A obra literária de Santa Teresa d’Ávila

Por Miguel Ángel Garrido Gallardo


Santa Teresa D'Ávila. Pintor desconhecido.


 
 
1 A obra escrita de Santa Teresa d’Ávila é literária? Mas o que significa literatura?
 
Terminologicamente falando, literatura, com o perfil que hoje damos por certo em suas variadas acepções, é um termo que só tem vigência de dois séculos, o XIX e o XX, mas que ainda não existia como tal no século XVIII e que está sendo hostilizado em suas fronteiras nestes começos do século XXI.
 
No século XVIII falava-se de “poesia” com o termo aristotélico que significa criação ou recriação: “à recriação feita com palavras ocorria — segundo Aristóteles — que não tinha em seu tempo um nome particular” e, assim, sem nome particular foi sobrevivendo século a século o fato e a disciplina que o estudava — a Poética.
 
A difusão da Galáxia Gutenberg, que havia propiciado a proliferação do livro e o surgimento do jornalismo, também propicia que nos fixemos no caráter de escrito que tem agora o suporte de toda criação feita com palavras e que a denominemos assim por metonímia.
 
Ninguém pensará, no entanto, que o feito humano que está por trás da literatura é igualmente temporal e perecível. Não, mas que haja pessoas que gostam de criar histórias ou transmitir sentimentos e que haja outras que gostem de ouvir essas histórias ou que nos transmitam esses sentimentos é algo que pertence ao eterno do ser humano e salta de cultura em cultura. Por isso, por exemplo, podemos empregar sem nos incomodar o oxímoro “literatura oral” e podemos ter convertido em “literatura”, já nos séculos XIX e XX, toda a “poesia”, desde a Ilíada até os nossos dias.
 
Mas a criação literária de contar histórias e transmitir pensamentos se concretiza a partir daqui em um modo específico de comunicação: começa em um autor ou autora (não em qualquer um) que codifica uma mensagem especialmente elaborada para este fim e precisa ser reconhecida como tal pelo leitor. E o caso é que Santa Teresa d’Ávila não se reconhecia como “autora”.
 
Eu não acredito que Santa Teresa se enganasse a si mesma sem querer. Ocorre, em vez disso, que a riqueza de sua personalidade, a vivacidade de sua linguagem natural, o interesse que desperta um ser humano tão autêntico converte em literatura (“semiotiza” como literatura) o que quem escreve nunca pretendeu que fosse. Em casos excepcionais, os leitores acabam por admitir como autor quem nunca quis ser e a falta de elaboração, a simplicidade e naturalidade do estilo são aceitas como “estilo” peculiar (um grau zero) que cativa por estar em sintonia com o que se diz e com quem diz. Não é coisa frequente, mas Santa Teresa não é caso único, embora seja singular.
 
2 Mas é possível considerar literatura um tratado de oração?
 
Depende. Pedro Sainz Rodríguez inventariou mais de quatrocentas obras espanholas desde a Idade Média até o século XVIII que classificou como literatura ascética ou mística em virtude de características que correspondem a uma sistematização externa de teologia espiritual na qual caberia incluir tematicamente esses textos. Trata-se de obras que contam as experiências espirituais de seus autores ou instruem sobre o cultivo da vida do espírito.
 
Como no caso de Livro da vida de Santa Teresa de Jesus, pela qualidade de seu conteúdo ou pela amenidade de sua forma, encontramos um conjunto que pode ser inventariado como um gênero literário, além de que formalmente podem ser incluídos muitas vezes nas seções de coleção de máximas, autobiografia, poesia lírica ou relato.
 
É de notar que ninguém continuou o inventário dessas obras a partir do século XVIII. Em parte se deve ao fato de que começaram a proliferar textos mais teológicos do que religiosos, ou seja, mais diretamente relacionados com o gênero expositivo do tratado filosófico do que com o gênero literário. Ocorre também, sem dúvida, que a crítica literária da época moderna prestou menos atenção a esse tipo de escritos, pelo que se pode aventurar sem temor de errar que existem muitos textos desse tipo sem investigação literária, mesmo possuindo a mesma ou maior categoria estética que os registrados por Sainz Rodríguez.
 
