As planícies, de Gerald Murnane

Por Gabriella Kelmer



 
Há uma região na Austrália que recebe o nome de planícies centrais. Seu clima é árido ou semiárido — dado que busquei tão logo chegou às minhas mãos o romance As planícies, de Gerald Murnane — e embora não seja tão fundamental ao argumento central do romance quanto se sugeriria o título da obra, a região é transmutada do país real. Não é da experiência territorial de que fala o autor, ou, antes, sendo também uma consequência do contato com uma paisagem incalculavelmente extensa e estéril, o romance traduz, a partir de motivos filosóficos, metafísicos e artísticos, a jornada de imersão de um estrangeiro na vida singularíssima do chamado “homem das planícies”.
 
Traduzida por Caetano W. Galindo e publicada no Brasil pela primeira vez apenas em 2024, embora tenha sido lançada originalmente em 1982, a obra, de uma linguagem reflexiva e academicista que articula simultaneamente um lirismo contido, é curiosíssima. Estabelece, na perspectiva de um cineasta com a ambição de buscar na terra “algum sentido complexo por trás das aparências” (Murnane, 2024, p. 7), um tom reflexivo que se dinamiza com assunções antropológicas acerca da população das planícies. O narrador-personagem busca, para o filme que pretende produzir, compreender as planícies como ninguém as compreendeu; obtém, para esse fim, mecenato oferecido por um rico homem das planícies, que o financia para uma obra que, vinte anos depois, permanece irrealizada.
 
“Houve historiadores que sugeriram que as próprias planícies eram responsáveis pelas diferenças culturais entre os homens dali e o resto dos australianos. A exploração das planícies fora o evento mais marcante da história deles. O que de início parecia plano e inexpressivo acabou revelando incontáveis variações sutis da paisagem e a abundância de uma furtiva vida selvagem. Na tentativa de valorizar e descrever suas descobertas, os homens das planícies tinham se tornado mais observadores do que o normal, mais atentos e abertos a graduais revelações de sentidos. Gerações posteriores reagiam à vida e à arte como seus antepassados tinham confrontado os quilômetros de pradarias que sumiam na neblina. Enxergavam o próprio mundo como mais uma planície numa série infinita delas” (Murnane, 2024, p. 12-13).
 
É evidente a importância, dentre as discussões do romance, da proposição do espaço como algo intrínseco à vida subjetiva. As planícies correspondem de algum modo à interioridade de homens que vivem em caráter insular, recusando a generalização de uma identidade entre eles, rechaçando os visíveis arroubos emocionais da arte e da cultura de outras regiões e propondo comedimento e minúcia no contato com a concretude da existência. Notabiliza-se, no trânsito entre espaço e seres, uma mesma severidade, cujos limites aos poucos são esmaecidos, à medida que desvela o narrador a vida interior dessas figuras, teimosamente individualistas, e descobre homens (são elusivas e silenciosas as mulheres) versados em uma religiosidade própria, em um certo obscurantismo na compreensão do mundo e em uma investigação incessante da simbologia da vida familiar e cotidiana. A terra, infértil e eternamente idêntica a si mesma, passa a ser apreendida também em uma dimensão transcendental, a partir de um horizonte imaginoso que permite aos homens articularem um interior profundo e invisível da planície, que os dota dessas mesmas qualidades.
 
Outro elemento que emerge do enredo são as considerações de ordem antropológica, artística e sociológica pelas quais o narrador reconstitui as correntes filosóficas, os grupos políticos e principalmente as propostas estéticas que, embatendo-se uns com os outros, buscaram atingir a essência da vida nas planícies. Há nesses momentos um tom parodístico que aponta tanto para o determinismo da perspectiva exterior acerca de uma dada população como para a exasperante necessidade interna dos habitantes de atribuírem sentido ao ínfimo, ao particular, diferenciando-se uns dos outros até o ponto do absurdo ao exercitarem uma modalidade de individualização familiar que torna sacros o hermetismo artístico e a apreciação de objetos cotidianos, aos quais é imposto um vago sentido. Também se articula a tentativa fantasiosa de obter a resolução última da existência por meio da arte, que ora vislumbra o horizonte, ora busca, nas minúcias do ambiente circundante, um sentido obscurecido da vida.
 
“O que manteve a polêmica viva no entanto foi o surgimento pouco depois de um outro grupo de artistas que pareciam tão dispostos quanto eles a provocar a crítica. Esse grupo encheu todo um salão de pinturas que tinham um novo tema. A mais impressionante de muitas obras semelhantes, Declínio e queda do Império da Relva, parecia à primeira vista um mero estudo detalhado de um pequeno pedaço de terra coberto de capins e gramíneas nativas — uns poucos metros quadrados de uma pastagem qualquer como tantas ali nas planícies. Mas os espectadores logo começaram a perceber, entre os talos pisoteados e folhas esfiapadas e minúsculas flores arrancadas, os contornos de coisas em nada ligadas às planícies” (Murnane, 2024, p. 23-24).
 
