Da tela ao texto: Pieter Bruegel e Louis-Ferdinand Céline

Por Amanda Fievet Marques


Pieter Bruegel. O triunfo da morte (detalhe).


 
O mundo às avessas. Teatro de um mundo apocalíptico, caótico, arruinado pela guerra e dominado pela loucura e pela morte. Uma multidão de vivos se embrenha num caixão, enquanto a morte — um esqueleto com uma foice —, comanda sobre um cavalo esquálido a transformação dos vivos num exército de mortos, esqueletos com lanças por detrás de esquifes.
 
Essas linhas traçam uma breve descrição de uma cena do quadro O triunfo da morte (1562/1563), do pintor holandês do século XVI, Pieter Bruegel, mas poderiam muito bem evocar a obra literária do escritor francês do século XX, Louis-Ferdinand Céline. Resguardadas as diferenças entre os meios de expressão e os contextos históricos, há também nos romances de Céline a onipresença da guerra, cenários infernais, assim como o domínio da morte e da loucura.
 
Céline declara, inclusive, numa carta a Henri Mahé do dia 10 de janeiro de 1933, sua admiração pela pintura de Bruegel:  “Descobri em Viena o Homem do meu coração, Peter Brughel [sic]” (Céline, 2009, p. 346).1 A menção de Céline a Bruegel parece menos fortuita diante da recente publicação de sua lenda medieval A vontade do Rei Krogold (1939/40) pela Gallimard, em abril de 2023. Junto de Guerra (1930/31 ou 1934) publicado em maio de 2022, e Londres (1934) publicado em outubro de 2022, a lenda do Rei Krogold foi um dos manuscritos de Céline recém-descobertos em 2021. O leitor de Céline tinha acesso, até então, apenas a uma parte dessa lenda medieval citada em Morte a crédito (1936).
 
A primeira intersecção entre Bruegel e Céline se dá do ponto de vista do humor. O crítico Walter Gibson propõe que havia duas atitudes durante o Renascimento, o alinhamento a Heráclito, o filósofo que chorava a miséria do mundo, ou a Demócrito, para quem o mundo era objeto de riso. Ao analisar o quadro Provérbios neerlandeses (1559), Gibson declara que Bruegel se revela um seguidor de Demócrito (cf. Gibson, 1977, p. 79). Ao final de sua análise, no entanto, após percorrer a obra de Bruegel, Gibson sugere que há uma passagem de Demócrito a Heráclito: “As outras [pinturas de Bruegel] são mais sérias, amargas, trágicas, inclusive; o espírito do risonho Demócrito deu lugar ao de Heráclito, o filósofo lamuriento” (Gibson, 1977, p. 192) 2.
 
A compreensão das mazelas do mundo de um ponto de vista pessimista aliado ao humor também se encontra em Céline. A diferença, portanto, estaria no fato de que Céline nunca abandonou o humor, mesmo nos momentos mais trágicos. Mesmo quando de sua prisão na Dinamarca, que ele transpõe no romance Feeria para uma outra vez I (1952), trancafiado numa cela, ele mantém a capacidade de rir dos outros e, fundamentalmente, de si mesmo. A distinção que pode ser feita no interior de sua obra não estaria tanto na passagem de Demócrito a Herácito, mas nas formas pelas quais o humor se manifesta: ora mais satírico (Viagem ao fim da noite), ora grotesco (Morte a crédito), ora oriundo da alegria (Guinhol’s band), ora cínico (Feeria para uma outra vez I), e por aí vai. Outro ponto em comum com Bruegel é o recurso ao grotesco, que se manifesta, por exemplo, nos Sete vícios capitais por meio da desproporcionalidade e do aumento da escala dos objetos representados (cf., ibid., p. 49).
 
