Na colônia penal e a tríade da máquina: medo, castigo e veneração

Por Juliano Pedro Siqueira



 
A novela Na colônia penal (1914) de Franz Kafka, trata-se de um texto curto, mas não menos denso em sua proposta crítica. Após um primeiro contato, certamente o leitor sairá impactado por mais um cenário kafkiano, cercado de absurdos e labirintos existenciais. Aliás, podemos dizer que se trata de uma narrativa terrivelmente perturbadora. Não diferente de outros trabalhos igualmente grandiosos, como O castelo e O processo. Em Na colônia penal, as poucas personagens que compõe a novela, cujos nomes não são mencionados, protagonizam o espetáculo de horrores em nome do poder. A trama inicia-se com a figura tirânica de um oficial, que discorre de forma deslumbrante a eficácia de uma máquina cuja finalidade é torturar insurgentes da lei local. A dita máquina, composta por três partes principais (cama, desenhador e rastelo), crivava marcas nos corpos dos castigados, inscrevendo-lhes sobre a carne, os crimes que cometiam. 
 
Não estranho ao estilo de Kafka, o absurdo é um dos elementos sintomáticos de uma realidade inescapável, aplacando criaturas impotentes, presas em situações circunstanciais que obscurecem o entendimento ou qualquer fundamentação racional que a justifique. Assim é o caso do condenado (sem nome) que está por sofrer uma pena por simplesmente não ter “honrado seu superior”. Condenado este que desconhece as razões de sua própria condenação e o tipo de pena que lhe seria infligido. Ele apenas está ali, mergulhado na própria humilhação, expondo seu corpo ao castigo por uma infração não justificada e sem meios de defesa.
 
A tortura se dá sob o olhar reprovador de um explorador visitante da colônia, que ouve e observa atentamente todo o procedimento, sem intervir no método do oficial. Com a palavra desde o início da narrativa, o oficial tem por missão não apenas dar detalhes técnicos de funcionamento da máquina, mas de persuadi-lo a crer na eficácia daquela forma de estabelecer e executar a lei aos colonizados. O discurso do carrasco é uma tentativa de perpetuar a ideologia de seu falecido comandante, idealizador da máquina. Entretanto, ninguém, além dele mesmo, defende tais métodos de castigo. Mas sua obsessão necessita ardentemente de cúmplices — que outrora apoiavam seu ex-comandante —como validação da sua tirania.
 
Um único NÃO emerge no diálogo como forma de protesto do explorador contra o oficial, convergindo a trama significativamente para uma ruptura de crenças. Rompendo com o silêncio que soava covarde, o explorador assume seu papel de recusa. Ele decidiu não coadunar e participar de um plano que estava em desacordo com seu entendimento jurídico e sua convicção ética. Contrariado, o próprio oficial se entrega como o último sacrifício à máquina que ele tanto venerava e acreditava ser o maior progresso técnico-jurídico daquela colônia. Diante do sacrifico vivo e apaixonante do oficial, o explorador se despede da colônia — não antes de descobrir o túmulo do falecido comandante —, livrando o condenado e o soldado daquela tarefa nefasta; colocando fim ao espetáculo produzido pela máquina peculiar.
 
Sabe-se que toda ficção kafkiana é permeada de enigmas, assombros e absurdos, dificultando a propósito, que se tenha uma única interpretação textual. A novela em questão, segue o mesmo desafio de não ter um único desfecho interpretativo, deixando livre diferentes possibilidades de leitura. Diga-se de passagem, Kafka estava em férias quando iniciou o texto, interrompendo inclusive o manuscrito que daria vida a sua obra de maior envergadura, O processo. Tal esforço dera vida ao assombroso texto do qual refletimos; uma janela que se abre tanto para seu mundo externo, como possivelmente aos seus conturbados conflitos pessoais. É notório que o mundo de Kafka estava em guerra e que seu espírito inquieto vislumbrava tempos totalitários, justificado pelo poder estatal e a ingerência de figuras tirânicas.
 
A violência na narrativa de Na colônia penal revela-se, a priori, um instrumento do medo. Um medo que num primeiro momento paralisa com efeitos hipnóticos, capaz de submeter corpos à inércia. A máquina peculiar detém esse estágio estarrecedor. A imagem de um poder que amedronta e intimida todos em sua volta. O oficial e sua engenhoca são encarnações de um terror que muda cursos de vida e esmaga quem tenta lhe resistir. Medo este presente na figura paterna de Kafka, assegurando uma ameaça que sempre o subjugou e rondou sua existência. Criou-se uma dependência emocional, acompanhada de severas censuras e repressões em nome de uma autoridade completamente questionável. Um encarceramento que pode ser encarado como anulação dos próprios afetos, que uma vez suprimidos por uma autoridade que se revelava soberana, precisaria  canalizá-la (termo freudiano) por intermédio da arte; e a arte suprema para Franz Kafka era a literatura. “… e tudo que não é literatura, me entedia.”
 
Concentrando nos efeitos provocados pela máquina assassina, percebe-se que existe uma evolução na aplicação da pena, transitando do medo até os níveis elevados de dor que percorre sobre o corpo do condenado. A máquina possui peças, engrenagens, correntes e amordaças que permitem provocar dores lancinantes ao limite da perda da consciência. O castigo físico, a inscrição na carne como reparação e expiação do erro, assemelha-se aos métodos utilizados por religiosos na Idade Média, como as penas aplicadas por inquisidores aos hereges, como por exemplo, a flagelação.




