modernismo no percurso da arte até ali.
 
Embora Meletínski utilize uma linguagem bastante didática para um tema tão complexo, e a tradução mantenha esse traço, é possível que seja imediatamente evidente o que nos leva de um personagem como o Jabuti das narrativas indígenas até Pedro Malasartes ou Leonardo Pataca, do romance Memórias de um sargento de milícias. De fato, não seria totalmente correto afirmar a existência de uma linha sucessória entre essas figuras; por outro lado, não podemos deixar de notar que há algo em comum entre todos eles, um traço fundamental que os perpassa e, em grande medida, define.
 
Voltando a Os arquétipos literários, seu mérito é justamente o de tentar explicar essa relação complexa entre os personagens, e sua conclusão, em linhas gerais, é que os personagens podem não ter uma relação direta, frutos de sociedades muito diferentes entre si, mas são tipos que representam manifestações de um mesmo arquétipo, que é, por sua vez, a abstração de um grande modelo reproduzido em escala menor nessas figuras. Para isso, além dos estudos literários e folclóricos, o pesquisador também recorre à psicanálise, principalmente a baseada em Jung, autor cuja obra Meletínski conhece em profundidade.
 
Ao mesmo tempo em que Os arquétipos nos coloca diante de um sistema de pensamento que explica, em grande medida, as semelhanças entre esses personagens, a atemporalidade dessa perspectiva não nos permite compreender as diferenças entre eles por completo. Um dos traços mais claros que os distingue talvez seja a magia, isso é, no grau de poder de que os personagens dispõem. Em suma, os tricksters míticos são capazes de lançar mágicas, transformarem-se em animais e objetos, encantar seus rivais etc. Já as versões mais modernas do mesmo arquétipo, como Pedro Malasartes, não possuem qualquer tipo de poder mágico, apenas sua astúcia e, às vezes, alguma sorte.
 
Seria possível atribuir essa mudança à crescente influência do realismo na literatura e, em parte, a afirmação estaria correta, uma vez que Malasartes ou Cancão de Fogo são pintados com uma paleta mais realista, por assim dizer, do que suas contrapartidas mitológicas. Por essa lente, de fato, conforme nos aproximamos do realismo, a presença da magia na literatura se torna cada vez menos central. No entanto, não é raro encontrar histórias de astutos que se defrontam com todo tipo de demônio e seres sobrenaturais que, por sua vez, possuem poderes mágicos; pelo contrário, o procedimento é bastante comum e visa demonstrar que o protagonista é tão astuto que consegue enganar o Pai da Mentira, um ser que é astuto por definição. A presença desse motivo na literatura oral, é o que o sistema Aarne-Thompson conta com a categoria do Diabo Logrado na sua classificação de contos populares.




Ora, se na mesma história temos o elemento fantástico sob a forma de um ser sobrenatural — digamos um demônio — então os contos não poderiam ser encaixados perfeitamente na categoria do Realismo, movimento este, diga-se de passagem, mais ligado à arte erudita que à popular. Temos, então, uma tensão que não se resolve por meio da historiografia tradicional da literatura e que poderia ser sintetizada na seguinte pergunta: afinal, por que as manifestações mais antigas dos arquétipos tendem a ser mais poderosas que as modernas? E Meletínski nos apresenta sua hipótese sob a forma do livro Do mito à literatura (2000), escrito seis anos depois de Os arquétipos literários.
 
Ao lidar com essa questão, Meletínski começa seu estudo pelo debate da concepção de mito como a cultura em sua forma integral, condensando tudo o que hoje vemos fragmentado em diversos campos do saber (cosmogonia, etiologia, moralidade, ciência etc.). A partir disso, o crítico soviético nota que quanto mais unidos estão esses vários aspectos da cultura, quanto mais integralizada ela é, maior potência possuem as manifestações dos arquétipos; e o contrário também se mostra verdadeiro: quanto mais fragmentada a cultura, menos potentes são os personagens produzidos. Dessa forma, Meletínski apreende um processo de transformação da cultura a que ele chama de desmitologização, e a partir dele cria seu interessante sistema crítico, que vincula a transformação das narrativas à descentralização do mito nas sociedades que as produzem.
 
