Acerca de um conto de Marques Rebelo

Por Henrique Ruy S. Santos


Marques Rebelo. Foto: Alécio de Andrade / Acervo IMS


 
O conto “Em maio”, de Marques Rebelo, se inicia com um “Boa tarde!” que demarca o fim de um ato comunicativo, um cumprimento final entre dois conhecidos que se despedem. Após a separação, o narrador do conto se dirige às ruas do Rio de Janeiro em um domingo “límpido de maio”, onde terá a oportunidade de observar o desenrolar cotidiano da vida no subúrbio da cidade, com o movimento dos bondes e a circulação de seus tipos característicos. O texto destoa, de maneira decisiva, do expediente literário que Rebelo tão bem demonstrou dominar em seu livro de estreia, Oscarina, de que “Em maio” faz parte como terceiro conto. 

Algumas das narrativas mais marcantes do livro, como o conto homônimo e “Na Rua Dona Emerenciana”, se destacam pela perspectiva inquieta de seus narradores, que a todo tempo transitam entre diferentes focos narrativos, recolhendo fiapos de histórias de cada personagem que atravessa seus olhares. A quase nenhum habitante do Rio de Janeiro que cruza o caminho do ponto de vista narrativo desses contos é permitida a livre passagem sem que deixe seu quinhão de experiências, que o narrador sabe recolher na medida certa, como neste exemplo do conto que abre o livro.
 
“Na fúria em que ia esbarrou com o quitandeiro que saía do 37 e foi grosseiro:
— Você está cego, seu galego?
Deixou o homem, humilde, gaguejando desculpas, não cumprimen­tou Dona Filomena (senhora do Seu Jacinto dos Telégrafos, com um telefone de que toda a vizinhança se servia), chegou em casa como uma fera.” (Rebelo, 2002, p. 17)
 
O parêntese que interrompe a ação no meio para falar brevemente de uma personagem que não voltará a aparecer no conto é o modelo da escrita de Rebelo em seus melhores momentos. O resultado é a construção de um quadro muitíssimo vivo, em que o binômio da expressão “paisagem humana” pesa a ênfase em seu segundo termo. Porque interessa muito menos o desenrolar enxuto e célere do enredo e muito mais esse pulsar da experiência (sub)urbana que constitui a matéria de seus contos. Seguidamente a uma peculiaridade da personagem, a “senhora do Seu Jacinto dos Telégrafos”, há o dado que faz irromper no centro do texto os liames sociais que unificam uma comunidade que dispõe de um único aparelho telefônico para toda a vizinhança. O parêntese, mais que mera intercalação, é a própria matéria da narrativa.
 
Esse olhar, que nada mais é que o olhar do cronista que Rebelo herda de nomes como Machado de Assis e Lima Barreto, permite aquela visão do todo que o cinema neorrealista italiano vai incorporar de maneira politicamente carregada no pós-Segunda Guerra a partir do alargamento da profundidade de campo, a que o cinema brasileiro, por sua vez, adere com o Rio, 40 graus de Nelson Pereira do Santos. Trata-se, no geral, de obras em que as cidades são protagonistas, com a figuração crítica de suas desigualdades, mas também de suas qualidades positivas, quase sempre representadas pela riqueza da cultura popular. No caso dos contos mais representativos da prosa de Rebelo, o narrador em terceira pessoa segue suas personagens com olhar interessado, mas relativamente neutro, como uma câmera que apenas aparentemente se limita a registrar os vaivéns da vida.
 
Com isso em mente, “Em maio” é um conto que logo se destaca. Rebelo opta pela narrativa em primeira pessoa ao mesmo tempo em que mantém, como matéria central, a variedade experiencial e social da vida em uma pequena porção do Rio de Janeiro, o que cria, de partida, um ruído. Agora o cotidiano suburbano da então capital nacional emerge não só como retrato ou fisiologia social, mas como imagem em atrito com uma subjetividade específica e mesmo como resultado dessa subjetividade, a do narrador. Este, por sua vez, tampouco é a voz onipotente e superior que pode parecer à primeira vista, na medida em que é ele, também, resultado do meio. O escritor problematiza, como em nenhum outro conto de sua lavra, aquela visada particular que dirige à sua cidade, demonstrando que a atitude perscrutadora que tanto adota não existe sem suas mediações particulares.
 
