Casa Rorty XXXV: ante a titânica modernidade

Por Manuel Arias Maldonado



 
O Brutalista, filme de Brady Corbet que relata a peripécia de um arquiteto judeu de origem húngara que sobrevive ao Holocausto e tenta continuar sua carreira profissional nos Estados Unidos do pós-guerra, chegou aos cinemas de todo o mundo quando Donald Trump foi novamente empossado como presidente. Como veremos a seguir, um dos temas do filme é a natureza do projeto sociopolítico estadunidense ou, se preferir, a pergunta pela “alma da América”. Mas já é coincidência que uma das ordens executivas assinadas imediatamente pelo ex-magnata imobiliário — nomeada Promoting Beautiful Federal Civic Architecture — disponha que os edifícios federais de nova construção terão que se ajustar ao padrão estético da arquitetura clássica: se László Tóth, nome do protagonista do filme, levantasse a cabeça!
 
Sabemos o que Trump entende por classicismo se prestarmos atenção ao precedente criado por ele mesmo com uma ordem assinada no final de seu primeiro mandato; aí, sob o título Making Federal Buildings Great Again, se recordava que os Pais Fundadores escolheram a arquitetura da Atenas democrática e da Roma republicana para os edifícios públicos do novo país, razão pela qual convém não se afastar desse modelo. Nessa ordem, apenas se faz uma exceção com o tradicionalismo regionalista onde ele esteja enraizado, como acontece com o estilo colonial espanhol no Arizona ou Novo México, desde que seu tratamento seja pré-moderno e não pós-moderno. No rastro dessa ordem agora renovada, apontou na época o arquiteto Luis Fernández-Galiano nas páginas de Arquitectura Viva, censuram-se explicitamente estilos como o brutalismo e o desconstrutivismo. Fernández-Galiano acrescenta que Trump, que contratou arquitetos modernos para seus arranha-céus nova-iorquinos, não está sozinho: também Xi Jinping condenou a “arquitetura extravagante” das últimas décadas, repudiando expressamente a sede da Televisão Chinesa em Pequim, devida ao holandês Rem Koolhas; a diferença é que o presidente chinês evitou identificar um “estilo de Estado” concreto, além de pedir obras sensíveis capazes de “inspirar as mentes e reconfortar os corações”.
 
Qualquer turista pode comprovar que a maior parte dos edifícios públicos projetados nos Estados Unidos durante a primeira metade do século XX abraçam o neoclassicismo, felizmente compensado pelo art-decó empregado pelos promotores privados nos arranha-céus dos anos 1920 e 1930. Isso vale sobretudo para o Leste; quem visitar a Califórnia encontrará o mencionado estilo colonial, assim como o modernismo que se torna dominante em lugares tão peculiares como Palm Springs. O neoclassicismo originário importa aqui porquanto remete aos ideais republicanos fundacionais e, portanto, diz algo sobre a imagem que os estadunidenses têm de si mesmos. É verdade que, à vista dos anúncios feitos por Trump durante seus primeiros dias no cargo, sua presidência começa com veleidades imperiais mais próprias da Roma posterior a César do que da Atenas continuamente hostilizada pelos inimigos externos. Nesse sentido, parece que a Megalópolis de Francis Ford Coppola não estava errada: seus Estados Unidos do futuro adotam uma estética tributária da Roma Antiga, que no filme se associa sem rodeios a uma decadência plutocrática e corrupta.
 
E assim estávamos quando chegou às nossas telas O Brutalista, que não demorou a dividir os espectadores: alguns a exaltaram e outros a execraram. Sua recepção me lembra a que tiveram os filmes de Paul Thomas Anderson uma vez que ele se emancipou da influência de seu mestre Robert Altman para explorar caminhos mais pessoais. A referência não é caprichosa, já que o jovem Brady Corbet não pode ocultar sua dívida com o Anderson tardio; o filme joga na mesma liga que Sangue negro e O mestre, situado este último na mesma década de 1950 em que se passam os acontecimentos d’O Brutalista. Nem Anderson nem Cody estão sozinhos: a tentativa de fazer o Grande Filme Americano remonta a D.W. Griffith e Eric von Stroheim, embora seja em Cidadão Kane que aparece a figura do magnata visionário que pensa grande e trata os outros como se fossem sua propriedade. Também é preciso pensar no cinema de Scorsese, Coppola, Eastwood, Cimino ou o citado Altman; a Nova Hollywood foi fecunda em meditações sobre o rumo de um país — de uma ideia — cujos alicerces pareciam ranger sob o peso do mal-estar social e da crise econômica.
 
