“Ninguém quer” e a reconstrução da masculinidade

Por Rafael Kafka




Me vejo numa mesa após me exercitar fisicamente e observo com atenção a conversa que os homens, todos mais velhos que eu, mantêm. Nesse espaço em geral eu cultivo a postura de ouvinte por ser um ambiente bem conservador e eu hoje preservar minha saúde mental. O diálogo gira em torno do fato de que hoje os homens não podem mais ser homens.
 
— Deram tanto direito às mulheres, são tantas coisas que não podem mais, que agora a gente não consegue mais chegar numa mulher sem medo de ser acusado de assédio.
 
Como alguém em celibato não me preocupo muito com essa questão. Mas lembro de que já passei por experiências em que ultrapassei os limites estabelecidos por uma pessoa do gênero feminino. A priori, eu não entendia bem qual era meu erro e foi preciso muito tempo de leitura e escuta empática para entender o que fiz.
 
Eu ouvia aquela fala angustiada de um conhecido e pensava em como eu era e em como ainda havia em mim resquícios daquele modo de ser. Pensava nas minhas formas de abordagem nos meus tempos de donjuanismo: geralmente eu sustentava a conversa o tempo suficiente para que chegasse o momento em que diria “quero ficar contigo” e tudo faria para a moça definir.
 
Isso deu certo muitas vezes. Outras nem tanto. E na minha visão donjuanesca eu fingia uma praticidade que na verdade era algo egoísta e que feriu muita gente. Então, de certo modo eu me identificava com a fala do conhecido:
 
— Como agir se não podemos mais ser homens?
 
Voltei a pensar nisso assistindo a alguns episódios de Ninguém quer, série da Netflix que tem como estrelas Adam Brody e Kristen Bell. Afirmo isso porque muito dos comportamentos que Noah, o personagem de Brody, assume na trama, são os que eu gostaria de ter tido em minha mais tenra juventude.
 
A própria forma como ele aborda Joanne é um exemplo para mim de como proceder na arte da conquista. É uma conversa despretensiosa, bem-humorada, cheia de abertura e que culmina no desejo de aprofundar a relação. Nesse sentido, fica muito nítido como podemos abordar mulheres de um jeito que não soe nem assediador demais e muito menos frio.
 
Lembro da fala de outro conhecido reclamando que antigamente podíamos chegar nas mulheres, puxar pelo braço, tocar no cabelo, roubar um beijo e nada disso era problematizado. Ainda há muita violência contra a mulher nos mais diversos níveis e isso é bem lamentável. Todavia os mecanismos de denúncia e conscientização contra práticas abusivas aumentaram em potência nos últimos anos.
 
Nesse sentido, penso que muitos homens passem por uma espécie de zona cinzenta na qual não há uma noção clara de como se comportar. As próprias mulheres reclamam dos homens por não terem atitude no momento do envolvimento e penso que isso se dê pelo fato de ainda muitos de nós estarmos tateando à procura do compasso ideal.
 
Os lugares de gênero mudaram demais apesar de muita coisa perdurar. Há diversas nuances nos comportamentos que devem ser levadas em conta no momento de nos envolvermos com alguém. Por isso, acho que Ninguém quer é uma série interessante no sentido de nos fazer repensar nossa masculinidade.
 
Não quero aqui dizer que Noah é um homem perfeito do ponto de vista comportamental. Mas mesmo quando falha ele se propõe a entender onde errou e como pode se corrigir. Exemplo disso é quando ele de certo modo esconde Joanne como sua namorada num evento judaico. Há um tabu muito forte em membros dessa comunidade se envolverem com pessoas de outras religiões, ainda mais quando essas pessoas são bem abertas a questões difíceis à tradição religiosa como é o caso de Joanne, que tem um podcast com a irmã no qual fala de relacionamentos e sexo.
 
Ao ver que decepcionou Joanne, Noah pede aconselhamento a uma moça de sua comunidade e decide ir atrás de sua até então ficante. Ele se permite entender a dimensão da dor do outro e a acolhe no sentido de usar isso como combustível para enfrentar seu próprio medo de não aprovação no seu meio social.
 
Um tema que é muito abordado nos grupos de homens é a indisposição dos homens em geral a se abrirem para a vulnerabilidade. A maioria de nós sempre quer performar a pose do inderrotável, do sem-sentimentos, do forte, do macho alfa, se possível. O que aprendi nesses grupos e em outros que frequento para outras questões é que somente quando nos permitirmos falar de nós mesmos com franqueza seremos capazes de entender nossas feridas e curá-las. O perigoso nesse ponto é que muita gente pode simplesmente optar por deixar tais feridas dormindo quietas. O mais perigoso ainda é que tais dores se manifestam de alguma maneira, se não ferindo a nós mesmos, ferindo a quem nos rodeia.
 
Noah é um personagem que se permite à abertura. Há uma outra cena em que ele pede a Joanne que diga qual o seu maior medo e mais à frente ele explica que essa pergunta se dá pelo desejo de criar uma conexão com ela. Ele não quer que aquilo seja apenas um recreativo pós-termino — o seu relacionamento anterior é encerrado logo nas primeiras cenas do seriado. A linguagem é a morada do ser, diria Heidegger, e muitos relacionamentos atuais são reflexos de um mau uso da linguagem que é abissal. As pessoas parecem não se comunicar consigo mesmas e com as outras da maneira mais efetiva que deveria existir e nesse processo vivem uma dialética cheia de conflitos.
 
Penso na minha casa nos tempos de primeira juventude. Era um lugar marcado por uma raiva tremenda, onde as pessoas não se suportavam e não conseguiam falar umas com as outras a não ser por gritos. Levei muito dessa lógica para meus relacionamentos, sendo alguém extremamente oscilante em se tratando de afetos, pouco afeito a diálogos que me colocassem diante de mim mesmo.
 
Ninguém quer é uma série interessante para se pensar relacionamentos e comportamentos. Creio que Joanne também seja um personagem que ensina muito às mulheres, mas quis falar do meu lugar, que tantas vezes na vida eu desrespeitei. Eu que aprendi a amar o trabalho de Adam Brody em The OC gostei demais da sua versão madura e do modo como o seriado em si nos convida, nós homens, a nos deixarmos ser vulneráveis e abertos para nossas parceiras não se sentirem oprimidas pelas nossas feridas não curadas.
 

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