A obra de Santa Teresa d’Ávila liga-se a fontes que se alojam sem dúvida também no cânone literário: em primeiro lugar, as Confissões de Santo Agostinho (lida por Teresa na edição salmantina de 1554), origem do gênero autobiografia e inspiração explícita do Livro da vida. Além de frei Bernardino de Laredo (1482-1540), Subida ao Monte Sião (1535); frei Francisco de Osuna (1497-1540), Terceiro Abecedário Espiritual (1525-1527); São João de Ávila (1500-1569), Audi, filia (1556); São Alonso de Orozco (1500-1591), Epistolário cristão (1567).
 
E essa linha de fontes continua na série em que a “fonte” é a obra de Teresa: assim, a biografia romanceada de Marcelle Auclair (1899-1983), La vie de Sainte Thérèse d’Avila. La dame errante de Dieu (Paris, Seuil, 1950), e muitos outros livros literários bem recentes.
 
Lembremos agora o diálogo dramático de Juan Mayorga, La lengua en pedazos, estreado em 2011 e representado depois no teatro Fernán Gómez de Madrid; o romance de Jesús Sánchez Adalid, Y de repente, Teresa (2014); a reedição de Teresa de Jesús, Una mujer extraordinaria, de Cathleen Medwick, (2014); a obra de Espido Freire, Para vos nací. Un mes con Teresa de Jesús (2015), ou o estudo de Clara Janés em Santa Teresa de Jesús. Poesía y pensamiento. Antología (2015) e, finalmente para esta relação, Malas palabras de Cristina Morales (2015); sem falar de impactos mais ou menos indiretos como os reconhecidos em Thomas Hardy, Tess la de los d’Urberville (1871), o prólogo de George Eliot a Middlemarch, e assim por diante: Truman Capote, Súplicas atendidas; Simone de Beauvoir, O segundo sexo; Edith Stein.
 
O Livro da vida será, como é, uma conta de consciência, um tratado de oração ou o que se queira, mas ninguém duvida de que também é uma obra imprescindível do cânone literário em espanhol.
 
3 Em todo caso, destinado a desaparecer com o resto da literatura?
 
Alguns agourentos vêm dizendo nas últimas décadas que a literatura desaparecerá acossada pelo fenômeno cibernético. Quando se começou a difundir o vídeo doméstico, também houve quem anunciou a desaparição do cinema, o que evidentemente não chegou a ocorrer. É certo que o número de espectadores diminuiu de modo notável, mas também é certo que se recategorizou o fato de sair para ver um filme. Uma coisa é deitar-se no sofá ao fim de um dia de trabalho e contemplar sonolento o filme que passa na televisão e outra é sair à rua para cumprir uma atividade, normalmente integrada em um plano mais amplo, na qual nossa atitude de espectador será mais voluntária e mais ativa. A incidência da tecnologia diversificou as opções, mas a do “cinema” de antes continua aí, minoritária, mas com mais entidade.
 
Já ao longo do século XX, o desenvolvimento dos meios audiovisuais colocou um radical questionamento à literatura, a qual se viu incrementada de maneira notável no final do século XX e início do XXI pela revolucionária incidência das novas tecnologias.
 
Em setembro de 2003, eu ministrava um curso na Universidade de Porto Rico e vieram me convidar para uma conferência em um ateneu. “Trata-se de um público não especializado — me disseram. Convém que aborde um tema geral”. “Posso falar de como se comenta um romance?”, inquiri. “Ah, quer falar de televisão. Está bem”. Para meus interlocutores, o termo “romance” sem mais explicações significava telenovela e seria, ao contrário, a referência ao suporte livro que estaria necessitada de explicitação.
 
O cinema (o vídeo) e a televisão, de fato, muitas vezes substituíram com vantagem a ação de ler um livro em que se nos conta uma história. As crianças de hoje consomem desenhos animados e filmes desde a mais tenra infância. Para elas, a antiga literatura oral dos contos narrados por sua avó está longe de ser coisa natural.
 
