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Santa Teresa D'Ávila. Pintor desconhecido. |
1 A obra escrita de Santa
Teresa d’Ávila é literária? Mas o que significa literatura?
Terminologicamente falando,
literatura,
com o perfil que hoje damos por certo em suas variadas acepções, é um termo que
só tem vigência de dois séculos, o XIX e o XX, mas que ainda não existia como
tal no século XVIII e que está sendo hostilizado em suas fronteiras nestes
começos do século XXI.
No século XVIII falava-se de “poesia”
com o termo aristotélico que significa criação ou recriação: “à recriação feita
com palavras ocorria — segundo Aristóteles — que não tinha em seu tempo um nome
particular” e, assim, sem nome particular foi sobrevivendo século a século o
fato e a disciplina que o estudava — a
Poética.
A difusão da Galáxia Gutenberg,
que havia propiciado a proliferação do livro e o surgimento do jornalismo,
também propicia que nos fixemos no caráter de escrito que tem agora o suporte
de toda criação feita com palavras e que a denominemos assim por metonímia.
Ninguém pensará, no entanto, que o
feito humano que está por trás da literatura é igualmente temporal e perecível.
Não, mas que haja pessoas que gostam de criar histórias ou transmitir
sentimentos e que haja outras que gostem de ouvir essas histórias ou que nos
transmitam esses sentimentos é algo que pertence ao eterno do ser humano e
salta de cultura em cultura. Por isso, por exemplo, podemos empregar sem nos
incomodar o oxímoro “literatura oral” e podemos ter convertido em “literatura”,
já nos séculos XIX e XX, toda a “poesia”, desde a
Ilíada até os nossos
dias.
Mas a criação literária de contar
histórias e transmitir pensamentos se concretiza a partir daqui em um modo
específico de comunicação: começa em um autor ou autora (não em qualquer um)
que codifica uma mensagem especialmente elaborada para este fim e precisa ser
reconhecida como tal pelo leitor. E o caso é que Santa Teresa d’Ávila não se
reconhecia como “autora”.
Eu não acredito que Santa Teresa
se enganasse a si mesma sem querer. Ocorre, em vez disso, que a riqueza de sua
personalidade, a vivacidade de sua linguagem natural, o interesse que desperta
um ser humano tão autêntico converte em literatura (“semiotiza” como
literatura) o que quem escreve nunca pretendeu que fosse. Em casos
excepcionais, os leitores acabam por admitir como autor quem nunca quis ser e a
falta de elaboração, a simplicidade e naturalidade do estilo são aceitas como “estilo”
peculiar (um grau zero) que cativa por estar em sintonia com o que se diz e com
quem diz. Não é coisa frequente, mas Santa Teresa não é caso único, embora seja
singular.
2 Mas é possível considerar
literatura um tratado de oração?
Depende. Pedro Sainz Rodríguez
inventariou mais de quatrocentas obras espanholas desde a Idade Média até o
século XVIII que classificou como literatura
ascética ou
mística
em virtude de características que correspondem a uma sistematização externa de
teologia espiritual na qual caberia incluir tematicamente esses textos.
Trata-se de obras que contam as experiências espirituais de seus autores ou
instruem sobre o cultivo da vida do espírito.
Como no caso de
Livro da vida
de Santa Teresa de Jesus, pela qualidade de seu conteúdo ou pela amenidade de
sua forma, encontramos um conjunto que pode ser inventariado como um gênero
literário, além de que formalmente podem ser incluídos muitas vezes nas seções
de
coleção de máximas,
autobiografia,
poesia lírica ou
relato.
É de notar que ninguém continuou o
inventário dessas obras a partir do século XVIII. Em parte se deve ao fato de
que começaram a proliferar textos mais teológicos do que religiosos, ou seja,
mais diretamente relacionados com o gênero expositivo do tratado filosófico do
que com o gênero literário. Ocorre também, sem dúvida, que a crítica literária
da época moderna prestou menos atenção a esse tipo de escritos, pelo que se
pode aventurar sem temor de errar que existem muitos textos desse tipo sem
investigação literária, mesmo possuindo a mesma ou maior categoria estética que
os registrados por Sainz Rodríguez.
A obra de Santa Teresa d’Ávila
liga-se a fontes que se alojam sem dúvida também no cânone literário: em
primeiro lugar, as
Confissões de Santo Agostinho (lida por Teresa na
edição salmantina de 1554), origem do gênero autobiografia e inspiração
explícita do
Livro da vida. Além de frei Bernardino de Laredo
(1482-1540),
Subida ao Monte Sião (1535); frei Francisco de Osuna
(1497-1540),
Terceiro Abecedário Espiritual (1525-1527); São João de
Ávila (1500-1569),
Audi, filia (1556); São Alonso de Orozco (1500-1591),
Epistolário cristão (1567).
E essa linha de fontes continua na
série em que a “fonte” é a obra de Teresa: assim, a biografia romanceada de
Marcelle Auclair (1899-1983),
La vie de Sainte Thérèse d’Avila. La dame
errante de Dieu (Paris, Seuil, 1950), e muitos outros livros literários bem
recentes.
