Beatriz Sarlo: a permanente juventude

Por Alejandro Virue


Beatriz Sarlo. Foto: Nestor Garcia


 
Beatriz Sarlo morreu no dia 17 de dezembro, em Buenos Aires. Partiu sem ver publicada a sua autobiografia, No entender. O título pode soar como falsa humildade de alguém com opiniões fortes sobre quase tudo, mas reflete bem sua maneira de escrever e pensar, guiada por uma curiosidade genuína e inesgotável.
 
Ela nasceu em 1942 na mesma cidade onde morreu e viveu toda a sua vida. Embora tenha passado longos períodos em diferentes cidades ao redor do mundo, sempre disse que não conseguia ficar muito tempo longe de Buenos Aires. Nesta cidade, fez o ensino primário e secundário em uma escola inglesa em Belgrano; estudou Literatura na Universidade de Buenos Aires (UBA); fez suas primeiras incursões no mundo editorial, na Editora Universitária de Buenos Aires (Eudeba), e na gestão cultural, no Instituto Di Tella. Nesta cidade, foi responsável por revistas culturais fundamentais para a formação intelectual de várias gerações; primeiro, Los Libros, com Carlos Altamirano, Ricardo Piglia e Héctor Schmuckler; depois, Punto de Vista, por onde passaram todos os nomes que, cedo ou tarde, marcaram o desenvolvimento do pensamento na Argentina. E ainda em Buenos Aires, com o retorno da democracia em 1983, assumiu a cátedra de Literatura Argentina na UBA, mudando para sempre a forma de ler autores como Jorge Luis Borges, Manuel Puig e Juan José Saer.
 
Sarlo escolheu a periferia como metáfora para compreender a literatura de Borges, reincorporando a dimensão local que as leituras universalistas, depois da fama no exterior, apagavam. A margem, explicava, era a condição periférica que permitia ao escritor argentino tratar com irreverência toda a cultura ocidental. E a periferia foi também o seu método e a sua sensibilidade: tinha um olhar inigualável para detectar no seu instante germinal as ideias que mais tarde se tornariam tendência, como fez com as teorias de Raymond Williams, Frederic Jameson ou Edward Said, mas as utilizava, mais cedo ou mais tarde, para tentar entender o verdadeiro objeto de sua obsessão: a Argentina. A margem também era sua maneira de se posicionar intelectualmente: escrevia suas intervenções para a revista Viva enquanto preparava as aulas magistrais que daria em Cambridge; discutia literatura, música ou política em uma festa ou em um programa de televisão no horário nobre com a mesma paixão e falta de condescendência com que fazia em suas aulas na UBA.
 
É difícil fazer justiça a uma vida tão intensa em poucas palavras. Sarlo vive não apenas em seus quase trinta livros e em seus inúmeros artigos em periódicos acadêmicos e populares, em jornais nacionais e internacionais, mas também em centenas de entrevistas, em aulas gravadas e transcritas, em aparições memoráveis ​​na televisão, em memes. Também vive em seus discípulos, que ensinam e discutem sua obra nas universidades argentinas e latino-americanas, mas também nas mais importantes dos Estados Unidos e da Europa. Beatriz Sarlo é uma das intelectuais de língua espanhola mais influentes do mundo há muitas décadas. O leitor poderá fazer sua própria pesquisa. Aqui gostaria de me deter em algo que considero uma característica definidora de sua personalidade: a permanente juventude.
 
Embora a divisão em fases (período juvenil, fase adulta, maturidade) seja sempre uma arbitrariedade da crítica, quer se trate de um músico, de um pintor ou de um intelectual, no caso de Sarlo é simplesmente impensável: nem as suas ideias nem a sua atitude política respondem a uma teleologia clara; elas vêm e vão, se contradizem, se discutem entre si. Sempre foi o presente que ditou sua agenda, não por um desejo de estar na moda, mas por uma mistura exata de humildade intelectual e coragem. Humildade para aceitar que no presente, por mais medíocre que pareça, algo novo sempre pode surgir; coragem de analisá-lo simultaneamente, sabendo que suas explicações estariam erradas ou, pelo menos, poderiam ser melhoradas.
 
Sem se identificar explicitamente com o feminismo, aos 17 anos foi morar sozinha em uma Argentina ainda muito conservadora. Confessou publicamente ter realizado abortos quando o aborto estava longe de ser legal. Ela se aproximou e se afastou e se aproximou novamente do peronismo; na década de 1970, militou no Partido Comunista Revolucionário (PCR), que foi inicialmente responsável pelo financiamento da Punto de Vista. Editou e distribuiu clandestinamente a revista durante a ditadura militar, mesmo depois que toda a diretoria do Partido foi assassinada. Admitiu, nessa mesma revista, uma vez restituída a democracia, os erros da sua geração (“Aprendemos dolorosamente que pedir o impossível não implicava alcançar o possível, mas, em geral, o oposto”) e comprometeu-se publicamente com cada figura política que encarnara, ainda que imperfeitamente, o liberalismo de esquerda que promoveu até sua morte, desde Raúl Alfonsín até Elisa Carrió.
 
Seu amor pelas vanguardas estéticas, mostrada em livros como Modernidade periférica (1988) ou La imaginación técnica (1992), nunca a fizeram perder de vista o consumo popular, que ela analisa em livros como El imperio de los sentimientos (1985) ou A paixão e a exceção (2003). Dessa forma, negociava sua afinidade por intervenções estéticas disruptivas com aquelas que eram massivamente aceitas, ou seja, o presente desejado com o presente real. Conseguiu, inclusive, impor uma ordem sobre a outra, ao instalar, por exemplo, a prosa árida de Saer no cânone literário nacional, ou ao reconhecer cedo as virtudes literárias de Selva Almada, que hoje é recomendada até por Dua Lipa.
 