O corpo, na narrativa de Na colônia penal, é um objeto repleto de desejo e transgressão. A nudez que precisa ser castigada e exposta à vergonha. Uma relação comum de conflito permanente que oscila entre culpa e expiação. A ideia de castigar o corpo vai além de um mero interesse jurídico. É possível que Kafka tenha pensado a questão do corpo como “templo” que sofre as ações degradantes do desejo; o corpo que sofre mutações indesejáveis e que provoca horror e estranhamento. Assim como Gregor Samsa — que se vê num corpo asqueroso e exposta sua fragilidade desnudada diante da família —, o condenado aqui tem suas vestes retiradas e sua carne perfurada até que seu sangue se misture à água. Parodiando o castigo desonroso aplicado a Cristo, quando teve seu corpo seminu transpassado por uma lança romana, jorrando de si água e sangue. Elementos que representam o antagonismo entre vida e morte.
 
Esse mesmo corpo pode ser objeto de santificação e profanação. A dualidade que faz do corpo essa morada muitas vezes contraditória e estranha. É possível fazer essa leitura no texto em que o aspecto religioso ligado ao corpo é um processo de intensa relutância e diálogo nos textos kafkiano. Quase sempre em tom autobiográfico, o autor tcheco apresenta dilemas que se mesclam entre a sensualidade e o sagrado, esbarrando novamente na figura do pai, que simboliza a própria castração de seus desejos. Desejos muitas vezes obscuros e sórdidos, que o inibiam diante das mulheres que perpassaram em sua curta vida, como dos noivados rompidos. Um desejo que, ainda que fosse latente em si, natural como outras satisfações sensoriais, devido a opressão e repressão que ele mesmo se permite sofrer, provoca-lhe temor e culpa.
 
Não se pode furtar em observar que a máquina desenvolvia uma outra finalidade, que além de provocar medo, castigo físico, também produzia veneração. O oficial desenvolve uma relação sensual, sádica e por fim, autodestrutiva com a engenhoca. Objeto de veneração, a máquina ganhava uma representação catártica, uma vez por acreditar que após cumprir sua função, os efeitos morais e correcionais atingiriam a consciência dos demais colonizados. Pois, a máquina era um legado. Ela foi idealizada por uma ex-comandante e que foi perpetuada por um sucessor megalomaníaco, que com grande fanatismo, queria levar seus métodos até as últimas consequências.
 
Sendo Kafka judeu, presenciou a crescente onda do antissemitismo e demais intolerâncias étnicas e religiosas pela Europa. Kafka não testemunharia em vida os rumos hediondos em que essas intolerâncias culminariam, mas sua sensibilidade espiritual permitiu identificar a farsa por trás dos discursos das ideologias totalitárias, que disseminavam ódio, segregação, alienação massificada e, por fim, extermínio em grande escala. O oficial enquadra-se no tirano centralizador, o tipo que detém poderes ilimitados, principalmente jurídicos, características comuns aos regimes totalitários. Mas figuras excêntricas, necessitam de uma invenção, um monumento ou uma máquina que represente sua autoridade. Assim ocorre com a máquina peculiar da colônia. Para que sua existência continuasse, necessitaria de veneradores. Uma vez esquecida, perderia sua finalidade. É o desencantamento da máquina com o NÃO do explorador, que leva ao radicalismo final do oficial que se oferece como o último sacrifício da venerada máquina. Sua obsessão foi tamanha que não suportaria viver sem a ideologia que o mantinha entorpecido. Ele se conduz, como oferenda viva, para ser imolado. Um fanatismo que leva à cegueira e à autodestruição. Comportamento peculiar aos tiranos, que quando se veem encurralados, tiram suas próprias vidas para se furtarem das responsabilidades pelas suas monstruosidades. Este fora o fim de mais um ideólogo!
 
O mundo que Kafka atentamente observou e interpretou com esmera profundidade e sensibilidade, não se limitou ao seu tempo; sua capacidade de criar ficções que tratam temas reais e emergentes, nos permite lançar olhares pormenorizados ao passado, presente e futuro. Uma perspectiva atemporal cuja visão vaticinou muito antes, tempos em que vários protótipos de colônias penais surgiriam num futuro breve. Estruturas, entidades, ideologias, procedimentos técnicos e toda uma gama de conceitos perpetrados contra uma casta indefesa. Uma concepção de poder que surge para sufocar e humilhar. Forças tão gigantescas que se ocultam e operam com tamanha precisão, que não é possível escapar.
 
Em Na colônia penal como em outros textos, há a sensação de não pertencimento. Um estranhamento de um mundo que ao mesmo tempo que foi feito para nós, nos rejeita como bastardos. Tomo a exemplo o agrimensor K, de O castelo, que perambula por uma vila que não lhe acolheu, mas que ao mesmo tempo e com total indiferença, permite ali sua permanência errante a fim de lhe provocar contradições infernais. A abordagem do deslocamento nos textos de Kafka cria um mundo terrivelmente perturbador. Poderes que não se acessam, sentimentos expressamente incompreendidos e sonhos que não se realizam. Uma verdadeira conspiração contra a vida, que sempre se deparará com poderes reais, visando nos confundir e nos enlouquecer. E quem se atrever a confrontar, a lei insurge para corrigi-lo. Afinal, honre seu superior!


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Na colônia penal
Franz Kafka
Petê Rissatti (Trad.)
Antofágica, 2022
216 p.


* Juliano Pedro Siqueira é graduado em Filosofia pela PUC-MG, em 2018. Amante da literatura, procura variar e conciliar leituras na área de formação e outros gêneros.
 
 

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