Sete poemas de “Poemas Sin Nombre” (1953), de Dulce María Loynaz

Por Pedro Belo Clara 

 


 
 
I.
 
Solidão, solidão sempre sonhada… Amo-te tanto que às vezes temo que Deus me castigue um dia enchendo-me a vida de ti…
Ontem quis subir a montanha, e o corpo disse não.
Hoje quis ver o mar, descer à luminosa enseada, e o corpo disse não.
Estou desconcertada ante esta obscura resistência, esta inércia que me contrapesa a vontade não sei a partir de que lugar e me sujeita, me solda a invisíveis grilhões aos pés.
Até agora palmilhei todos os meus caminhos sem nunca me dar conta de que eram justamente esses os pés que me levavam, e enchi-me de todas as paisagens sem nunca me aperceber se me entravam pelos olhos ou se as levava já comigo antes de se desenharem no horizonte, e nutri luzeiros, sonhos, almas, sem reparar que as minhas próprias veias se esvaziavam do seu próprio sangue.
Agora pergunto-me que estrela virá a espremer-se gota a gota no coração exausto, que fonte haverá para lhe dar de beber como ao animal cansado…
Pergunto-me o que farei sobre a terra com este corpo inútil e obstinado. E ouço todavia o corpo dizer.
— Que farei com esta centelha que se julgava sol, com este sopro que se julgava vento?...
 
 
II.
 
Para que não vejas as rosas que fazes crescer, cubro o meu corpo de cinzas… De cinza pareço toda, hirta e parda ao longe; mas, ainda assim, quando passas perto, tremo receosa de que me denuncie o jardim, a sufocada fragrância.
 
 
III.
 
Talvez o nevoeiro não fosse tão cerrado, nem o caminho tão áspero…
Talvez por íntimo cansaço ou por orgulho sombrio se não tenha estendido a mão para não parecer que implorava, ou tão-só pela fadiga de esticá-la, quando ainda era tempo de reter o que se ia…
Talvez a vida tenha sido demasiado desprezada para sequer se pensar em compreendê-la; talvez o nó pudesse ter sido desfeito com mais paciência e talvez não tenha havido piedade nem para com o próprio.
Talvez tenha faltado boa vontade na atenção às coisas e o coração se tenha abrigado atrás de um muro de silêncio; talvez a felicidade dada por perdida ainda o não estivesse…
Talvez… Mas já apaguei a luz do meu candeeiro.  
 
 
IV.
 
Estou dobrada sobre a tua memória como a mulher que vi esta tarde lavar no rio.
Horas a fio de joelhos, dobrada pela cintura sobre este rio negro da tua ausência.
 
 
V.
 
Segue o teu caminho sem o temor de me perderes. Hás-de encontrar-me no regresso, mesmo que demores mil anos.
Pois que és débil e te empurra a vida, vai para onde ela te leve. Para quê lutar, se em vão lutarias?
Serei forte por ti. Com as tuas claudicações construirei uma montanha, e no cume me sentarei à tua espera.
Não temas que sinta o medo da noite ou que o frio me tolha. Não há Inverno mais frio que o meu Inverno nem noite mais profunda que a minha noite… Sou eu quem vai congelar o vento e enegrecer as trevas!
Segue o teu caminho. Em verdade to digo. Para a tua espera terei a imobilidade da pedra. Ou antes: a da árvore, furiosamente agarrada à terra.
 
 
VI.
 
Todos os dias, ao anoitecer, ela acende a sua candeia para alumiar o caminho solitário.
É um caminho que nunca ninguém atravessa, perdido entre as sombras da noite e a pleno sol perdido; o caminho que não vem de lado nenhum e a nenhum lado vai.
Folhas de erva brotaram-lhe das fendas na pedra, e o bosque vizinho foi-lhe roendo as beiras, atazanando-o com as suas raízes…
No entanto, ela sai sempre com a primeira estrela para acender a sua candeia, para alumiar o caminho solitário.
Ninguém virá por este caminho, que é difícil e é inútil; outros caminhos há que têm sombra, outros se fizeram que encurtam as distâncias, outros ainda lograram unir numa só linha os trajectos mais revoltos… Outros caminhos há por esse mundo, e ninguém virá nunca pelo seu.
Porquê então a insistência em alumiar um caminhante que não existe? Porquê a pontual obstinação de cada anoitecer?
E, sobretudo, porquê o sorriso de cada vez que acende a candeia?
 
 
VII.
 
Tão azul era a minha chama que durante muito tempo temi que ma apagasse a brisa que vinha do lado do bosque ao entardecer…
Depois, essa mesma chama incendiou a floresta.


 
 
* Seleção a partir da antologia Jardim de Outono (Tradução de Manuel Alberto Vieira, Flâneur, abril de 2020)
 

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