Welles tinha 25 anos quando fez Kane; Corbet fez O Brutalista com 36: talvez haja filmes que só se podem fazer nessa idade. Mas este último já dirigiu o original e intenso Vox Lux: o preço da fama em 2018, ou seja, com apenas 30 anos, e sua estreia, A infância de um líder, três anos antes. Desiguais ambos, mas também formalmente audaciosos, apontavam maneiras; sua estreia, por sinal, conta com uma fantástica trilha sonora de Scott Walker, à memória do qual está dedicado O Brutalista. Curiosamente, a linguagem de Corbet é aqui mais clássica e contida, embora não se prive de correr alguns riscos quando lhe parece necessário. O primeiro deles é a duração do filme: três horas e meia, aos quais se somam os quinze minutos de um intervalo que nos remete aos tempos dos grandes epics hollywoodianos; ainda hoje encontramos essa pausa, por exemplo, em algumas edições de Duelo ao sol em DVD ou Blu-Ray. Para quem gosta do filme, sua duração não é um problema; todo filme bem-sucedido dura o que tem que durar e cabe agradecer que um diretor se dê o tempo necessário para contar uma história. Mesmo que possamos concordar que alguma sequência é dispensável, nenhuma é obscenamente supérflua. Além disso, o formato do filme longo é apropriado para a narração de histórias que se estendem ao longo das décadas ou dos anos.
 
O american dream não é como o contam
 
Escrito por Corbet e sua mulher, a cineasta norueguesa Mona Fastvold, o filme custou apenas 9,6 milhões de dólares; o diretor é astuto ao colar a câmera aos personagens e deixar fora de foco o fundo onde teria custado muito dinheiro filmar em exteriores ou montar um cenário. Nos conta a história de um arquiteto de Budapeste formado na Bauhaus de Dessau que é forçado a emigrar para os Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial; sua mulher e sua sobrinha ficam para trás, conseguindo se reunir com ele apenas anos depois. László Tóth tem o mesmo sobrenome do magnífico diretor André de Toth, húngaro como ele e que, como ele, se estabelece na América, onde desenvolve uma brilhante carreira na Hollywood do sistema de estúdios; a diferença é que o protagonista de O Brutalista abre caminho a duras penas em um contexto social que o diretor descreve como caracterizado por uma rejeição implícita do estrangeiro e, em particular, do judeu. Daí que a primeira imagem do país com que se depara o protagonista tenha uma angulação impossível: quando Tóth abandona o porão do navio e sobe ao convés, como fizeram o menino Corleone de O poderoso chefão e os emigrantes armênios retratados por Elia Kazan em América, América, vê a Estátua da Liberdade plantada na Ilha de Ellis. Mas o diretor nos mostra de cabeça para baixo, enquanto soa a intensa trilha sonora composta por Daniel Blumberg; como se quisesse deixar claro que o american dream é diferente do que se conta.
 
Assim o iremos comprovar quando Tóth se vê condenado a sobreviver na Pensilvânia, uma vez que a mulher católica de seu primo Attila conseguiu se livrar dele. Ela tem suas razões: Corby disse em alguma entrevista que sua intenção era mostrar um ser humano contraditório e muitas vezes desagradável, evitando retratar o imigrante como um bondoso que se limita a ver as coisas acontecerem, trabalhando duro e abaixando a cabeça. Em alguns aspectos, o seu é um imigrante que lembra os que povoam os romances de Saul Bellow, que no magnífico O planeta de Mr. Sammler relata dois dias na vida de um sobrevivente do Holocausto que vive em Nova York e lida com um parente moribundo — um que foi um milionário implacável nos negócios — e seus peculiares filhos. Mas Sammler tem 70 anos e já é um homem contemplativo que reflete sobre a decadência cultural do Ocidente — ou o que ele considera tal — sem esperar muito da vida; o Tóth interpretado por Adrien Brody é um arquiteto com ambições criativas e consciência social. Ele também é judeu; como a mãe do diretor, metade católica irlandesa e metade asquenaze. Introspectivo e orgulhoso ao mesmo tempo, Tóth não exibe nenhum trauma ante os outros; prefere expressar suas vivências através de uma obra à qual não pode se dedicar por falta de contatos. Sua sorte muda quando conhece o milionário Harrison Lee Van Buren (Guy Pierce), portador de um fino bigode que remete tanto a Charles Foster Kane quanto a Lancaster Dodd, estafador em grande escala — talvez o fundador da Cientologia — criado por Philip Seymour Hoffman em O mestre.
 