Lembremos agora o diálogo
dramático de Juan Mayorga,
La lengua en pedazos, estreado em 2011 e
representado depois no teatro Fernán Gómez de Madrid; o romance de Jesús
Sánchez Adalid,
Y de repente, Teresa (2014); a reedição de
Teresa de
Jesús, Una mujer extraordinaria, de Cathleen Medwick, (2014); a obra de
Espido Freire,
Para vos nací. Un mes con Teresa de Jesús (2015), ou o
estudo de Clara Janés em
Santa Teresa de Jesús. Poesía y pensamiento.
Antología (2015) e, finalmente para esta relação,
Malas palabras de
Cristina Morales (2015); sem falar de impactos mais ou menos indiretos como os
reconhecidos em Thomas Hardy,
Tess la de los d’Urberville (1871), o
prólogo de George Eliot a
Middlemarch, e assim por diante: Truman
Capote,
Súplicas atendidas; Simone de Beauvoir,
O segundo sexo;
Edith Stein.
O
Livro da vida será, como
é, uma conta de consciência, um tratado de oração ou o que se queira, mas
ninguém duvida de que também é uma obra imprescindível do cânone literário em
espanhol.
3 Em todo caso, destinado a
desaparecer com o resto da literatura?
Alguns agourentos vêm dizendo nas
últimas décadas que a literatura desaparecerá acossada pelo fenômeno
cibernético. Quando se começou a difundir o vídeo doméstico, também houve quem
anunciou a desaparição do cinema, o que evidentemente não chegou a ocorrer. É
certo que o número de espectadores diminuiu de modo notável, mas também é certo
que se recategorizou o fato de sair para ver um filme. Uma coisa é deitar-se no
sofá ao fim de um dia de trabalho e contemplar sonolento o filme que passa na
televisão e outra é sair à rua para cumprir uma atividade, normalmente
integrada em um plano mais amplo, na qual nossa atitude de espectador será mais
voluntária e mais ativa. A incidência da tecnologia diversificou as opções, mas
a do “cinema” de antes continua aí, minoritária, mas com mais entidade.
Já ao longo do século XX, o
desenvolvimento dos meios audiovisuais colocou um radical questionamento à
literatura, a qual se viu incrementada de maneira notável no final do século XX
e início do XXI pela revolucionária incidência das novas tecnologias.
Em setembro de 2003, eu ministrava
um curso na Universidade de Porto Rico e vieram me convidar para uma
conferência em um ateneu. “Trata-se de um público não especializado — me
disseram. Convém que aborde um tema geral”. “Posso falar de como se comenta um
romance?”, inquiri. “Ah, quer falar de televisão. Está bem”. Para meus
interlocutores, o termo “romance” sem mais explicações significava telenovela e
seria, ao contrário, a referência ao suporte livro que estaria necessitada de
explicitação.
O cinema (o vídeo) e a televisão,
de fato, muitas vezes substituíram com vantagem a ação de ler um livro em que
se nos conta uma história. As crianças de hoje consomem desenhos animados e
filmes desde a mais tenra infância. Para elas, a antiga literatura oral dos
contos narrados por sua avó está longe de ser coisa natural.
Como se sabe, esses anúncios
apocalípticos de desaparição da literatura estão frequentemente baseados no
fato de que a médio ou longo prazo a leitura digital ganhará terreno em
detrimento da leitura do livro de papel e se imporá quase com certeza nas gerações
que terão aprendido a viver com uma tela diante dos olhos ao mesmo tempo que a
caminhar e a falar. Mas está por demonstrar que resulte letal para a literatura
que se leia em tablet o texto de um clássico que a casa fabricante do
dispositivo eletrônico oferece junto com outros conteúdos que constituem o “pacote”
promocional.
O fato de alguém ler em
e-reader
um livro enquanto viaja no transporte público não o converte em um novo tipo de
leitor, propriamente falando. Claro que isso não tem nada a ver com a nova
concorrência surgida para a literatura e que se chama “ciberliteratura”: um
novo paradigma que dá lugar à leitura que salta de ícone em ícone e que,
realmente, não integrará a literatura, ao contrário do que a “literatura” fez
com a “poesia”, já que, de fato, como eu disse, toda “poesia” se converteu em “literatura”
sem mais. Restará provavelmente uma nova restrição de tempo disponível para a
leitura literária que se somará às mencionadas, provenientes do rádio, do
cinema, da televisão ou do vídeo.
Mas termine como termine a
concorrência de que estamos falando, não afetará de modo especial a vitalidade
do livro de Santa Teresa d’Ávila. E se falamos da permanência de sua obra por outros canais de expressão, não só
chama a atenção sua continuidade na história com as pinturas de Rubens ou de
Ribera, mas também a escultura de Bernini,
Êxtase de Santa Teresa (1647), que
se encontra na igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma, se replica hoje nas ruas
de Nápoles por obra do grafiteiro Banksy; Rey Loriga oferece como roteiro,
Teresa:
corpo de Cristo; Jorie Graham fala de
Breakdancing; e Sonic Youth
apresenta a canção
Theresa’s sound world (1993). Há quem ofereça mais?
Quanto ao cinema e à televisão,
desde o filme
Teresa de Jesús, dirigido por Juan de Orduña em 1961 (com
excelente representação de Aurora Bautista e José Bódalo), até a memorável
série de Josefina Molina na TVE, onde Concha Velasco desempenha o papel de sua
vida a propósito de um texto cuja assessoria colaborou eficazmente como
especialista Víctor García de la Concha, a capacidade fílmica do relato de
Santa Teresa d’Ávila está assegurada.
Trad. Marcelo Musa Cavallari
424 p.
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