Outono de carne estranha, de Airton Souza

Por Henrique Ruy S. Santos

Airton Souza. Foto: O Liberal (Reprodução)


 
A visão de uma cava é assombrosa. A carne da terra penetrada a céu aberto pelas ferramentas do homem guarda algo de obsceno e de violador. Nos deixa com a impressão de que certas entrâncias, certos sulcos obscuros do solo escavado não foram feitos para serem vistos, muito menos expostos a céu aberto. A grandeza do espetáculo provoca um pudor primal que nos invade e suspende, brevemente, qualquer consciência espacial e temporal que pudesse, porventura, nos apontar causas, modos e motivações humanas por trás do que nos é dado ver.
 
Outono de carne estranha, romance vencedor do prêmio Sesc de 2023 e escrito pelo paraense Airton Souza, parte, em determinada medida, desse mesmo assombro diante do fenômeno do maior garimpo a céu aberto durante os anos 1980, Serra Pelada. As determinações sociais e econômicas que fizeram com que milhares de homens e mulheres se dirigissem a uma cratera de mais de 20 mil metros quadrados em busca de ouro no Sudeste do Pará não são o foco da narrativa. Elas estão pressupostas e são até mesmo referenciadas, mas o romance olha o fenômeno como um descalabro humanitário, como, curiosamente, uma espécie de desarranjo espiritual, e, o que é mais importante, pela via do erotismo e da homoafetividade. Projeto arrojado, a que não se pode deixar de reconhecer a ousadia. Os resultados literários, porém, ficam aquém da intrepidez da ideia.
 
A paisagem humana da Serra Pelada de Airton Souza é filtrada pela introspecção individual. O mergulho nos embates e nos sofrimentos de três figuras específicas tem prioridade em relação à figuração das massas de trabalhadores, que permanecem anônimas no livro. A narrativa acompanha Manel e Zuza, garimpeiros que mantêm uma relação homoafetiva entre si às escondidas do restante dos trabalhadores. O terceiro personagem de importância no livro é Zacarias, um padre que vai à Serra Pelada a serviço da igreja, mas que, diante do visível fracasso de sua missão e do desinteresse flagrante de quase todos pela palavra divina, se torna, ele também, um garimpeiro.
 
O romance foi alvo de polêmicas após um encontro na Flip em que o autor leu trechos de seu livro. Pelo que se relata, algumas pessoas teriam ficado incomodadas com a narração de uma longa cena de sexo, que dá início ao romance, entre os personagens Manel e Zuza, em trechos que não se eximem de um registro cru e mesmo pornográfico.
 
Polêmicas à parte, a confluência de imagens nessa longa cena inicial dá conta de todo o aparato simbólico que será mobilizado durante a narrativa e que constrói a imagem de Serra Pelada que o livro abarca. O ato da penetração sexual é alinhado, de maneira pouco sutil, ao movimento igualmente fálico das picaretas, das enxadas e dos pedaços de pau com que os garimpeiros golpeiam os barrancos:
 
“Quanto mais socava a pica no cu de Zuza, mais Manel escutava o barulho das picaretas. Dos enxadecos. Das mãos repletas de calos. Das velhas enxadas enferrujadas. Dos pedaços de paus. Das bateias roçando levemente sobre a água. Das pás afundando no chão amarelado dos barrancos e dos paredões, quase acinzentados de terra, que formavam a cava. Ao mesmo tempo que sentia as pupilas dilatando, longe das pequenas anatomias do céu, a sua língua salivava cada vez mais. O suor descendo de seus cabelos e molhando boa parte do corpo parecia querer, a qualquer custo, reviver as margens, embora minúsculas, do rio Sereno no meio dos peitos dele.” (Souza, 2023, p. 11)
 
A maneira como o romance consegue demonstrar que o cenário de barbárie do garimpo é apenas aparentemente refratário ao erotismo e ao desejo sexual é das coisas mais bem realizadas do livro, que é consciente do jogo sonoro que os vocábulos que circundam aquele universo trazem à tona, sem abusar da brincadeira: “Serra Pelada”, “bate-paus”, “picaretas” são alguns dos signos que inserem a tensão do erotismo proibido pela carga fônica em atrito apenas aparente com os sentidos semânticos e referenciais.



 
O enfoque é altamente aproximado, com um narrador que nos conduz em meio ao cheiro do melechete e do suor dos garimpeiros, em meio ao ruído das escadas adeus-mamãe que rangem sob o peso dos passos e dos fardos dos trabalhadores da cava. Nesse aspecto, entre aqueles que se aventuraram a representar literariamente a Amazônia ao longo da história, o romance do autor paraense não se filia nem às tendências de um Euclides da Cunha ou de um Abguar Bastos, ambos portadores de um certo tom indignado de narrativa, nem de um Dalcídio Jurandir ou Milton Hatoum, donos de um lirismo mais efetivo, mais bem-resolvido formalmente e menos espiritualizado. No início do livro, a aproximação à interioridade de seus personagens, privilegiando a elaboração de suas subjetividades, é atitude louvável na medida em que contrasta com a rampante desumanização a que eram submetidos os garimpeiros de Serra Pelada, e que o romance trata de demonstrar por meio da figura do Marechal, espécie de mandatário do garimpo. Enquanto lida diretamente com anseios, desejos e afetos, o romance se recusa a olhar os garimpeiros como uma massa humana disforme e não cede à imagem fácil (fácil porque quase oficial) de formigas trabalhando na cratera. Por outro lado, não é sempre que a atitude se sustenta. Toda vez que se afasta de seus três personagens principais, o romance tende a uma representação coletivizada dos garimpeiros pouco efetiva, uma vez que não só ratifica imagens gastas, como trabalha contra si mesmo na representação que faz daqueles seres humanos: “De longe, eles eram como formigas. De perto, pareciam coisas terminadas de ser paridas pela terra do garimpo” (p. 114).
 
