O romance que perdi

Por Alejandro Zambra




Jamais pensei que Bonsai fosse um livro “filmável”. A primeira proposta me surpreendeu, não sabia o que responder, então disse que não. Também disse que não para Cristián Jiménez uns meses mais tarde, mas também lhe pedi que me deixasse ver seu trabalho. E sucedeu que Ilusiones ópticas [Ilusões de ótica], seu primeiro filme, me deixou comovido como há muito não ficava. Fui cativado por seu olhar, por sua busca, que me pareceu diversa da minha, mas também, em outro plano, muito próxima, muito familiar.

Confiei instintivamente em Cristián e decidi que, não importa o que acontecesse, em caso algum eu seria o típico escritor ressentido com a adaptação do seu romance. Pelo mesmo motivo, pensei que se não gostasse do filme ficaria em silêncio. Tinha, porém, um bom pressentimento. Pensava, sobretudo, na cena final de Ilusiones ópticas, com a maravilhosa Paola Lattus e Iván Álvarez de Araya frente a frente. Não o contarei aqui, mas para mim é um dos finais mais arriscados e belos que já vi em um filme (e isso por ser, incrivelmente, um final feliz).

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Não foi fácil, para Cristián, escrever o roteiro. Várias vezes sentiu que naufragava. De tempos em tempos nos reuníamos para almoçar e falar sobre o romance, e minha posição era peculiar, mas bastante cômoda, porque não me sentia artisticamente comprometido com o filme, por assim dizer: não era meu filme, não tinha qualquer obrigação, e além do mais estava escrevendo Formas de voltar para casa, o que me absorvia por completo. Cristián me fazia perguntas que ninguém me havia feito, porque lia Bonsai vez após outra, impiedosa e carinhosamente. Lembro-me sobretudo de uma manhã quando lhe abri a porta e ele me disse, como forma de saudação, à maneira dos policiais: precisamos falar sobre a morte de Emilia. Até me senti um pouco culpado por tê-la matado.

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Os primeiros contatos com Jiménez aconteceram em meados de 2008, um ano depois do aparecimento de A vida privada das árvores, meu segundo romance. E na tarde que nos reunimos pela primeira vez, no grande Olán da rua Seminario, eu tinha acabado de escrever um par de páginas de que buscava há meses, e estava feliz porque começava a me aproximar do que acabaria se tornando Formas de voltar para casa. Menciono isso porque há uma relação importante entre este romance e o filme, que enfim apareceram quase ao mesmo tempo; na verdade, apresentei o romance em Santiago, parti no dia seguinte para Barcelona e uma semana depois estava em Cannes para a estreia de Bonsái.

Alguns traços do processo persistem no romance, como a menção a Bom dia, de Ozu, um dos filmes comentados com Jiménez, porque às vezes também nos reuníamos para ver filmes. Já éramos uma dupla de amigos que falavam sobre qualquer coisa enquanto ele tomava chá (como os personagens de seu filme) e eu tomava café (como os personagens do meu livro). Nunca esquecíamos por completo, entretanto, o motivo de nosso encontro. Daqueles diálogos extraía eu pequenas convicções suplementares sobre a criação literária. Ao observar a forma como Cristián confrontava os materiais eu voltava a pensar na especificidade da literatura, aquela pergunta clássica dos formalistas russos: o que é propriamente literário em um romance ou em um poema, o que não se pode fazer por outros meios, em outra linguagem.

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Quando Cristián me mandou a primeira versão do roteiro, comecei a lê-lo com um ânimo bastante relaxado, mas a experiência me afetou de forma inesperada e radical. Tenho dificuldade em expressar esta ideia: eu sabia que o romance se transformaria em outra coisa, em uma obra muito diversa, alheia, e realmente desejava isso, mas ao ler o roteiro pela primeira vez, embora me parecesse bom e nele reconhecesse soluções incríveis, senti que meu romance havia sido violentado ou borrado.

Naquela tarde saí para caminhar e quase sem me dar conta fui na direção da casa onde vivia quando escrevi Bonsai. Fumei vários cigarros olhando para a fachada. Em Formas de voltar para casa o protagonista faz algo muito semelhante, mas agora me confundo e não sei se escrevi a cena antes ou depois daquela tarde em que, dizendo de forma convencional, vivi minha dor.