Adentram ainda o viés analogista do romance as discussões de grupos políticos que se opõem por valorizarem a industrialização ou o protecionismo, diferença que se desdobra, ao longo de gerações, em singelas competições esportivas, em uma clara sugestão do apaziguamento das oposições pela ausência de princípios sólidos de singularização. Mesmo a tentativa histórica de libertação das planícies em face da Austrália exterior (correspondente às regiões litorâneas do país), conforme elaborada pelo narrador, é logo revista, pela indisposição da população em vivenciar o confronto.


 
Outro ponto fundamental da obra corresponde à jornada artística do narrador. O cineasta, que termina o romance de mãos vazias, descobre-se, ao longo de décadas de tentativa, cada vez mais longe do filme sonhado, tornando-se a investigação para obtenção de registros autênticos das planícies uma refastelada exposição de anotações sobre imagens nunca realizadas. Para os homens que vão ouvi-lo, durante os momentos em que, sob o mecenato, explica seus recuos e avanços, vale muito mais a aproximação de uma singularidade apenas vislumbrada do que o produto possível do esforço dispendido. Aponta o romance para uma imobilidade decorrente da impossibilidade definitiva da representação cinematográfica das planícies. Articula-se em sentido contrário a linguagem, em sua “multiplicidade de caminhos feitos de palavras e sem qualquer planície conhecida por detrás” (Murnane, 2024, p. 112); em seu aspecto fugidio, portanto, seria a produção linguística, na forma de impraticável roteiro, aquilo que mais se aproxima das esquivas planícies.
 
São veiculadas essas reflexões — de tom ora professoral, ora poético — pela figura do narrador, que vivencia, no contato com as planícies e seus habitantes, um processo de transformação gradualmente descoberto nas três partes que dividem a obra. Na primeira, ambicioso e presunçoso, adentra as planícies com o objetivo de elaborar o roteiro do seu filme, supondo o caráter dos habitantes daquela terra e atuando, em momentos de solidão, como se o filme se realizasse perante seus olhos. Na segunda parte, já sob a tutela do seu financiador, vivencia, na biblioteca da mansão onde estuda todos os dias, um conflito moral e filosófico, no qual admite um incômodo com o silêncio da esposa de seu mecenas ao mesmo tempo em que racionaliza excessiva e exaustivamente as razões pelas quais não pode falar a ela, demonstrando o avançado processo de individuação aprendido — seja a partir do ambiente, seja como inevitável mimetização do outro. Na parcela final da obra, reflete, enfim, sobre a arte irrealizada e sobre uma outra modalidade artística, exercida como falseamento, a que se dobra enfim, de todo demovido do objetivo que o levara àquele lugar.
 
Parece-me que há, nessa mudança de propósito, na discussão da confecção artística em sua ocasional esterilidade, uma reflexão, a partir do cinema, sobre o fazer literário em si. Ao longo dessa discussão acerca da criação artística, Murnane, ao mobilizar gêneros como o ensaio acadêmico, o diário e o próprio romance, volta um olhar crítico — ou simplesmente irônico, conquanto a ironia se exerça em um plano inacessível ao narrador — para dimensões da existência bastante diversas, todas extraídas da mesma terra, que se torna origem ou pretexto da cultura singular exercida pelos homens.
 
“Como nenhum desses homens jamais disse ou escreveu uma única palavra para explicar o fato de preferir viver sem ser visto e perturbado pela ambição de uma modesta suíte desmobiliada de sua casa ordinária, só posso dizer que percebo em cada um deles uma silenciosa dedicação ao esforço de provar que as planícies não são o que a maioria dos homens das planícies consideram que seriam. Ou seja, não são um amplo teatro que acrescenta significado aos eventos que se passam dentro dele. E também não são um imenso campo para exploradores de todo tipo. São simplesmente uma fonte conveniente de metáforas para aqueles que sabem que os homens inventam seus próprios sentidos” (Murnane, 2024, p. 93-94).
 
Chamada de clássico australiano, a obra de Murnane transita por um território composicional tão vertiginoso como o sol intenso das planícies, encontrando soluções bastante peculiares para o gênero literário dentro do qual foi categorizada. O romance é uma introdução intrigante e enigmática à literatura oceânica, àqueles que ainda não a conhecem, e uma leitura decerto obrigatória aos que desejam se aventurar mais fundo no continente (e nos mistérios encobertos pela imagem brilhante das paisagens paradisíacas, que omitem outras vivências). Aguardo com bastante curiosidade as novas publicações do autor no Brasil.


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As planícies
Gerald Murnane
Caetano W. Galindo (Trad.)
Todavia, 2024
112 p.

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