Van Buren vive com seus filhos em uma mansão rural na Pensilvânia e exerce como mandachuva de uma localidade branca e protestante; não se conhece mulher. Tóth faz uma reforma em sua biblioteca quando trabalha para seu primo Attila; o milionário acaba por admirá-la e, após descobrir seu passado na Bauhaus, decide contratá-lo para construir um grande centro social que levará o nome de sua falecida mãe. Tóth se muda para uma casa anexa à grande mansão; sua mulher e sobrinha se juntam a ele: se a primeira chega em uma cadeira de rodas, a segunda permanece muda. O arquiteto apresenta ao promotor um projeto brutalista: um edifício compacto de vasta superfície feito em concreto — material incomum nos EUA — e aspecto hermético; deixo para os historiadores da arquitetura determinarem quão verossímil é que um estudante da Bauhaus acabe fazendo brutalismo. Seduzido por sua criatividade, embora incapaz de entendê-la, Van Buren dá o aval ao projeto, apesar das reservas de seu entorno pessoal e profissional. Já vimos que Donald Trump quer voltar ao neoclassicismo: as dificuldades da modernidade arquitetônica para se abrir caminho na América suburbana do pós-guerra, especialmente em sua conservadora Costa Leste, são verossímeis. Nesse sentido, o contexto histórico e cultural do filme é mostrado por Corbet sem ênfase: as canções melódicas dos anos 50 e a irrupção sincopada do bebop, o consumo de heroína nos locais underground, o início da Guerra Fria e a consequente pressão para eliminar qualquer vestígio de comunismo, a fundação de Israel; não é, enfim, um período qualquer. Tóth, disposto a levar seu edifício adiante a todo custo, assegura aos notáveis de Doylestown que nem suas convicções ideológicas nem sua origem étnica serão obstáculos para a exaltação da comunidade que o acolhe; embora esteja enganando, isso só saberemos mais tarde.
 
A figura do mecenas é plausível: quem passar por São Petersburgo, Flórida, encontrará um Museu Dalí onde são exibidas mais de duzentas obras do pintor catalão que foram compradas pelos senhores Morse. Para sublinhar a turvação das fortunas capitalistas, os roteiristas de O Brutalista fazem de Van Buren uma espécie de magnata implacável repleto de conflitos internos; obcecado por Tóth, chega a sodomizá-lo durante a viagem que ambos fazem a Carrara para comprar mármore. Seu filho também mostra uma conduta desordenada; tudo indica que ele viola a sobrinha de Tóth durante um dia no campo. A sodomização de Tóth me lembrou uma sequência de Georgia, filme de Arthur Penn em que se leva à tela a experiência como imigrante iugoslavo do roteirista e romancista Steve Tesich; nele, um milionário de aspecto patrício vê como sua filha — com quem mantém relações incestuosas — se casa com um aspirante a professor de filosofia de origem balcânica: nem curto nem preguiçoso, revolta-se contra essa realidade disparando contra ela e suicidando-se durante o banquete de casamento.
 
No caso de O Brutalista, a tese é clara: a sociedade estadunidense está corrompida pelo dinheiro e os membros mais proeminentes de suas respectivas comunidades apresentam apenas uma fachada de honorabilidade, atrás da qual se esconde uma rapacidade sem limites. Durante seus primeiros passos no país, Tóth constatou que a realidade visível é uma simulação de ordem publicitária: seu primo Attila mudou seu nome para que não soe estrangeiro e chamou seu negócio de Miller & Sons, apesar de que, como László lhe aponta, “não há Miller, nem há filhos”. Este aspecto do filme é discutível: às vezes parece uma obra de tese que tende a pintar com um pincel largo o retrato da sociedade estadunidense. Porque o pai carrancudo de Georgia também trabalha nos grandes fornos da Pensilvânia — onde também se ambienta O Brutalista — e expressa ao filho com crueza seu desencanto com essa “América” onde trabalha como um condenado, mas seu filho pertence a outra geração e vive experiências diferentes: após dar muitos passos em falso por excesso de idealismo, acaba tendo uma boa vida.
 
