Por Pedro Fernandes
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Gonzalo Unamuno. Foto: Maxi Falla |
Muitas vezes a literatura lembra
que o espírito de uma época não morre com o fim de uma era, aspectos variados se
distendem e ocupam algum lugar nos tempos vigentes. E as transformações desse
espírito também não estão circunscritas nas frágeis fronteiras de um povo mas
são inerentes do humano, ainda que entre nós se manifestem de maneira
consciente, propositada ou com a imprecisa rapidez.
Quanto da natureza primitiva dos primeiros
homens se manteve na força incendiária dos gregos que passou às civilizações
seguintes até nos alcançar e se imiscuir entre as nossas vidas cotidianas? Não
é possível determinar, mas um ávido leitor conseguirá vislumbrar certas
permanências no que para alguns é apenas um traço inerente a tempos pregressos.
Para acabar com tudo, de
Gonzalo Unamuno, reaviva o tédio dos nossos dias, este que é sustentado em
parte pela interminável espera da novidade, enquanto perscruta uma saída
incendiária à maneira dos nossos antepassados que alguma vez se viram tomados
pela necessidade de se adiantar ao curso natural do tempo. O dilema enfrentado
por Germán Baraja, se é possível chamar assim o que se mostra como uma crise
dos trinta anos da geração anos oitenta, é o todo aquele que se encontra encalacrado
entre a inquietação de conceber algo capaz de inscrever seu nome na restrita e
nem sempre justa lista dos feitos relevantes e a angústia de descobrir que essa
qualidade se perdeu na imensa parafernália de descartáveis produzida na
sociedade do alto capitalismo.
Não se trata daquilo que até o
século passado chamávamos de maneira torta como glória; torta porque sequestrados
pela força das ideologias éramos capazes de matar ou morrer, sem nos deixar
desmobilizar pelas consequências que as gerações futuras precisariam lidar ou
resolver. De alguma maneira, estávamos mobilizados por uma sede de existência
plena que nos era insuportável, ou ao menos nos parecia assim, os miasmas do
conservadorismo com sua certeza de que as coisas são como são independente dos
nossos esforços por modificá-las. Todo aquele impulso resultou nas
transformações no modo de vida que levamos; os nascidos nas últimas décadas do
século XX se apropriaram do tempo estável que se organizou pós Segunda Guerra e
buscaram no avanço tecnológico a criação de um novo deus capaz de satisfazer o
imemorial desejo que aprisiona criaturas como Germán Baraja.
Com a vida prática de alguma
maneira resolvida graças ao conjunto de garantias que estabelecemos, o coletivo
entrou em um processo de desestruturação que se acentuou perigosa e vertiginosamente
nas décadas recentes e a irresolução dos diferentes traumas estabelecidos no
interior da coletividade, o indivíduo, epicentro de tudo, se tornou um todo em
crise, complexo e complexado. O pequeno mundo engendrado por Gonzalo Unamuno para
o seu protagonista é, sem que este seja um romance de exemplo, uma metonímia da
encruzilhada pela qual nos movimentamos e ainda sem saída. Daí que, seu dilema
de homem em meio a casa dos trinta anos é o dilema de toda uma geração que
talvez até saiba como sair dele mas adia continuamente para um tempo possível
porque perdeu em alguma parte certo compromisso coletivo que impunha a necessidade
do
seja como for é preciso que seja agora. Mas a espera ou o adiamento,
não são produto de uma geração. Fosse, todas as urgências que se mostram no
presente já estariam
resolvidas pelos que agora ocupam os poderes
decisórios do rumo da civilização, que não são, como sabemos, homens de 34 anos
de idade.
Mas se o imperativo da mudança
quando estabelecido no coletivo é capaz de produzir uma revolução, centrado no
indivíduo, se torna apenas revolta, que, fora a postura de atirar contra tudo e
contra todos, é vazia, melancólica e estéril.
Assim é Germán Baraja. Postergador de tudo que
não seja o seu próprio interesse, ele preenche o tempo da espera sem saber pelo
quê aderindo às irrupções do acaso. Sem a iniciativa cobrada por este acaso, ele
apenas adquire nova matéria para alimentar seu próximo ímpeto destrutivo. É
singular nesse sentido a repetição da imagem do tempo encoberto de nuvens
carregadas que ele próprio deseja como dilúvio capaz de destruir meia
humanidade e que não resulta em nada. Até mesmo Deus se encontra desinteressado
das suas criaturas.