Quanto à representação da morte, Gibson propõe que o quadro O triunfo da morte, junto dos Provérbios neerlandeses (1559), A batalha do Carnaval e da Quaresma (1559), Jogos de crianças (1560), é uma expressão do conceito do Theatrum Mundi, isto é, uma construção do mundo como teatro aos olhos do espectador, uma contemplação do homem de um ponto de vista elevado: “A interpretação mais memorável de Bruegel do Theatrum Mundi, contudo, apareceria em O triunfo da morte, que também representa a culminância da influência de Bosch em sua arte” (ibid., p. 89)3. A diferença com relação aos outros quadros é que, aqui, Bruegel não representa as loucuras da humanidade, mas “o próprio fim do mundo numa forma nova e aterrorizante” (ibid., p. 109)4. Para Gibson, Bruegel não apresenta a morte como uma punição para os pecados e as loucuras, mas como uma força equalizadora, como “o destino de todos os homens, independentemente de piedade, posição social ou riqueza” (ibid., p. 116)5. Por meio dessa imagem potente da morte universal e da destruição, Gibson acredita que Bruegel teria não apenas superado Bosch, seu mestre, mas seria igualado apenas séculos depois por Goya (Desastres da guerra, 1863) e Picasso (Guernica, 1937).
 
No canto inferior esquerdo de O triunfo da morte, um esqueleto amarelecido segura uma ampulheta diante de um rei moribundo. Na primeira seção da lenda A vontade do Rei Krogold de Céline, o príncipe Gwendor, após ser fatalmente ferido pelo Rei Krogold, trava um diálogo com a Morte antes do seu derradeiro instante. A escrita de Céline lança-se, assim, ao problema da “visualização do inconcebível, o que a priori repudia qualquer forma de visualização” (Pawlak, 2018 p. 148)6, isto é, da “impossibilidade de representar o ato de morrer” (ibid., p. 149)7. Esse problema que em O triunfo da morte Bruegel enfrenta por meio da “dissociação entre o ver e o perceber, o que lembra o espectador da incomensurabilidade da morte, por um lado, e estimula a imaginação, por outro” (ibid., p. 150)8, Céline o faz ao acentuar a abstração, como se demonstrará adiante.
 
O diálogo com a Morte em A vontade do Rei Krogold (1939/40), já constava em Morte a crédito (1936). A imagem do traspasse concebida por Gwendor, que em 1936 vê sua estrela se apagar entre as mãos da Morte é essa: “Minha estrela se arrefecia entre tuas mãos gélidas…” (Céline, 2023, p. 210)9. Já em 1939/40, a frase retrabalhada sobre as aliterações com os erres evoca mais vividamente o ceifamento: “Minha estrela acabava de se arrefecer entre tuas mãos de sombra e de medo…” (ibid., p. 33)10. Percebe-se também a alteração do tempo verbal, do imperfeito para o chamado passado recente em francês, o que transforma a percepção da cena, de um processo em curso — como se a estrela estivesse gradativamente se apagando —, a um apagamento recém-concluído, a uma ruptura definitiva. Além disso e, sobretudo, Céline modifica a descrição das mãos. De gélidas, isto é, evocando uma sensação física, tátil, a “mãos de sombra e de medo”, que transformam o detalhe físico em algo abstrato e metafórico.
 
A “sombra” e o “medo” representam estados psicológicos e ontológicos que envolvem a morte como ausência, vazio, ou aquilo que desafia a própria visibilidade. Essa transformação reflete o processo dinâmico da figura mortis: o ato de dar forma à morte como algo simultaneamente presente e ausente, visível e intangível. A morte, enquanto processo figurado aqui por Céline, torna-se paradoxal: um ponto no tempo e no espaço onde o tangível — as mãos enquanto elemento físico —, e o intangível — a sombra e o medo — coexistem. Como sugere Didi-Huberman, a figura mortis refere-se à visibilidade de algo que, paradoxalmente, não pode ser completamente figurado. A morte, para Céline, na versão de 1936, ao ser representada por “mãos frias”, é ainda parcialmente capturável no domínio do sensível. Quando se transforma, em 1939/40, em “mãos de sombra e de medo”, ela escapa ao domínio do visível, abrindo-se para o incomensurável e ao abstrato. Essa transformação reflete a tensão entre o que a morte reifica — o corpo morto, as mãos físicas —, e o que ela dissolve — a identidade, a vida, a luz da “estrela”. O estilo, portanto, modifica-se e varia rumo à desfiguração (cf., Didi-Huberman, 1995, p. 42). Segundo Pawlak, o mesmo ocorre com Bruegel, já que embora O triunfo da morte represente tal epônimo triunfo, “ele rejeita uma atribuição iconográfica explícita” (Pawlak, 2018, p. 138)11.
 