Afinal, László Tóth é expulso da Europa depois que os nazistas tomaram o poder na Alemanha e Stálin baixou a cortina de ferro sobre sua Hungria natal. Enquanto nosso continente se torna terra arrasada, os estadunidenses receberam dezenas de milhares de refugiados. Isso não significa que eles chegaram a uma sociedade que os recebia de braços abertos, nem elimina os aspectos mais sombrios da Guerra Fria. Mas a Europa havia vivido duas guerras devastadoras e exterminado seis milhões de judeus, enquanto seus países mais ocidentais — Portugal e Espanha — eram ditaduras e toda a Europa Oriental se tornava presa do totalitarismo soviético. Se os ideais elevados da Bauhaus fracassaram, não foi nos Estados Unidos; apesar da inegável distância que existe desde o primeiro momento entre os ideais iluministas que cristalizam em sua Constituição e a dura realidade da vida americana. Assim, Corby incorre na ingenuidade romântica ao comparar a hipocrisia dos milionários protestantes com a camaradagem livre dos antifascistas italianos que dançam fervorosamente no interior de uma montanha; as coisas, como sempre, são muito mais complicadas.
 
Vida e obra, obra e vida
 
Para contar o desfecho da história, o diretor recorre a um epílogo questionável ambientado na Bienal de Arquitetura que se celebra em Veneza em 1980; na ocasião se homenageia um envelhecido Tóth — tem 69 anos e aparenta 90 — na presença do que há de mais importante na profissão. Sua sobrinha, que havia emigrado para Israel, lê um texto onde exalta a carreira de seu tio e explica aos espectadores o sentido do edifício Van Buren, concluído finalmente em 1973: resulta que este vasto espaço de concreto recria sua experiência em Buchenwald através de longos corredores e salas estreitas com tetos de vários metros de altura. Corby nos explica o filme: caso não estivéssemos prestando atenção. Uma leitura benigna da sequência sugere que tudo o que vimos até aquele momento é uma longa tribulação que só retrospectivamente adquire um significado preciso, deixando claro por que Tóth escolhe o registro brutalista para o edifício e qual é a mensagem que quer comunicar com ele às futuras gerações. No entanto, o propósito de Tóth pode ser deduzido de seu empenho em levar o projeto adiante, renunciando a seus honorários e evitando romper com Van Buren depois que este último o violou na Itália: sua obra é sua vida e a obra dá sentido à vida.
 
Em última análise, a mole brutalista de Tóth destila a experiência de um indivíduo que se deparou com essa modernidade titânica que produziu seus efeitos mais intensos entre o final do século XIX e a década de 50. Seria um erro pensar que a experiência moderna contém apenas atrocidades; a ambiguidade é seu traço definidor. Mas muitos sofreram suas consequências; seja nas trincheiras europeias, nos campos nazistas, no gulag soviético ou na China maoísta. Tóth, personagem de ficção mais ou menos crível, é um deles: educado na elegante utopia da Bauhaus, sofreu como judeu a barbárie nazista e padeceu os rigores da imigração nos Estados Unidos da Guerra Fria. Outros caíram do lado comunista; infelizmente, há onde escolher. Como sabe qualquer leitor de Primo Levi ou Jorge Semprún, sobreviver aos campos não sai barato; assim como o Sammler de Bellow passeia seu ceticismo por Nova York, o László Tóth de Corby resiste orgulhosamente a ser assimilado por uma sociedade que lhe desagrada e renuncia a buscar abrigo em Israel; prefere deixar sua marca erguendo um monumento à desumanidade humana. No entanto, Corby diz pouco sobre o significado do monumento; talvez ele mesmo não tenha muito claro.
 
Não sei se do filme pode-se dizer também que é um monumento: enquanto aplaudo sua ambição temática, lamento sua tendência à tese e a incoerência psicológica de alguns personagens, bem como a falta de humor — a vida é sempre tragicômica — que diminui sua credibilidade. No entanto, O Brutalista merece nosso aplauso: é um filme vigoroso que deseja ter algo a dizer e muitas vezes consegue. Veremos como envelhece; por enquanto, vamos desfrutar de sua insolente juventude.


* Este texto é a tradução livre de “Casa Rorty XXXV: ante la modernidad titánica”, publicado aqui, em Letras Libres.
 

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