Baraja busca justificar o interesse
destrutivo como parte do domesticado instinto de violência natural a todo
homem. Exemplo disso é quando atribui o meio raskolnikoviano de se livrar da
defenestrada editora que continuamente lhe cobra pelos textos vendidos a 400
pesos como parte do seu primitivo estatuto de homem, que desde a biologia o fez,
pela força, criatura superior à mulher. Ou ainda, quando defende que a única
maneira das minorias resolverem o regime de opressão a que foram submetidas seria
pela imposição de uma violência sistêmica contra os opressores. Ao evocar a
questão do racismo para com os negros, entende que estes deveriam substituir o
tratamento de passivos ordeiros ao sistema pela recusa e pela vingança feita de
morte: “Eles precisam matar nossos filhos e matar a gente”. É uma voz tomada
pelo tédio ou a pasmaceira do nosso tempo afeito a muito discurso e pouca
prática, visto que permanecemos sendo parte de uma relação de poder em que sempre
prevalece o mais forte sobre o mais fraco. Mas, é rasa a alternativa do
protagonista de Gonzalo Unamuno porque coaduna com o próprio modelo dominante,
construído, como sabemos, da simplificação barata do evolucionismo, esta que
resultou em ideologias afeitas a uma ordem da eliminação da diferença.
As elucubrações de Germán Baraja não
devem ser tomadas a sério; elas são construídas mais de convicções, mudadas ao
sabor das necessidades, que de propriedades históricas ou sociais. Seus fundamentos
possuem raízes rasteiras como na maioria dos diletos pensadores do nosso tempo.
Não podemos deixar de reparar que estamos diante de um homem, que mesmo educado
na cultura que o ofereceram parece ter desistido totalmente de perseguir uma
aprendizagem capaz de oferecer uma formação sólida dos seus princípios. As
evidências não estão apenas no raso dos argumentos, estão admitidas pelo
próprio protagonista, também narrador do que se conta em
Para acabar com
tundo no desmazelo com a escrita dos seus artigos para a imprensa; no
impresso, admite, os textos eram trabalhados com outro esmero, existia o
esforço de produzir a discussão do dado, o aprofundamento do argumento, e no
virtual, são suficientes o dado para efeito de curiosidade e o argumento
superficial. Tal degradação do pensamento explica em parte a encruzilhada
discursiva que no nosso tempo nos impede de avançar fora dos cogentes vazios da
ideologia, entregando o espaço político gratuitamente à récua dos
aproveitadores, dos dilapidadores, dos de inteligência barata, ou como admite
em relação ao amigo que o corneou no tempo de militância: “gente sem talento faz
política”. Embora possamos concordar com a máxima, podemos nos perguntar, qual
o talento de Germán Baraja, ignorante da política, que o coloca fora desse
círculo? A resposta pode variar de leitor para leitor e cabe ler o romance para
alcançá-la.
Se isso for um talento, o da nossa
personagem, é procrastinar. A desejada morte da editora vampira é apenas uma
peça a mais no repositório de adiamentos que organiza a vida deste homem que
aos 34 anos adquiriu um teto todo seu num prédio decrépito habitado por tipos
marginais e recém-mudado para a nova casa redivive o ponto-limite dos dilemas
que se acumularam pela falta de iniciativa de resolvê-los. Eis alguns: atender ao
desejo de Macarena, a irmã beneplácita, de ir visitar a mãe em estado terminal;
deixar o vício, retomado à toda depois de descobrir a liberdade de morar
sozinho; procurar um emprego decente e, nesse caso, decência tem a ver com um
emprego que pague bem; resolver a possível paternidade, acusação que o marcou
de morte; acertar as contas com a ex-namorada que o traiu com um amigo dos
tempos de militância política dos quais quer distância; produzir o roteiro de
um curta apalavrado a um amigo que se oferece como seu mecenas na empreitada;
arrumar o apartamento, livrando-se das baratas que chegam para dividir seu
espaço; ir ao supermercado comprar o essencial de uma casa para não se ver
obrigado a bater na porta do vizinho gay que interpreta o gesto como uma
maneira de abrir o caminho para um sexo casual; enfim, a lista é generosa e se
reparamos bem ela resulta no próprio fracasso do romance que quer ser uma
espécie de manifesto contra tudo e contra todos do nosso tempo de chatices,
quer ser um inventário, um diário até, das trivialidades que formam os dias de
um homem afeito com seus fantasmas, um relato de defesa contra a acusação de
paternidade infligida por uma jovem rica que, inverossimilhante, o fez de
capricho ou cobaia, enterrando de vez algum resquício de superioridade
masculina sobre a mulher…
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Para acabar com tudo é uma
viagem regressiva. Tal gesto se mostra desde a maneira como Gonzalo Unamuno
organiza os acontecimentos, do presente para o passado, impondo um ritmo de
duas frentes para o romance que pode ser lido na sequência que nos é
apresentada ou pela via oposta. Nos três dias que ordena as três partes do
relato, do domingo à sexta-feira, acompanhamos as tratativas sem sucesso de
Germán pelo estabelecimento de algum roteiro para a vida: primeiro com ele
próprio; antes com a irmã que faz as vezes de fortaleza do pequeno e desfeito
núcleo familiar; antes com a mãe, a quem dirige uma carta copiosa que acessamos
apenas por meio de fragmentos mas passa a limpo as dificuldades com aquele
tempo em que os da geração dela estavam calcados demais nos seus princípios a
ponto de ignorar a vontade própria dos filhos; antes com amigos e situações do
passado. Tudo isso numa altura em que, sabedor do adiamento do esperado
apocalipse, da incapacidade de resolver seus impasses, parece decidido entregar-se
às correntezas não da destruição mas da autodestruição, admitindo inclusive que
é sua a sina de que, na família, “o galho masculino sempre se caracterizou por
sua fraqueza”: “Todos, pelo menos dos que tive notícias, foram jovens para o
caixão. Meu pai, meu avô, o irmão do meu avô. Acidentes, câncer, má sorte. Elas,
por outro lado, pareciam imunes a esse tipo de desgraça, ainda que eu não saiba
o que é pior”.