De onde olha aquele que olha a cidade e seus habitantes? Qual sua localidade física e moral? Que tipo de sensibilidade o contexto urbano de uma capital como o Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX pode dar à luz? Enquanto o narrador sem nome caminha pelas ruas de “maus paralelepípedos” e observa o trânsito de pessoas e meios de transporte, a figura que vem à mente é a do flâneur, tão bem representada pela lírica de Charles Baudelaire. Tipo social e literário típico do auge da Modernidade no século XIX, o flâneur, para usar a intrigante expressão de Walter Benjamin, era “um botânico do asfalto”, usualmente a personalidade lírica que transitava ou flanava pelas ruas e pelas galerias apinhadas de gente das grandes capitais europeias (notadamente Paris) para observar o esplendor da agitação social em todo o seu frenesi e analisar os comportamentos humanos que dali emergiam com uma curiosidade honesta e algo masoquista. O olhar que dirige à multidão nem sempre é condenatório, mas tampouco é laudatório. Como lembra, mais uma vez, Benjamin, a poesia do flâneur “não é uma poesia que canta a cidade natal, ao contrário, é o olhar que o alegórico lança sobre a cidade, o olhar do homem que se sente ali como um estranho” (2006, p. 47).
 
É essa, sem dúvida, a primeira impressão que se tem do narrador do conto de Marques Rebelo. Ao se despedir do amigo, são estas suas palavras:
 
“São os meus passos que me conduzem neste dia límpido de maio, depois da conversa rápida com o Carlos, o gordo, o rico, o invejado, sobre os acontecimentos triviais que as folhas noticiaram pela manhã” (Rebelo, 2002, p. 58)
 
A adjetivação despendida ao amigo denuncia, no narrador, um certo ressentimento de quem não se julga tão apto socialmente quanto poderia ou deveria ser. Ao apontar que o outro é gordo, rico e invejado, o narrador se autodefine nas zonas negativas, numa postura que prenuncia um recuo de si mesmo. É a inaptidão dos desajustados, que poderia muito bem casar com certa visão da flânerie a partir de seus traços antissociais. Entretanto o narrador sai pelas ruas e a homologia logo se dissolve. Enquanto o flâneur do século XIX buscava nas trevas o anonimato dos espectros embaciadamente iluminados pelas lâmpadas a gás e na multidão fervilhante das ruas o movimento de que se nutria sua sensibilidade poética, o narrador de Rebelo sai à rua em um dia límpido de domingo, quando há comumente pouco movimento. Não se trata do pequeno burguês que dispõe de tempo para o trânsito livre pela cidade, e sim do assalariado que pode se dar ao luxo de um passeio unicamente aos domingos. Em seu trajeto, passa pelos bazares, “onde as montras estão fechadas” (Rebelo, 2002, p. 58) e cruza “a avenida, mais larga, mais arejada, mais batida de luz. Vivo, incandescente, um imenso sol inunda a praça de ardores africanos” (Rebelo, 2002, p. 58). É sob a mais radiante claridade que o elemento humano se destaca:
 
“O homem, que espera o bonde para a cidade, já foi o meu padeiro. Chama-se Almeida, é magro e veio da terra. [...] Veio para cá há muitos anos, tem vontade de voltar, um dia, para se acabar dentro da mesma paisagem minhota que o viu nascer e por única ambição — ser gerente” (Rebelo, 2002, p. 59).
 
A capacidade de devassar a intimidade das pessoas, que Rebelo costuma explorar por meio de narradores impessoais, se ressignifica aqui como um atributo que é quase consequência natural do existir citadino. Uma existência variada e múltipla na superfície, mas plenamente decifrável e redutível aos signos homogeneizantes que submetem o humano aos ditames das relações capitalistas de trabalho. Nesse mundo até mesmo os afetos são passíveis da cartografia do olhar, e o narrador logo direciona a atenção à “menina de boina escarlate e cabelo à ventania [que] espera o namorado” (Rebelo, 2002, p. 59).
 
Os diferentes retratos da cidade são apresentados em blocos demarcados por asteriscos, o que ressalta o gosto por demais clássico de Marques Rebelo, cujo apego à ordem e ao “bem dizer” não permite a libertinagem modernista do fluxo de consciência, que, a princípio, pareceria o recurso mais condigno (e óbvio) para apresentar a fluidez e a rapidez da vida urbana. Todavia a urbe do conto é a do domingo calmo, das vitrines fechadas, e é desta contradição que se alimenta não só este conto, mas boa parte da contística do autor: a Modernidade produz em seus indivíduos — os cidadãos, os consumidores — o anseio do retorno e da segurança dos espaços e das temporalidades menos tocadas pela febre do progresso. Em outras palavras, um domingo de maio no subúrbio carioca.
 
