De vez em quando, durante as
temporadas de premiações e medições quantitativas de audiência, é possível
encontrar alguns filmes que, embora façam parte das listas anuais, não são tão
proeminentes no cenário geral de recepção. Gostaria de tratar do mais recente
longa-metragem de Magnus von Horn,
A garota da agulha (2024), o filme verdadeiramente
interessante.
Assim como em outras ocasiões de
sua filmografia — por exemplo,
Sweat (2020), muito antes de
Substância
(2024), de Coralie Fargeat, radiografa o mundo do
fitness e o fenômeno
aterrorizante dos
influencers, ou
The Here After (2015), um
retrato afiado da violência juvenil e do assassinato dentro de uma comunidade
—, este diretor retorna nesta nova produção à exploração dos labirintos da
mente criminosa fora de qualquer fórmula de suspense psicológico.
Ambientado em Copenhague alguns
anos após a Primeira Guerra Mundial,
A garota da agulha conta a história
de Karoline (Vic Carmen Sonne), uma operária de fábrica que, por vários
motivos, incluindo o desaparecimento do marido na frente de batalha, acaba em
um relacionamento romântico com seu chefe. Quando ele descobre da gravidez, por
pressão da família, abandona a garota à própria sorte.
Nessa jornada, Karoline conhece
Dagmar (Trine Dyrholm, a grande atriz do Dogma 95), uma mulher propietária de
uma loja de doces e supostamente chefe de uma organização clandestina de
adoção, e se oferece para trabalhar com ela como ama de leite.
O que chama a atenção no filme é
que, por trás dessas linhas gerais do enredo, von Horn aborda uma das figuras
mais controversas da história dinamarquesa, a assassina em série de crianças
Dagmar Overbye, cujo julgamento e sentença de morte no início do século passado
desencadearam diversas transformações radicais na legislação sobre cuidados
infantis naquele país.
Particularmente, este filme me
parece uma opção distinta no menu de opções, pois vai além do tratamento
narrativo usual de
serial killers, do suspense mais convencional ou do
raciocínio de que mais uma vez repete a função do grande romance social russo
ou francês, pois parece, ainda é preciso insistir, que cinema não é literatura
e que devemos analisar quais são seus mecanismos de expressão, seus acertos ou
deficiências para abordar uma história sobre “os humilhados e ofendidos” do
nosso tempo.
O filme apresenta uma série de
temas, desde o aborto, a adoção ou a falta dela, a injustiça de classe, os
limites da escolha moral e toda uma gama de problemas que continuam a nos
sobrecarregar hoje. É notável, então, que von Horn crie uma homenagem-compêndio
formal à história do cinema e, ao mesmo tempo, revele as feridas sociais de um
mundo cuja visualidade se concentra num formato quadrado, num preto e branco
premente que lhe permite trabalhar com a alternância entre textura e densidade.
Com uma abordagem negra edisoniana
e uso experimental do plano composto (e o brilhante trabalho sonoro de
Frederikke Hoffmeier), vemos as primeiras imagens sobrepostas de vários rostos,
imagens sintéticas, distorcidas imagens baconianas, que antecipam tanto a cisão
entre a interioridade e a exterioridade de Karoline, a perda do rosto de seu
marido Peter, ou a mudança radical que ela sofrerá sob a égide de Dagmar, com a
única possibilidade de enfrentar uma realidade tão cruel através do vício em
éter, em um estado perpétuo de alucinação.
A partir desse preâmbulo, o filme
se torna um repertório condensado de linguagens cinematográficas: desde as
tomadas de interiores minimalistas e despojados a la Dreyer; ou planos Lumière
com os trabalhadores saindo da fábrica em plano frontal e câmera fixa; as
sequências de imagens espelhadas ao estilo Chaplin durante o namoro entre
Karoline e Jørgen, seu chefe; os momentos expressionistas do circo onde Peter,
o marido com o rosto mutilado, é exibido diante do público; os longos planos
gerais de Copenhague, vistos de cima, com uma figura humana perdida nas ruas
sinuosas da cidade ou a sequência de Dagmar sendo perseguida por Karoline para
descobrir o terrível destino das crianças levadas para um lar “seguro”, que nos
lembra
Nada além das horas (1926), de Alberto Cavalcanti; ou a
reinvenção do drama social no melhor estilo dinamarquês, passando por Asta
Nielsen, August Blom, Benjamin Christensen e um longo etcétera.
Daí que o tema central do filme, e
da personagem desafiadora de Dagmar que nas sequências finais do julgamento
desafia uma sociedade indolente diante de um problema ético essencial,
ultrapassa as tendências críticas que consideram o filme um “conto sombrio e
poético” e, antes, convida-nos, através da mão do diretor a regressar a um
cinema de atmosfera, uma ambiência deletéria (onde também encontramos a
caracterização do espaço de Karen Blixen) de horizontes sombrios que se
expandem com as passagens silenciosas e a efervescência de um ambiente de
desigualdades, pobreza, sujeira que, diferentemente do melodrama hollywoodiano,
seja na tradição didática do filme com mensagem ou na instrutiva tonalidade
musical do
grand guignol, recupera a preocupação básica de alguns dos
magníficos filmes de temática social suecos ou do cinema de rua alemão, como
Ingeborg
Holm (1913) de Victor Sjöström,
A rua das lágrimas (1925) de G. W.
Pabst ou
Asfalto (1929) de Joe May.
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