Manhattan Transfer, um romance em forma de filme

Por Rodolfo Elías


John Dos Passos. Foto: Philippe Halsman.


 
“If I can make it there,/ I’m gonna make it anywhere./ It’s up to you/ New York, New York”, canta Frank Sinatra em uma de suas canções mais conhecidas: “Se eu conseguir chegar lá,/ Conseguirei chegar a qualquer lugar./ Só depende de você,/ Nova York, Nova York”. A cidade que já era mesmo antes da Primeira Guerra Mundial uma cidade vibrante é onde se passa Manhattan Transfer, romance de John Dos Passos.
 
Manhattan Transfer foi publicado há cem anos, em 1925, mesmo ano em que Adolf Hitler publicou seu controverso manifesto autobiográfico, Mein Kampf. E é um dos romances mais interessantes e completos que alguma vez li; seu estilo, seu ponto de vista, sua inventividade e seu brio romanesco, ainda estão preservados. Uma obra muito diferente do que havia sido publicado até então. De certa maneira, Dos Passos criou uma forma nova no romance. E como se tudo isso não bastasse, tem a virtude especial de ser um romance muito bem escrito.
 
Muitas vezes ouvimos a frase “ele estava à frente de seu tempo”. E ouvimos essa frase especialmente em referência à música; como a música dos Beatles, por exemplo, que estava realmente à frente de seu tempo. Manhattan Transfer também estava — de maneira espetacular — à frente de seu tempo. Lemos este livro hoje, cem anos depois de ter sido publicado, e sentimos que a descrição oferecida da dinâmica da cidade grande ainda é muito relevante; Nova York se apresenta como a Babilônia moderna, onde alguns têm sucesso e outros são condenados ao pior do destino.
 
Aliás, uma característica muito marcante da obra é que, assim como em A colmeia, de Camilo José Cela, e A região mais transparente, de Carlos Fuentes — onde os protagonistas são Madri e Cidade do México, respectivamente —, em Manhattan Transfer a verdadeira protagonista é a cidade de Nova York. E é quase certo que tanto Cela quanto Fuentes tinham Dos Passos em mente quando trabalharam em suas respectivas obras; se não como influência direta, pelo menos como referência. Pois, com um estilo semelhante, Dos Passos abordou e consolidou sua marca na chamada Trilogia USA.
 
Mas há outra qualidade de Manhattan Transfer sobre a qual quero falar: seu traço cinematográfico. Um romance que, logo sentimos, é influenciado pelo cinema. O mais intrigante é que quando foi escrito, o cinema ainda era mudo, mas ao lê-lo parece que estamos assistindo a um filme de qualquer época do cinema moderno, com som e imagens em tecnicolor. O barulho dos barcos, do trem, dos caminhões de carga, do bonde, a música (muita música), a agitação da cidade e suas imagens vívidas contribuem para isso. Os diálogos também são muito cinematográficos, e há pelo menos duas referências ao cinema. Há uma cena em que, após um tiroteio entre bandidos e policiais, um dos personagens que presencia o acontecido diz: “exatamente como nos filmes”.
 
É claro que é preciso levar em conta que, apesar de ser uma expressão relativamente nova, na década de 1920 o cinema já estava bastante desenvolvido em suas produções de alto orçamento, com seus impressionantes efeitos especiais e avanços tecnológicos. O cinema de D. W. Griffith, que desde 1908 já demonstrava inventividade, demonstrando total domínio da cena em seus planos internos e externos, em filmes como Intolerância e o próprio O nascimento de uma nação, é um exemplo. Por outro lado, os filmes dos comediantes Harold Lloyd e Buster Keaton, com seus efeitos especiais e stunts, já mostravam um progresso incrível na época em que Dos Passos trabalhava em seu romance.
 
Temos aqui o caso de uma arte antiga sendo inspirada e nutrida por uma arte — que naquela época não era classificada como tal — quase recém-nascida. Como já vinha acontecendo há alguns anos na pintura (após o surgimento da fotografia) com o uso da collage; que, por sua vez, também seria transmitida à literatura com o cut-up, técnica que se popularizou nos Estados Unidos graças ao escritor beat William S. Burroughs, em romances como Almoço nu e Nova Express.
 
Gabriel García Márquez disse, sobre literatura versus cinema; “Tinha a convicção de que no cinema a imagem tinha possibilidades de expressão através das quais poderia ir muito mais longe do que com a literatura. Contudo, o cinema e a televisão têm limitações de ordem industrial, técnica e mecânica que a literatura não possui.” Ou seja, mesmo com tudo o que o cinema engloba, o romance como meio de expressão artística prevalece. Ainda para García Márquez: “O romance deixa ao leitor uma margem de criação que o cinema não permite. A imagem é muito imponente. A imagem é a definição total; na imagem se sabe como é o rosto do personagem. Na literatura, não importa o quanto se descreva, o leitor sempre tem a oportunidade de preencher as lacunas que permanecem.”
 