Assim, ao mesmo tempo em que herda do flâneur o spleen baudelairiano e a curiosidade que perscruta com o olhar as figuras da cidade, opõe-se a ele em mais um de seus traços fundamentais: a ânsia pela mobilidade. Após uma caminhada que toma não mais que dois parágrafos do texto, o narrador se refugia no jardim de uma praça, de cujo banco tem, simultaneamente, a visão acalentadora dos morros e do espetáculo urbano, síntese da capital nacional no início dos anos 1930. A estagnação a que se resigna com certo fatalismo é atitude oposta à do homem prático, o modelo do self-made man que, menos que decodificar os signos da vida em sociedade, opera-os irrefletidamente:
 
“Se viesse a morte agora, eu não fugiria da morte. Este lugar é sossegado. Ao fundo, anima-se a paisagem. Não sei o nome daqueles morros, mas que importa se os conheço desde menino?” (Rebelo, 2002, p. 60)
 
Ao autoabandono segue uma mudança na forma como enxerga o mundo externo. As visões dos transeuntes, que antes pareciam mais desinteressadas, tornam-se motivo para o exercício de uma introspecção inflada por desejos reprimidos.
 
“Você que passa aí, as gazes flutuando na aragem namorada — ingrata! — você foi qualquer coisa de nítido na minha vida de acon­tecimentos pálidos. Foi para você o meu primeiro suspiro de adoles­cente e o meu primeiro olhar heroico de amor, quando passava, atra­sada sempre, preguiçosa! para as aulas da Escola Normal, levando debaixo do braço gordinho aquela História Natural, elementar, mas que traz uma descrição tão bem feita da flor e do fruto.” (Rebelo, 2002, p. 62)
 
Distanciando-se do flâneur pela maior fixidez física, o protagonista do conto se aproxima, pelo cultivo da fantasia interior aliado à observação detalhista do objeto de desejo, das figuras mais recentes do voyeur e do stalker. A atitude é menos a do indivíduo que se projeta para a sociedade, como seria um João do Rio a declarar seu amor pelas ruas nas crônicas que escrevia, e mais a do sujeito abatido por ela, incapaz, ele mesmo, de fugir à monotonia previsível de seu destino. O tempo verbal preferencial logo passa ao futuro do indicativo, índice do fatalismo que o narrador nutre:
 
“Breve chegará a noite, rescenderão as magnólias e eu contarei as estrelas sempre as mesmas. [...] Quando entrar em casa, sentirei a mesma quietude. Minha mãe cosendo, sentada no seu banquinho ao fundo da sala, minha irmã, esquecidas as mãos no teclado amarelecido, num fim de sonata, sonhando - bem o sei!… — com alguém que não está.” (Rebelo, 2002, p. 64)
 
Resta a conclusão inescapável: “dentro de tanta paz eu sou um homem sem motivo e lá fora, na vida, um tímido que se aterra” (Rebelo, 2002, p. 64). O narrador, pela capacidade que tem de interpretar os vestígios que se lhe apresentam, é como um detetive das histórias policiais de Poe, mas um detetive falho, para quem toda a engrenagem social é um grande crime do qual ele não quer fazer parte, nem mesmo como solucionador. Sua principal angústia é não conseguir produzir uma totalidade coerente a partir de tantos estímulos, algo que lhe sirva de baliza à própria existência. Para nossos ares contemporâneos, não deixa de soar como uma aflição familiar.

 
Bibliografia
 
Rebelo, Marques. Contos reunidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
Benjamin, Walter. Passagens. Organização da edição alemã de Rolf Tiedemann, organização da edição brasileira de Willi Bolle, tradução de Irene Aron (alemão), Cleonice Paes Barreto Mourão (francês). Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
 
 
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #629

Boletim Letras 360º #619

As planícies, de Gerald Murnane

Para acabar com tudo, de Gonzalo Unamuno

Renina Katz, ilustradora de Cecília Meireles

Fragmentação e convergência: Guerra — I, de Beatriz Bracher