O que inventar no tempo em que
“tudo já foi inventado”, como admite o amigo Tarzán? Parece ressuscitar outra
vez, ou talvez nem isso se admitimos que algumas vagas de outro tempo
acompanham o curso dos tempos posteriores, aquele espírito, ou pelo menos parte
dele, que mobilizou toda uma geração no começo do século XX para o ideal
mortífero da Primeira Guerra Mundial — que irresoluto volta a aparecer anos
depois na Segunda Guerra. Ora, além do alentado dilúvio que não vem, é a imagem
de uma guerra que primeiro se impõe em Germán através do sonho e depois procurará
uma via no mundo: “Ninguém seria capaz de precisar com exatidão por que causa
ou motivo arriscaríamos nossas vidas, mas a ideia de matar, de descer chumbo
coletivamente, nos inflamava”, reaviva o sonho, para chegar ao entendimento
seguinte: “ganhava consistência em mim a conclusão de que é uma pena que a
minha geração não tenha padecido com um acontecimento tão grotesco e escroto
quanto uma guerra. Pensei em como nos cairia bem algo que sacudisse essa paz
homogênea, algum evento que nos recobrisse de certa épica, que nos inscrevesse
violentamente na História; uma sucessão de tiros de canhão que em questão de
meses modificasse desde a raiz os valores, os simbolismos, as classes sociais.”
Lemos isso e parece que é a voz do romântico alterado que se lançou contra as
trincheiras em 1919 em busca da redenção de um mundo novo que brotaria
milagrosa e espontaneamente dos escombros da destruição; o ufanismo é retrógrado
porque a história aí está para não nos fazer outra vez acreditar que a saída dos
nossos impasses seja correr os mesmos caminhos.
Ao atribuir ao tempo a necessária transformação
das coisas, Germán Baraja se coloca, como significação do indivíduo do nosso
tempo que é, fora da responsabilidade pelas mudanças. E essa não é uma posição
cômoda como parece àqueles que ainda encontram na ação a velha chama revolucionária
(ou na ilusão dela); ao contrário, é a reafirmação do impasse formulado por
Giuseppe Tomasi de Lampedusa, segundo o qual algo deve mudar para que tudo
continue como está. É desse impasse que Baraja quer escapar e na incapacidade
de saber como reafirma o ponto em que tudo parece ter começado, quando o
espírito do tempo disse que o caminho para o novo seria a implosão do velho.
“Isso é o que minha época fez de mim. Para que negar que, em linhas gerais, me
entretenho esperando alguma grande notícia, algum grande acontecimento que,
claro, nunca chega (o que me mantém em permanente estado de vigília) enquanto
gasto o pouco que ganho em alienações do sistema para acreditar que estou bem
e, como todo produto do ocidente, me sinto uma vítima da época, um desperdício.”
Germán Baraja consegue se fixar
como uma consciência deste século — por mais perturbador que isso seja. Diante
do estabelecido, como a verdade reiterada de uma faixa encontrada algures na
rua de que “Fumar mata”, ela avança, teimosamente, pela contramão. Isso diz
muito dos nossos dias, mas nos coloca diante de forças que julgávamos vencidas e
que pode, outra vez, nos arrastar para um apocalipse. Afinal, o triunfo das
ideologias nefastas é pela falta de ação dos que não coadunam com suas práticas.
Curiosamente, os filhos de Baraja — ora bastardos, ora alienados da história —,
podem ser, se houver, alguma salvação. Pulverizada, as ideologias oferecem
menos risco. Isso não quer dizer que o catastrófico não esteja no horizonte. É
a nuvem espessa que vez ou outra levanta prometendo uma terrível tempestade,
mas pode ser que o terrível, como a tempestade anunciada, não se cumpra. Talvez
seja esse o nosso tempo de agora: sobreviver contendo incêndios e presos na
interminável agonia pela saída, esta que sabemos bem qual e se encontra significada
no romance no destino da mãe de Germán Baraja.
______
Para acabar com tudo
Gonzalo Unamuno
Mauricio Tamboni (Trad.)
Pontoedita, 2024
128p.
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