Embora, como disse antes, Beatriz Sarlo fosse acima de tudo uma apaixonada pela Argentina, sua carreira intelectual sempre foi hostil ao nacionalismo. Em seu livro autobiográfico Viagens: da Amazônia às Malvinas, ela confessa que o desembarque do exército argentino nas Ilhas Malvinas, que daria início à guerra com a Inglaterra em 1982, foi um dos acontecimentos mais traumáticos de sua vida política durante a última ditadura militar. A sua posição contra a tomada das ilhas “significava fazer parte de um grupo quase invisível”. O apoio da sociedade argentina a essa aventura delirante foi praticamente unânime: o ditador Galtieri discursou em uma das mais lotadas praças de Maio guardadas na memória; os líderes dos partidos políticos, com algumas exceções, se pronunciaram no mesmo sentido; vários exilados pela mesma ditadura que executou a operação (também responsável pelo assassinato de muitos de seus companheiros de viagem) assinaram documentos que, apesar de todas as suas reservas, apoiavam a causa nacional. “Nunca me senti tão distante do país onde vivia como naqueles meses em que tudo foi eclipsado pela ilusão de que, guiada pela ditadura, a Argentina estava derrotando a Grã-Bretanha. Essa fantasia coletiva era meu pesadelo”, escreve Sarlo, e com essa declaração ela replica o título do capítulo do livro, “Uma estrangeira nas ilhas”.
 
A causa das Malvinas fez dela uma estrangeira em seu próprio país; as ilhas, que visitou em 2013 para cobrir o referendo em que 99% dos habitantes votaram a favor de pertencer à Grã-Bretanha, lhe deram a experiência de ser uma estrangeira no próprio território que era reivindicado como seu. Sarlo viaja pelas ilhas como um fenomenólogo que analisaria as experiências sensoriais, tentando deixar de lado seus preconceitos, vendo quais deles poderiam ser identificados com seu país. A paisagem, é verdade, lembra a Patagônia. As homenagens aos militares argentinos mortos a sensibilizaram. E, no entanto, as ilhas parecem-lhe estrangeiras pela sua língua, pela sua cultura, pela sua demografia e pelos seus costumes: “Não falo da sua soberania, mas daquilo que constrói, dia a dia, aquilo que aprendemos a valorizar: a densidade da vida cotidiana”.
 
No entanto, a jornada terá um ponto de virada. Durante sua estadia, Sarlo ficou hospedada na casa de uma família local, suspeitando que isso lhe daria uma visão privilegiada do ponto de vista dos moradores da ilha sobre o referendo. A atitude evasiva das filhas de Joost, seu anfitrião, que desviavam a conversa toda vez que a escritora tentava conduzi-la ao seu objeto de interesse, tornava essa pretensão ilusória. Na antepenúltima noite nas ilhas, no entanto, quando jánão tinha mais expectativas sobre os habitantes da casa, a sogra de Joost, que estava de visita, lhe ofereceu “sem querer ou talvez astutamente, a melhor história”. Ann Chiswell estava bebendo um martini quando Sarlo voltou para casa depois de um dia de trabalho. A conversa que tiveram imediatamente trouxe uma lembrança, ainda que imprecisa, um eco muito distante: “Eu não conseguia me separar dos sons que Ann fazia e apenas seguia o que ela dizia como se estivesse acontecendo em segundo plano, um plano menos importante”. A mudança repentina de língua interrompe abruptamente esse distanciamento: “Diga-me, de que bairro você é?”, pergunta a inglesa, e a frase se torna uma epifania: “Como se alguém tivesse me esclarecido, entendi tudo”. O eco distante era de sua infância:
 
“Ann falava inglês com o mesmo sotaque das minhas professoras na Belgrano Girls’ School, o acento do inglês de Belgrano, um pouco arcaico, hipercorreto, onde nenhum som se perdia e tudo era nítido e claro. E o espanhol que usou para me fazer a pergunta também era o espanhol antigo de Belgrano, daquelas famílias de origem britânica, cujas filhas transitavam entre duas culturas enquanto ensinavam a língua dos avós.”
 
Naquele lugar remoto do planeta onde se sente uma estrangeira, Beatriz Sarlo ironicamente se reconecta com as vozes de sua infância. A sogra do ilhéu que a hospedou tinha sido aluna da mesma escola onde passou os seus primeiros onze anos de educação e falava inglês e espanhol de Belgrano, “duas línguas mortas que foram revividas para mim em Stanley”.
 
Embora o relato tenha um tom nostálgico, e embora a nostalgia não tenha escapado às suas reflexões (analisando Dom Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes, escreve: “A nostalgia tem dois objetos: uma idade perdida do ponto de vista biográfico; um mundo social que desapareceu”), Sarlo não a exercitava. Em uma das últimas entrevistas que deu, alguns meses antes de morrer, em um canal de streaming, disse: “A nostalgia é um sentimento que desconheço. Sei que eu fui jovem, sei que fui muito feliz no campo quando era menina, mas o cavalo tobiano que eu montava não existe mais. Não vou chorar pela falta de um cavalo”. Não surpreende a indiferença para com este sentimento em alguém que sempre escreveu não para explicar, mas para entender. Não surpreende, tampouco, que ele tenha partido sem entender: isso atentaria contra sua característica mais marcante, a permanente juventude. 


* Este texto é a tradução livre de “Beatriz Sarlo: la juventud permanente”, publicado aqui, em Letras Libres.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A Sibila, de Agustina Bessa-Luís

Marina Colasanti

Boletim Letras 360º #621

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #611

Boletim Letras 360º #620