A garota da agulha, de Magnus von Horn

Por Adriana Bellamy



 
De vez em quando, durante as temporadas de premiações e medições quantitativas de audiência, é possível encontrar alguns filmes que, embora façam parte das listas anuais, não são tão proeminentes no cenário geral de recepção. Gostaria de tratar do mais recente longa-metragem de Magnus von Horn, A garota da agulha (2024), o filme verdadeiramente interessante.
 
Assim como em outras ocasiões de sua filmografia — por exemplo, Sweat (2020), muito antes de Substância (2024), de Coralie Fargeat, radiografa o mundo do fitness e o fenômeno aterrorizante dos influencers, ou The Here After (2015), um retrato afiado da violência juvenil e do assassinato dentro de uma comunidade —, este diretor retorna nesta nova produção à exploração dos labirintos da mente criminosa fora de qualquer fórmula de suspense psicológico.
 
Ambientado em Copenhague alguns anos após a Primeira Guerra Mundial, A garota da agulha conta a história de Karoline (Vic Carmen Sonne), uma operária de fábrica que, por vários motivos, incluindo o desaparecimento do marido na frente de batalha, acaba em um relacionamento romântico com seu chefe. Quando ele descobre da gravidez, por pressão da família, abandona a garota à própria sorte.
 
Nessa jornada, Karoline conhece Dagmar (Trine Dyrholm, a grande atriz do Dogma 95), uma mulher propietária de uma loja de doces e supostamente chefe de uma organização clandestina de adoção, e se oferece para trabalhar com ela como ama de leite.
 
O que chama a atenção no filme é que, por trás dessas linhas gerais do enredo, von Horn aborda uma das figuras mais controversas da história dinamarquesa, a assassina em série de crianças Dagmar Overbye, cujo julgamento e sentença de morte no início do século passado desencadearam diversas transformações radicais na legislação sobre cuidados infantis naquele país.
 
Particularmente, este filme me parece uma opção distinta no menu de opções, pois vai além do tratamento narrativo usual de serial killers, do suspense mais convencional ou do raciocínio de que mais uma vez repete a função do grande romance social russo ou francês, pois parece, ainda é preciso insistir, que cinema não é literatura e que devemos analisar quais são seus mecanismos de expressão, seus acertos ou deficiências para abordar uma história sobre “os humilhados e ofendidos” do nosso tempo.
 
O filme apresenta uma série de temas, desde o aborto, a adoção ou a falta dela, a injustiça de classe, os limites da escolha moral e toda uma gama de problemas que continuam a nos sobrecarregar hoje. É notável, então, que von Horn crie uma homenagem-compêndio formal à história do cinema e, ao mesmo tempo, revele as feridas sociais de um mundo cuja visualidade se concentra num formato quadrado, num preto e branco premente que lhe permite trabalhar com a alternância entre textura e densidade.
 
Com uma abordagem negra edisoniana e uso experimental do plano composto (e o brilhante trabalho sonoro de Frederikke Hoffmeier), vemos as primeiras imagens sobrepostas de vários rostos, imagens sintéticas, distorcidas imagens baconianas, que antecipam tanto a cisão entre a interioridade e a exterioridade de Karoline, a perda do rosto de seu marido Peter, ou a mudança radical que ela sofrerá sob a égide de Dagmar, com a única possibilidade de enfrentar uma realidade tão cruel através do vício em éter, em um estado perpétuo de alucinação.
 
A partir desse preâmbulo, o filme se torna um repertório condensado de linguagens cinematográficas: desde as tomadas de interiores minimalistas e despojados a la Dreyer; ou planos Lumière com os trabalhadores saindo da fábrica em plano frontal e câmera fixa; as sequências de imagens espelhadas ao estilo Chaplin durante o namoro entre Karoline e Jørgen, seu chefe; os momentos expressionistas do circo onde Peter, o marido com o rosto mutilado, é exibido diante do público; os longos planos gerais de Copenhague, vistos de cima, com uma figura humana perdida nas ruas sinuosas da cidade ou a sequência de Dagmar sendo perseguida por Karoline para descobrir o terrível destino das crianças levadas para um lar “seguro”, que nos lembra Nada além das horas (1926), de Alberto Cavalcanti; ou a reinvenção do drama social no melhor estilo dinamarquês, passando por Asta Nielsen, August Blom, Benjamin Christensen e um longo etcétera.
 
Daí que o tema central do filme, e da personagem desafiadora de Dagmar que nas sequências finais do julgamento desafia uma sociedade indolente diante de um problema ético essencial, ultrapassa as tendências críticas que consideram o filme um “conto sombrio e poético” e, antes, convida-nos, através da mão do diretor a regressar a um cinema de atmosfera, uma ambiência deletéria (onde também encontramos a caracterização do espaço de Karen Blixen) de horizontes sombrios que se expandem com as passagens silenciosas e a efervescência de um ambiente de desigualdades, pobreza, sujeira que, diferentemente do melodrama hollywoodiano, seja na tradição didática do filme com mensagem ou na instrutiva tonalidade musical do grand guignol, recupera a preocupação básica de alguns dos magníficos filmes de temática social suecos ou do cinema de rua alemão, como Ingeborg Holm (1913) de Victor Sjöström, A rua das lágrimas (1925) de G. W. Pabst ou Asfalto (1929) de Joe May. 


* Este texto é a tradução livre de “Cómo escapar del laberinto de odiar a Audiard”, publicado aqui, em El Universal.

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