Gosto de pensar que quando publicamos livros é como quando os filhos saem de casa: queremos que se deem bem, mas pouco ou nada podemos fazer por eles. E estamos muito mais interessados no livro que estamos escrevendo agora, no que estamos criando. Naquela tarde, sentado na sarjeta, pensei que dali para a frente meu romance viveria ainda mais distante, que se transformaria em um daqueles filhos ingratos que nunca telefonam.

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O que aconteceu depois foi somente o tempo. Entre o romance e o filme há diferenças de todo tipo. Gosto que seja assim. Naturalmente, se o tivesse feito o filme seria bem diferente: seria ambientado totalmente em Santiago, teria outra música, outra velocidade, outro humor, tudo seria diferente. Mas não faço filmes. E, em outro sentido, sinto-me bastante próximo do que Cristián viu no livro. É um privilégio, sem dúvida, que alguém leia o seu livro tão a fundo e realize uma leitura própria, autônoma.

Logo fiquei sabendo que Trinidad González, uma atriz que adoro, participaria do filme, e que o protagonista seria Diego Noguera, o que me alegrou, pois tinha acabado de vê-lo em Turistas, de Alicia Scherson. As filmagens atrasaram e por fim coincidiram com minha estadia de quatro meses na Cidade do México – foi uma pena, teria adorado ir às locações, entrar um pouco nesse mundo.

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Quando Bonsai foi publicado, em fevereiro de 2006, alguns escritores reagiram irados contra o livro, e o argumento era de que não se tratava de um romance e sim de um conto longo, uma nouvelle. Definir o romance como gênero é impossível, mas de todo modo persiste a ideia de que se trata um relato longo, de duzentas ou mais páginas (e quanto mais longo melhor, mais romance será). Eu não queria, a rigor, escrever um romance, senão uma espécie de simulacro ou de resumo de romance: da mesma forma que um bonsai é e não é uma árvore, eu queria um livro que fosse e não fosse romance. Além disso, se Bonsai houvesse sido publicado em um mesmo livro com outras narrativas teriam dito, sem ressalvas, que era um conto longo. Mas eu não queria publicar Bonsai junto de outros contos. Era, para mim, um livro, uma unidade. Era esse o projeto. Cheguei até mesmo a pensar em acrescentar este subtítulo: Romance de brinquedo. O Bonsái de Cristián Jiménez, por outro lado, é um longa e não um curta-metragem.

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Susan Sontag disse que um filme de uma hora e meia equivale a um conto e não a um romance: é este, para ela, o grande erro das adaptações, pois os cineastas veem-se obrigados a simplificar demais. Também era esse o meu maior medo, o motivo pelo qual não havia aceitado as ofertas anteriores: não queria que simplificassem o romance de modo algum. Não queria, em especial, que o filme gritasse o que no romance se sussurra. Cristián pensava da mesma forma. Em uma reunião inicial perguntei se o romance lhe parecia “filmável” e ele respondeu que não, de jeito nenhum: justamente por isso é que queria adaptá-lo.

É muito incomum que o romance seja mais curto que o filme. Bonsai é lido em menos de uma hora e o filme dura noventa minutos. E embora seja a história de uns estudantes que fingem ler um livro, gosto de pensar que neste caso mais de um vai preferir, para poupar tempo, ler o romance.

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Ainda não consegui decifrar o que senti ao ver o filme pela primeira vez. A tela de algum modo era um espelho, porque muitas das frases que aqueles personagens diziam eu as havia escrito ou vivido. E, contudo, aquilo não era meu, era de Cristián e dos atores e de todos os que trabalharam no filme. Senti uma mescla de alegria e tranquilidade. E a certeza de que havia perdido aquela história. Porque a perdi: se Bonsái, agora, me pertence, é de uma forma nova, coletiva. E isso é angustiante e estranho e perfeito.


Abril, 2012

 
* Tradução de Guilherme Mazzafera. O texto “La novela que perdí” encontra-se compilado no volume No leer (Editorial Anagrama, 2018).
 
 

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