Se, por um lado, esse fenômeno de fato já aparece no centro das discussões de A poética do mito; por outro, Meletínski lança Do mito à literatura passados mais de trinta anos desde o primeiro, tempo em que o autor deu continuidade aos seus estudos, produzindo dezenas de ensaios sobre o assunto. Por isso, podemos considerar Do mito à literatura como uma síntese de toda uma vida dedicada à poética histórica, à transformação do mito em literatura. E, nesse sentido, justifica-se a tradução desse estudo, que não rivaliza com seu irmão mais velho, mas complementa e atualiza o material já publicado.
 
Nesse sentido, Do mito à literatura permite que o leitor acompanhe uma forma mais concisa e desenvolvida da desmitologização e sua aplicação à literatura, partindo das narrativas mais antigas até manifestações bastante recentes, como alguns romances do século XX. A discussão feita por Meletínski esmiuça as diversas etapas, gêneros literários e pontos de vista desse processo, sem deixar de levar em conta a vertente popular e a erudita. Ao longo do seu livro, subdividido em capítulos dedicados às principais etapas desse processo, o pesquisador indica as particularidades de cada fase e as articula com os impactos culturais causados por mudanças infraestruturais comuns a diversas sociedades ou mesmo eventos históricos de importância global.
 
Nesta síntese didática, a perspectiva apresentada pode parecer linear, e portanto demasiado simplista, mas não é esse o caso. A perspectiva de Meletínski evita cuidadosamente essa tentadora armadilha, em que muitos críticos importantes se veem presos, de se marcar um ponto final a que toda a cultura deverá chegar em algum momento, como o realismo crítico do século XIX ou uma vanguarda contemporânea. Ao invés disso, o crítico apresenta ao leitor uma hipótese que busca explicar o processo que, apesar de ser compreensível a partir de um conceito central, segue um caminho incerto, tortuoso, cheio de guinadas e reviravoltas. Nesse sentido, a discussão acerca das Grandes Guerras é bastante emblemática, pois demonstra que, embora a arte viesse em uma constante desmitologização de séculos, o trauma das duas Guerras Mundiais provoca uma crise profunda no positivismo, principalmente na ideia de um futuro necessariamente melhor para a humanidade que seria atingido por meio dos avanços da tecnologia. Essa fissura dá origem a uma inversão no processo encontrado por Meletínski até ali, e, ao invés de se desmitologizar, a arte do século XX vê nascer uma fase de remitologização, de retomada das suas raízes míticas em busca de uma saída para essa crise. Não é à toa que esse período vê nascer grandes romances como Ulysses, de James Joyce, ou A metamorfose, de Franz Kafka, nos quais Meletínski vê profunda influência desse movimento de reencontro com o mito.
 
Considerando que o estudioso soviético dedicou a maior parte do seu livro à estruturação de um sólido sistema e não à discussão de casos particulares, temos que Do mito à literatura serve como um excelente ponto de partida para compor a base de novas pesquisas, em especial aquelas que estudam as particularidades de uma obra, de uma cultura ou momento histórico. Além disso, os pesquisadores brasileiros encontram em Do mito à literatura um campo particularmente fértil para colher seus próprios frutos, pois a nossa literatura não teve penetração suficiente na Rússia para que fosse satisfatoriamente levada em consideração por Meletínski. Por exemplo, o Macunaíma de Mário de Andrade poderia ser lido na chave de uma primeira fase de remitologização em âmbito brasileiro, mas isso não é discutido pelo crítico, o que também se explica pela sua tradução tardia para o russo, ocorrida apenas na década passada.
 
A edição da Ateliê Cultural, lançada em 2024, foi traduzida diretamente do russo por Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada de literatura russa e teoria literária da Universidade de São Paulo. A experiência da tradutora com o pensamento meletinskiano se nota pela sua história com as edições da obra, que remonta à primeira edição de Os arquétipos literários em 1998, e essa familiaridade transparece em sua tradução fluida e precisa.


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Do mito à literatura
E. M. Meletínski
Aurora Fornoni Bernardini (Trad.)
Ateliê Editorial, 2024
184p.

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