Uma feira de covardias: sobre Suíte francesa, de Irène Némirovsky

Por Benjamín Barajas


Iréne Némirovsky. Foto: DPA / Picture Alliance / Imec Archives



Um dos episódios mais marcantes da Segunda Guerra Mundial foi a derrota da França pelo exército alemão, numa campanha de seis semanas que culminou com a queda de Paris em 14 de junho de 1940, a assinatura do armistício e o estabelecimento de um governo colaboracionista do regime nazista, liderado pelo marechal Philippe Pétain.
 
É claro que os detalhes desse episódio vergonhoso para as armas francesas foram minimizados no contexto de uma aliança multinacional que recuperou os territórios invadidos e infligiu uma enorme derrota às forças do Führer e seus aliados italianos e japoneses. No entanto, as deportações de judeus franceses para os campos de extermínio do Terceiro Reich abriram feridas profundas que ainda alimentam memórias dolorosas de um período particularmente sangrento na história.

Uma delas corresponde à vida e obra da escritora Irène Némirovsky, que viveu na França e foi extraditada por sua filiação judaica para Auschwitz, onde morreu em 17 de agosto de 1942, aos 39 anos. Seu sacrifício representou um duro golpe no espírito de fraternidade e solidariedade diante de um poder que expôs as forças irracionais que prevalecem nas profundezas da psique do homo sapiens.
 
Na época de sua captura, Irène Némirovsky preparava um romance cujo ponto de partida era o êxodo dos parisienses diante da ameaça das bombas alemãs e as aventuras subsequentes desses personagens assustados pelas estradas e cidades do interior da França. Felizmente, seus cadernos foram recuperados muitos anos depois do fim da guerra e, em 2004, foi publicada a primeira versão da Suíte francesa, que foi revisada e republicada em uma nova transcrição uma década mais tarde.
 
Uma verdadeira obra-prima da prosa romanesca que, involuntariamente, ao abordar o tema literário do manuscrito encontrado e brincar com as polaridades de autenticidade, realismo e mistério que a ficção abrange, segue, assim, os rastos de outras importantes obras do gênero, como é o caso de Dom Quixote, de Cervantes, ou de O nome da rosa, de Umberto Eco.
 
O título do romance explica sua estrutura. “Suíte” refere-se a uma composição musical ligada por uma série de movimentos instrumentais ou danças que se interpreta consecutivamente e que, no nosso caso, é reunida na forma de quadros ou peças que nos remetem à narrativa cinematográfica. Némirovsky planejou escrever cinco movimentos, mas só conseguiu completar dois deles, “Tempestade em junho” e “Dolce”, antes de ser surpreendida pelo exílio e pela morte.
 
Apesar disso, a parte preservada totaliza mais de quatrocentas páginas de uma prosa meticulosa, com algumas páginas que poderiam ser consideradas imortais. É o caso do retrato psicológico de Léonard, um soberbo gato de onze meses que exerce, à sua maneira, seus instintos de guerra e paz em meio ao tumulto da espécie humana.
 
Irène Némirovsky retoma de Tolstói os modelos da epopeia romanesca, de Balzac o realismo burguês e de Flaubert o uso da perspectiva neutra para não julgar os pontos de vista dos personagens. Em termos de técnica, ela também deve muito a E. M. Forster em seus Aspectos do romance e, no que diz respeito à sua visão da história universal, se aproxima do conceito de “intra-história” de Miguel de Unamuno, já que as pessoas comuns são aquelas que geram grandes mudanças. 

Para ela, o fenômeno da guerra é uma feira de covardias da qual participam igualmente vencedores e vencidos.


* Este texto é a tradução livre de “Una feria de cobardias: sobre Irène Némirovsky”, publicado aqui, em Confabulario.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A Sibila, de Agustina Bessa-Luís

Boletim Letras 360º #621

Boletim Letras 360º #611

Boletim Letras 360º #610

A bíblia, Péter Nádas

A criação do mundo segundo os maias