Do ponto de vista da linguagem pictórica, Giulio Argan propõe que a pintura de Bruegel é uma resposta à pintura flamenga da época, então “dedicada à imitação do particular e ao engano agradável” (Argan, 1999, p. 460). Contrariamente, Bruegel “recorre a um sólido ‘vulgar’ pictórico, igualmente repudia a imitação, a reverência tradicional para com a coisa criada” (idem). Céline também se posiciona em oposição à tradição literária de sua época, hipostasiada na elegância de Proust. Ele propõe em Rabelais perdeu a oportunidade (1959), que a língua francesa é vulgar desde o tratado de Verdun, e que Rabelais havia tentado fazer com isso uma língua robusta, mas foi superado por Amyot, pela língua pretensamente natural da tradução, pela língua pudica dos jornais e dos vestibulares, pela língua raquítica dos romances modernos. Na tentativa de construir uma língua robusta, Céline recorre a diversas instâncias do francês: o coloquial, o popular, o jargão, o arcaísmo, o barbarismo etc. A expressão de diferentes vozes ou discursos fora denominada, assim, por Henri Godard, como o francês plurivocal de Céline (cf., Godard, 1985, p. 26). A composição de Bruegel também é ampla e ritmada, contando com os provérbios e ditados populares que ele recolhe da boca do povo. Rose Marie e Rainer Hagen identificaram em um único quadro, Provérbios neerlandeses, cento e dezoito provérbios representados (cf. Marie e Hagen, 1994, pp. 36-37). Giulio Argan também ressalta a polifonia de Bruegel como “a aparição imprevista e surpreendente de uma nota de cor tão diferente do habitual, tão inatural e ao mesmo tempo tão viva” (Argan, 1999, p. 467).
 
A última intersecção entre Bruegel e Céline a apontar, aqui, reside no antiformalismo, isto é, na contraposição da forma não à natureza, mas à realidade enquanto caos, absurdo e anormalidade. Reside também, enfim, na tentativa de criar uma experiência estética, seja ela pictórica ou literária, que se ofereça sem a mediação da estrutura intelectiva. Para alguns críticos, as paisagens de Bruegel, por exemplo, seriam transcrições diretas da natureza (cf., Gibson, 1977, p. 34). Enquanto para Céline, o que importava, acima de tudo, era fazer passar a emoção da língua falada ao francês escrito.
 
Notas
1 “J’ai découvert à Vienne l’Homme de mon coeur, Peter Brughel [sic].” Todas as traduções propostas no corpo do texto, em português, são de próprio punho.
 
2 “The others [Bruegel’s paintings] are more serious, bitter, even tragic; the spirit of the laughing Democritus has given way to that of Heraclitus, the weeping philosopher.”
 
3 “Bruegel’s most memorable interpretation of the Theatrum Mundi, however, would appear in the Triumph of Death, which also represents the culmination of Bosch’s influence of his art.”
 
4 “the end of the world itself in a new and terrifying form.”
 
5 “the destiny of all men, regardless of piety, social rank or wealth.”
 
6 “visualising the inconceivable, which a priori repudiates any form of visualisation.”
 
7 “impossibility of representing the act of dying
 
8 “disassociation of seeing and perceiving, which reminds the viewer of the incommensurability of death on the one hand and stimulates his imagination on the other.”
 
9 “Mon étoile s’éteignait entre tes mains glacées…”
 
10 “Mon étoile venait de s’éteindre entre tes mains d’ombre et de peur…”
 
11 “it rejects an explicit iconographical attribution”
 
Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Introdução, tradução e notas de Lorenzo Mammi. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CÉLINE, Louis-Ferdinand. La Volonté du Roi Krogold suivi de la Légende du Roi René. Paris: Gallimard, 2023.
CÉLINE, Louis-Ferdinand. Lettres. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Fra Angelico – Dissemblance & Figuration. Translated by Jane Marie Todd. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
GIBSON, Walter S. Bruegel. London: Thames and Hudson, 1977.
GODARD, Henri. Poétique de Céline. Paris: Gallimard, 1985.
MARIE, Rose; HAGEN, Rainer. Pieter Bruegel – Paysans, fous et démons. Traduit de l’allemand par Thérèse Chatelain-Südkamp. Cologne: Taschen, 1994.
PAWLAK, Anna. The Imaginarium of Death – Pieter Bruegel’s The Triumph of Death. In: KASCHER, Bertram; MÜLLER, Jürgen; BUSKIRK, Jessica (Orgs.). Pieter Bruegel the Elder and Religion. Boston: Brill, 2018. p. 134-158.
 

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