Cinco poemas de Robert Penn Warren

Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)


Robert Penn Warren. Foto: Joel Katz

 
 
(VII) CONTA-ME UMA HISTÓRIA
(Audubon: A Vision, 1969)
 
[A]
Há muito, no Kentucky, eu, um rapaz
Junto duma estrada de terra batida, ouvi, no crepúsculo,
O grito dos gansos selvagens rumando ao norte.
 
Não os conseguia ver, não havia lua no céu
E as estrelas eram escassas. Escutava-os.
 
Não sabia o que se estava a passar dentro do meu coração.
 
Era a época antes do sabugueiro florir,
E eles voavam para norte.
 
O som passava por mim rumo ao norte.
 
[B]
Conta-me uma história.
 
Neste século, e momento, de loucura,
Conta-me uma história.
 
Que seja uma narrativa de grandes distâncias, de luz estelar.
 
O nome da história será Tempo,
Mas não deverás pronunciar o seu nome.
 
Conta-me uma história de encantar.
 
 
UM FALCÃO À TARDINHA
(Can I See Arcturus From Where I Stand?, 1975)
 
De plano em plano de luz, as asas mergulhando
Nas geometrias e nas orquídeas que o ocaso compõe,
Vindo da negra angularidade da sombra dum cume, cavalgando
A derradeira avalanche tumultuosa de
Luz sobre pinheiros e o gutural desfiladeiro,
O falcão chega.
 
                        A sua asa
Ceifa mais um dia, um movimento
De afiada lâmina de metal, escutamos
A queda silenciosa das hastes do Tempo.
 
A cabeça de cada haste pesa com o ouro do nosso engano.
 
Olha! Olha! sobe os últimos raios de luz,
Que não conhece Tempo ou erro, e sob
Tal olho, implacável, o mundo, sem perdão, gira
Até ser sombra.
 
            Agora,
O último tordo aquieta-se, o último morcego
Desenha aguçados hieróglifos. A sua sabedoria
Também é ancestral, e imensa. A estrela
Firma-se sobre a montanha, como Platão.
 
Se não houver vento, poderemos ouvir, pensamos,
A terra girar no seu eixo, ou a história
Pingar na escuridão, como um cano furado na cave.
 
 
CORAÇÃO DO OUTONO
(Now and Then, Poems 1976-1978)
 
O vento descobre a falha a noroeste, o outono começa.
Hoje, debaixo de nuvens cinzentas e através dum vento
Cinza que agita a floresta, em imaculada formação gansos selvagens
Dirigem-se para um lugar de águas quentes; e o estoiro, a bala de chumbo.
 
Alguns encolhem-se em pleno ar, tombam. Outros vacilam, recuperam controlo,
E planam uma última vez até um distante cintilar de água. Nenhum deles
Sabe o que aconteceu. Hoje mesmo, observando
Como os Vês em sucessão apontam incansavelmente a lógica da estação,  
 
Será que conheço a minha história? Ao menos, eles sabem
Quando chega a hora do grande bater de asas. Andarilhos do céu,
Andarilhos das estrelas — erguem-se, e a expressão imperial,
Que grita por distância, freme no céu rodopiante. 
 
Isto, ao menos, sabem, e na sua natureza sabem
O caminho sem trilho, com toda a alegria
De destino preenchendo o seu próprio nome.
Conheci tempo e distância, mas não o porquê de estar aqui.
 
Caminho de alegria, caminho de insensatez, todos
O mesmo — e de pé fico, o rosto agora erguido em direcção ao céu,
Escutando a batida nas alturas, os braços esticados no
Dormente processo de transformação, e em breve as pernas tensas,
 
Os pés dobrados, no encalço do sonoro vácuo da passagem,
E o coração é tomado por um feroz impulso
De inefável expressão —
Rumo ao pôr-do-sol, a grande altitude.  
 
 
CAVALO MORTO NO CAMPO
(Rumor Verified, Poems 1979-1980)
 
Na última parcela de terreno, ao longe, semi-oculto
Nos arbustos de erva-espim, rubros de fruta, o puro-sangue
Jaz morto, a pata dianteira esquerda despedaçada abaixo do joelho,
A bala de 30 mm no coração. Na distância
Corvos empanturrados, irregulares farrapos subindo o vento. No dia
Após a morte fui visitá-lo para me despedir, e os olhos
Já não existiam — o beneficente
Trabalho dos corvos. Sem olhos,
O cavalo de dois anos poderia, claro, mais facilmente ver
Através do trilho de escuridão pura e eterna.
 
Uma semana depois não podia aproximar-me. Começara
O doce pivete. Aquele maldito buraco na lama,
Oculto por folhas quando galopávamos — encontrara-o.
Cuspi em cima dele. Como faria uma criança. No dia seguinte,
Os abutres. Quão belos nas alturas! — talhando
O padrão lento, concêntrico, descendente do vórtex, cintilante
De asa em asa. Da casa,
Agora de óculos postos, vejo
As disputas e os puxões, o agitar das cabeças vermelho-acácia.
 
Ao anoitecer observo os abutres, os corvos,
Levantar voo. Negros movem-se no fluir e na perfeição da natureza,
Bem alto no carmesim triste do poente. O perdão
É assunto que não se coaduna. É supérfluo. Eles são
Aquilo que são.
 
Quanto tempo até regressar e ver
Aquela intrincada peça de
Escultura moderna, branca como neve,
Assumindo em estase
Nova beleza! Então,
Um ano passado, verei
O verde entrelaçado da trepadeira, cada folha
Com o formato dum coração, suaves como veludo, iniciando
A sua bênção.
 
Julga ser Deus.
 
Consegues imaginar algum pedaço de terra onde tal possa ser contestado?
 
 
TRÊS TREVAS
(Altitudes and Extensions, 1980-1984)
 
III.
A enfermeira ainda aqui está. E depois
Já não. Tu
Estás aqui, mas não estou certo
Que sejas tu na súbita escuridão. Não importa.
Um incómodo maldito, mas trivial —
O cirurgião acabou de dizer o mesmo. Um ensaio geral,
Dizes a ti próprio, para
A coisa a valer. Mais tarde. Dez anos? Quinze?
Amanhã, apenas um teste. Às
5 da manhã estarão aqui. A tua mão estica-se na escuridão
Até ao botão da TV. É um western dos antigos.
O fogo das Winchesters estala, níveo, na noite-sonho.
Tem algo a ver com vício e virtude, e a vastidão
Do deserto ao luar. Um garanhão, branco e cintilante, desliza
Como mercúrio derramado, através
Da imensidão do luar. Caules
Negros de cactos, como resquícios de pesadelos esquecidos, surgem
Perto, quase ao toque da mão. A acção escoa-se na distância, mas
Tens a certeza que a virtude triunfará. Muito para além
Do mundo inteiro, as montanhas erguem-se. Os picos nevados
Flutuam no luar. Flutuam
Naquela inominável altitude de luz branca. Deus
Ama o mundo. Por aquilo que é.
 
 

* Versões a partir dos originais antologiados em New and Selected Poems, 1923-1985 (Random House, New York, 1985).
 
 
 

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