Como se sabe, esses anúncios apocalípticos de desaparição da literatura estão frequentemente baseados no fato de que a médio ou longo prazo a leitura digital ganhará terreno em detrimento da leitura do livro de papel e se imporá quase com certeza nas gerações que terão aprendido a viver com uma tela diante dos olhos ao mesmo tempo que a caminhar e a falar. Mas está por demonstrar que resulte letal para a literatura que se leia em tablet o texto de um clássico que a casa fabricante do dispositivo eletrônico oferece junto com outros conteúdos que constituem o “pacote” promocional.
 
O fato de alguém ler em e-reader um livro enquanto viaja no transporte público não o converte em um novo tipo de leitor, propriamente falando. Claro que isso não tem nada a ver com a nova concorrência surgida para a literatura e que se chama “ciberliteratura”: um novo paradigma que dá lugar à leitura que salta de ícone em ícone e que, realmente, não integrará a literatura, ao contrário do que a “literatura” fez com a “poesia”, já que, de fato, como eu disse, toda “poesia” se converteu em “literatura” sem mais. Restará provavelmente uma nova restrição de tempo disponível para a leitura literária que se somará às mencionadas, provenientes do rádio, do cinema, da televisão ou do vídeo.
 
Mas termine como termine a concorrência de que estamos falando, não afetará de modo especial a vitalidade do livro de Santa Teresa d’Ávila. E se falamos da permanência de sua obra por outros canais de expressão, não só chama a atenção sua continuidade na história com as pinturas de Rubens ou de Ribera, mas também a escultura de Bernini, Êxtase de Santa Teresa (1647), que se encontra na igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma, se replica hoje nas ruas de Nápoles por obra do grafiteiro Banksy; Rey Loriga oferece como roteiro, Teresa: corpo de Cristo; Jorie Graham fala de Breakdancing; e Sonic Youth apresenta a canção Theresa’s sound world (1993). Há quem ofereça mais?
 
Quanto ao cinema e à televisão, desde o filme Teresa de Jesús, dirigido por Juan de Orduña em 1961 (com excelente representação de Aurora Bautista e José Bódalo), até a memorável série de Josefina Molina na TVE, onde Concha Velasco desempenha o papel de sua vida a propósito de um texto cuja assessoria colaborou eficazmente como especialista Víctor García de la Concha, a capacidade fílmica do relato de Santa Teresa d’Ávila está assegurada.

4 Vigência da obra literária teresiana
 
O Livro da vida e o resto da obra literária de Santa Teresa enfrentam em cada comemoração o perigo de todo clássico: as camadas de verniz que se vão adicionando para abrilhantá-lo podem terminar por desfigurá-lo até o extremo. O historiador progressista afirmará que a preocupação pelos “pontos de honra” tem a ver com a condenação que havia sofrido seu avô por criptojudeu, o filólogo com ânsias hermenêuticas decodificará a simplicidade de sua linguagem (e até suas faltas de sintaxe) como uma artimanha para se desligar desse estigma, aparecendo como cristã ignorante e não culta judaizante, o crítico desconstrucionista a apontará como feminista avant la lettre, atribuindo-lhe impossível carga irônica quantas vezes desconfia de si mesma por se o que lhe acontece são “disparates de mulheres”.
 
Até mesmo o teólogo moderno afirmará como inspiração profética a descoberta de que “Deus está entre as panelas”, interpretando-o como um chamado à santificação do secular e não, como é, um louvor à obediência da pessoa consagrada que, fazendo o que lhe manda o superior, pode encontrar-se com Deus, mesmo que não seja no coro, até… nas panelas. O discurso laicista bobalhão chegará, enfim, a afirmar que Teresa, antes morta que simples, se adaptará à vida religiosa e aos modos de santa, tratará com Deus e enfrentará o demônio, como procedimento para “ser alguém” no século XVI em que tão fácil seria para uma mulher igual a ela terminar como um ninguém, uma mindundi, vá lá.
 