Recorrendo a uma explicação algo esquemática, diria que Airton Souza evoca, na forma como lida com as questões interiores de seus personagens e na atmosfera de opressão espiritual que cria, a herança da nossa literatura de inspiração católica, deixada por nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna e o costumeiramente desprezado Otávio Faria. Há um mote exaustivamente explorado que trata Serra Pelada e os garimpeiros como uma terra e um povo abandonados por Deus, e o imaginário que se revela na maneira como o romance lida com o personagem do padre Zacarias, por exemplo, sempre às voltas com as tentações da carne e do ouro, é essencialmente cristão. Não há demérito inerente aqui, principalmente porque o livro foge de saídas moralizantes e vulgares, mas a forma como articula, no plano da linguagem, a contradição entre o sentimento religioso e o mundo de “pecados” de Serra Pelada — e que nada mais é que o par de opostos Céu/Inferno — é bastante mal resolvida e redunda em frases pueris postas no pensamento do personagem de Zacarias, como “Tinha vontade de dizer aos garimpeiros que não existe garimpo no céu” (Souza, 2023, p. 49). Ainda dentro de minha explicação esquemática, àquela tradição herdada de romancistas do século XX se junta, no plano da experimentação formal, um cansado estilo telegráfico tão em voga em nossa contemporânea prosa neonaturalista e que tenta, de maneira muitas vezes forçada, alçar a prosa mais desinteressante a um registro poético elevado. A preferência pela pontuação que isola sintagmas nominais é uma ferramenta técnica empregada por Airton Souza como forma de conferir ao texto uma cadência poética que ele nem sempre pede. Quando acerta, temos o exemplo da cena inicial, já citada, em que cada elemento evocado isoladamente adquire mais força simbólica e corrobora a construção da paisagem sonora e visual em questão, como pinceladas ou flashes que se acumulam. Quando erra, ficamos com trechos esquisitos e desnecessários, em que a pontuação não serve a propósito algum a não ser a manutenção de cacoetes pretensamente poéticos:
 
“A exatos seis dias depois da inauguração, a cobal foi arrombada. Duas tábuas arrancadas de um dos lados. À noite mesmo, o marechal ficou sabendo do roubo. Levaram arroz. Feijão. Sardinha. Farinha. Sal. Açúcar. Café. Bolacha de água e sal. Dois litros de querosene. E três lamparinas.” (Souza, 2023, p. 67)
 
O romance delineia um conjunto de imagens em seu panorama lírico e se aferra a ele sem desenvolvê-lo a contento. A certa altura (ainda lá pela metade do livro), já sabemos o que esperar das elucubrações do narrador e dos personagens: Zuza invariavelmente lembrará da avó que interpretava sinais para o jogo do bicho; Manel lembrará de Trizidela e da sua família; o narrador nos lembrará das agruras em volta da palavra “bamburro”. Falta dinamismo e variação a um lirismo que se dissolve em refrões enjoativos e fórmulas ineficazes. Os momentos em que a obra se sobressai positivamente ocorrem quando a narrativa parece se esforçar menos para alcançar o efeito poético, que, nesses casos, emerge muitos mais das próprias situações engendradas do que pela via da linguagem metafórica concentrada. Vem à mente, a título de exemplo, a cena em que Zuza abandona o garimpo após ser agredido pelo Marechal e por outros garimpeiros por conta de sua sexualidade:
 
“No quintal e a poucos centímetros da gamela ficou de cócoras. Juntou as mãos e fez uma concha. Meteu-as na gamela e molhou os olhos. Da mesma maneira, pegou mais água e jogou dentro da boca. Bochechou por alguns segundos e cuspiu. Lavou a cabeça. Voltou para o interior do barraco mais desolado. Desarmou a rede. Eram exatos três dias sem ver Manel. Rapidamente, jogou os documentos na boroca. Acomodou as roupas e a boroca em uma sacola. Encontrou, por acaso, um fósforo entre as tábuas. Acendeu a lamparina perto da janela. Borrifou o alma de flores nos sovacos. Passou duas gotas da colônia charisma no pescoço. Antes de atravessar pela última vez a porta de seu barraco, colocou o diadema no meio da cabeça raspada. Bateu os dedos de leve sobre a camisa. Acomodou a sacola com os pertences debaixo do braço. Fechou a porta dizendo para si mesmo: ‘O marechal se quiser que venha um dia abrir a porta e a janela para arejar esse pedaço de Serra Pelada. Ele não é a pátria?’” (Souza, 2023, p. 159-160)
 
A cena é simples e adquire força por si só devido ao acúmulo de acontecimentos e graças ao que já sabemos da relação entre Manel e Zuza. Não é o caso em muitos outros trechos, em que o uso de símiles e metáforas que buscam o efeito poético beira o kitsch: “A velha, com o corpo totalmente curvado, aparentava ser o caminho que levaria qualquer borboleta a entender o que são dunas tristes”.
 
Outono de carne estranha é um livro de ideias corajosas e que se esforça para não se contentar com uma suposta suficiência literária de sua escolha temática e espacial. Seu principal problema é que se esforça demais e busca efeitos cujos resultados muitas vezes variam entre o bobo e o afetado, entremeados por alguns momentos de boa fatura. O leitor deste romance de Airton Souza pode topar, vez ou outra, com algo que brilha como ouro, mas certamente não encontrará nenhuma pepita.


______
Outono de carne estranha
Airton Souza
Editora Record, 2023
176 p.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #628

Renina Katz, ilustradora de Cecília Meireles

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #618

As planícies, de Gerald Murnane

Boletim Letras 360º #629