Como se refletisse esse conceito, o romance Dos Passos é muito descritivo de ambientes (vozes, ruídos, odores e imagens), mas nunca descreve características físicas das pessoas, exceto em algumas ocasiões em que usa um traço ou gesto para produzir uma impressão da atitude de algum personagem; o que constitui outra característica da maestria com que o romance é feito.
 
E assim como Dos Passos foi influenciado pelo cinema, ele influenciou o cinema com novas ideias de ação cinematográfica. É bem possível até que tenha influenciado o filme Metrópolis (1927), do cineasta alemão Fritz Lang. O segundo capítulo de Manhattan Transfer é intitulado “Metropolis”. Este capítulo possui uma epígrafe que parece ter sido usada pelo cineasta como ideia geral para seu filme. No romance, o segundo capítulo também possui certa preeminência, pois revela acontecimentos que posteriormente definirão algumas situações nos capítulos subsequentes e no desenvolvimento posterior da trama.
 
Quando García Márquez começou a trabalhar em Cem anos de solidão, disse que queria escrever um romance “onde acontecesse de tudo”. Ou seja, um romance com tema e caráter de totalidade universal. Como começa e termina uma civilização, com todos os seus padrões de desenvolvimento e progresso. E os instrumentos (bússola, astrolábio, mapas) de navegação que introduzem a era moderna a partir do Renascimento; o começo e o fim da história, como na Bíblia. Em Manhattan Transfer tudo acontece no agora, no exato momento em que o estamos lendo; toda a dinâmica dos tempos modernos e contemporâneos. A cidade como um monstro de mil cabeças, em seu avanço implacável em direção a um destino apocalíptico.
 
Um romance que abrange diferentes estilos e expressões, onde são descritas imagens visuais, imagens mentais, expressões, sensações, impressões. Em 1924, havia sido publicado um romance também rico em impressões, Hotel Savoy, de Joseph Roth (classificado como um romance expressionista, também muito descritivo em imagens, sons e odores), e o próprio Ulysses, de James Joyce. E embora nesses dois romances também haja barulho e descrições do ambiente, em Manhattan Transfer tudo acontece de forma mais intensificada, mais presente, mais vibrante e ressonante. É o aqui e agora, acontecendo no preciso momento dentro e fora da narrativa.
 
O episódio com o bem-sucedido advogado George Baldwin exemplifica o exposto acima: “Quando saiu para a Broadway, se sentiu como um jovem rapaz saindo para se apresentar. Era uma tarde brilhante de inverno com alguns resquícios de sol e nuvens. Ele entrou em um táxi. No caminho para o centro, se recostou no assento e cochilou. Acordou já na Rua 42. Tudo era uma confusão de brilhosos planos interseccionados de cores, rostos, pernas, vitrines, bondes, carros. Apoiando-se nos joelhos, ele se levantou com suas mãos enluvadas, borbulhando de excitação.” Times Square em plena e eterna glória.
 
A Primeira Guerra Mundial eclode e o narrador descreve a angústia e a incerteza produzidas por um evento bélico de tal magnitude. Mas ao fundo a música não para nunca; é uma espécie de atenuante. Há música do começo ao fim do romance; música popular contemporânea: Irving Berlin, Billy Murray, Marion Harris, Eubie Blake. As pessoas saem para comer, dançar e se divertir. Elas frequentam teatros, coquetéis e festas, onde a música é abundante. E a presença da guerra é latente, como tema geral das conversas. E também nos é apresentado como o processo grosseiro e mundano de marketing e reajuste econômico e social; a reafirmação dos atuais modos de produção (um grande protótipo da Guerra do Vietnã, onde os lucrativos métodos e procedimentos de guerra foram aperfeiçoados).
 
A música é o bálsamo que alivia as tensões produzidas pela vida moderna e pelos current affairs do mundo e da grande cidade. Feito que ilustra muito bem um diálogo no romance Hotel Savoy, onde um personagem retorna à Europa durante a Lei Seca nos Estados Unidos. Quando perguntado: “O que faz na América quando se está triste — sem álcool?”, o viajante responde: “Toca o gramofone”.
 