Na tripla intentio que se dá na comunicação literária, a intentio auctoris, o que o autor quis dizer, não deve ser substituída pela intentio lectoris, o que o leitor tem em mente. As discrepâncias se resolvem na intentio operis, o que o texto diz em seu contexto, seu cotexto e sua integridade. As obras de Santa Teresa devem ser lidas, como diria São João da Cruz, “com simplicidade de espírito” e assim, sim, serão entendidas cabalmente.
 
Em 1575, o padre Domingo Ibáñez escreveu um parecer, encomendado pela Inquisição, sobre o Livro da vida. E isso é o que ele disse: “Esta mulher, a julgar pelo seu relato, embora se enganasse em algo, pelo menos não é enganadora: porque fala tão claramente, bom e mau, e com tanta vontade de acertar, que não deixa dúvidas de sua boa intenção. E quanto mais razão há para que semelhantes espíritos sejam examinados (por ter visto em nossos tempos gente enganadora sob o pretexto de virtude), tanto mais convém amparar os que com a aparência parecem ter a verdade da virtude, porque é coisa estranha o quanto a gente fraca e mundana se alegra de ver desautorizados os que pareciam virtuosos. Deus queixava-se antigamente pelo profeta Ezequiel (c. 13) dos falsos profetas que imprecavam os justos e lisonjeavam os pecadores”.
 
Corriam, como quase sempre, tempos tempestuosos. E na Espanha de então não faltava fé em Deus, como agora, mas sobravam “iluminados” e falsos místicos. Existia a Inquisição que evitava que se proferisse qualquer convicção distinta da admitida, como hoje existe a nova Inquisição (o politicamente correto) que condena à morte civil quem se atreve a sustentar qualquer postura incompatível com a mentalidade dominante. Santa Teresa é uma mulher do século XVI e não de hoje. Sua leitura deve levar em conta essa obviedade.
 
Por exemplo, Santa Teresa não via novelas na televisão, mas lia romances de cavalaria. E isso a influenciava, como se vê nas formas do tão citado começo do Livro da vida: “Meus irmãos em coisa alguma me desajudavam a servir a Deus. Tinha um, quase da minha idade, que era aquele a quem eu mais queria, embora a todos tivesse grande amor e eles a mim. Juntávamo-nos ambos a ler a vida dos santos. Como via os martírios que, por Deus, as santas passavam, parecia-me comprarem muito barato o ir gozar de Deus e desejava muito morrer assim. Não pelo amor, que eu entendesse ter-Lhe, senão para gozar, tão em breve, dos grandes bens que lia haver no Céu. E tratava com este meu irmão do meio que haveria para isso. Combinamos ir a terra de mouros, esmolando por amor de Deus, para que nos decapitassem.” Por isso Santa Teresa se arrependia dessa perda de tempo, o que talvez agora não ocorre com os telespectadores de telenovelas.
 
5 Sua obra não se dirige apenas aos leitores do século XVI
 
A obra escrita por Teresa de Jesus figura com geral aceitação no cânone literário espanhol. Sua vigência não deriva do revelar uma inconformista de seu tempo nem uma feminista avant la lettre, mas porque nos situa ante um enorme ser humano autêntico que se compromete na relação com Deus e com os demais seres humanos. Algo assim tem um valor público e infinito. Sua obra não se dirige apenas aos leitores do século XVI nem aos de agora. Teresa é uma mulher para a eternidade.


______
Livro da vida
Santa Teresa d’Ávila
Trad. Marcelo Musa Cavallari
Penguin/ Companhia das Letras, 2010 
424 p.


* Este texto é a tradução livre de “La obra literaria de Teresa de Jesús”, publicado aqui, em Nueva Revista

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #623

Morte em pleno verão, de Yukio Mishima

A criação do mundo segundo os maias

Boletim Letras 360º #612

As planícies, de Gerald Murnane

Dez poemas e fragmentos de Safo