Manhattan Transfer cobre os quatro primeiros anos da Lei Seca, a lei que varreu os Estados Unidos de 1920 a 1933 e que deu origem a um dos episódios mais sangrentos da história americana. Dele surgiram personagens nefastos como Al Capone, Salvatore Lucky Luciano, George Bugs Moran e muitos outros rufiões que deram início a uma tradição de crimes e saques em larga escala nos Estados Unidos; que se espalhou até os dias atuais e para toda a América Latina. Como parte das funestas dinâmicas que se produziram durante a Lei Seca, vemos pessoas influentes e bem relacionadas que não sofrem com as proibições legais, porque para isso possuem seus speakeasy, lugares onde o álcool é vendido clandestinamente. Aí também se toca música.
 
Mas a música serve ainda como um guia cronológico para os eventos que acontecem no romance, para colocá-los no contexto temporal. Nesse aspecto, Dos Passos também estava à frente do cinema moderno. E neste caso estou me referindo especificamente ao diretor de cinema underground Kenneth Anger, que em 1963 foi o primeiro a usar música pop e rock and roll (Bobby Vinton, Ricky Nelson, Elvis Presley etc.) como trilha sonora, em seu filme Scorpio Rising. E a Martin Scorsese, que deu continuidade à tradição em grande parte de sua cinematografia.
 
A Grande Guerra termina e o tema da conversa será a Revolução Russa, especialmente em certos círculos (emigrantes, pessoas de mentalidade radical, idealistas). A Revolução, essa grande utopia à qual alguns personagens se referem como a verdadeira esperança de redenção e igualdade social no futuro, pela qual eles se sacrificam. O escritor judeu Isaac Bashevis Singer desmistificaria isso anos depois, quando nos conta o destino de alguns personagens de suas histórias, que foram para a Rússia e acabaram em um gulag ou desapareceram, apesar de suas intenções honestas de contribuir para a causa.
 
Outra coisa marcante que salta na dinâmica da Manhattan Transfer é o oportunismo, onde aqueles que fazem sucesso têm que recorrer a meios pouco honestos. Como o advogado George Baldwin, que começa sua carreira ganhando um processo para um leiteiro, cujo vagão de leite é atropelado (com ele a bordo) pelo trem, e no processo Baldwin se torna amante da mulher de seu cliente. Gus McNeal, o cliente, fica rico e usa seu acidente como trampolim para uma carreira política. Também temos os parentes que roubam a fortuna do menino Jimmy Hefer, depois que ele fica órfão após a morte de sua mãe. Jimmy cresce e se torna jornalista. No final, completamente fracassado, se prepara para deixar a cidade e assim conclui o romance.
 
Há uma conversa entre o aproveitador Gus McNeal e o dirigente sindical Joe O'Keefe sobre a mobilização de veteranos de guerra e seu uso para benefício mútuo. O'Keefe sai fumando um charuto, com alguns cubanos na bolsa. Não podemos esquecer que os líderes sindicais também fizeram história por suas ligações com a máfia, usando os truques dos mafiosos para extorquir e manipular os empresários (grandes protótipos do capitalismo). Como Harry, o obscuro dirigente sindical do romance Última Saída para Brooklyn, de Hubert Selby Jr. E como esquecer, também, o caso de Jimmy Hoffa.
 
Em suas histórias americanas, Singer retrata magnatas imobiliários judeus de forma grotesca. Emigrantes judeus falam de homens que conheceram em campos de concentração ou como verdadeiros ninguém em cidades como Varsóvia ou Lublin. Homens que mais tarde reaparecem em Nova York ou em Miami como grandes empresários. Quem tem mais saliva engole mais pinole.
 
Todos os tipos de personagens sórdidos aparecem no romance: especuladores do mercado de ações, políticos furiosos, magnatas do mercado imobiliário, líderes sindicais, ativistas, contrabandistas, atores e atrizes fracassados, que nos prepararam para personagens de romances emblemáticos como Trópico de Capricórnio, de Henry Miller, Última saída para o Brooklyn e Psicopata americano, de Brett Easton Ellis, que personificam Nova York, a imensa e avassaladora metrópole. Uma cidade em que, como diz o verso da música que cito no início deste texto, quem a conquista pode conquistar qualquer lugar. E aí chegam todos com essa esperança; o que traz à mente a imagem clássica do transatlântico carregado de emigrantes europeus, em filmes como O Poderoso Chefão e Era uma vez na América.
 
A única coisa que faltou foi que Manhattan Transfer começasse como a cena de abertura de Amerika, de Kafka, que parece irradiar a luz da esperança quando o protagonista, Karl Rossman, “estava no navio transatlântico entrando lentamente no porto de Nova York, quando um repentino clarão de luz do sol pareceu iluminar a Estátua da Liberdade”.


* Este texto é a tradução livre de Manhattan Transfer, una película novelada, publicado aqui, em El Cuaderno.

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