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Mostrando postagens de fevereiro, 2025

“Ninguém quer” e a reconstrução da masculinidade

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Por Rafael Kafka Me vejo numa mesa após me exercitar fisicamente e observo com atenção a conversa que os homens, todos mais velhos que eu, mantêm. Nesse espaço em geral eu cultivo a postura de ouvinte por ser um ambiente bem conservador e eu hoje preservar minha saúde mental. O diálogo gira em torno do fato de que hoje os homens não podem mais ser homens.   — Deram tanto direito às mulheres, são tantas coisas que não podem mais, que agora a gente não consegue mais chegar numa mulher sem medo de ser acusado de assédio.   Como alguém em celibato não me preocupo muito com essa questão. Mas lembro de que já passei por experiências em que ultrapassei os limites estabelecidos por uma pessoa do gênero feminino. A priori, eu não entendia bem qual era meu erro e foi preciso muito tempo de leitura e escuta empática para entender o que fiz.   Eu ouvia aquela fala angustiada de um conhecido e pensava em como eu era e em como ainda havia em mim resquícios daquele modo de ser. Pensa...

Para acabar com tudo, de Gonzalo Unamuno

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Por Pedro Fernandes Gonzalo Unamuno. Foto: Maxi Falla Muitas vezes a literatura lembra que o espírito de uma época não morre com o fim de uma era, aspectos variados se distendem e ocupam algum lugar nos tempos vigentes. E as transformações desse espírito também não estão circunscritas nas frágeis fronteiras de um povo mas são inerentes do humano, ainda que entre nós se manifestem de maneira consciente, propositada ou com a imprecisa rapidez.   Quanto da natureza primitiva dos primeiros homens se manteve na força incendiária dos gregos que passou às civilizações seguintes até nos alcançar e se imiscuir entre as nossas vidas cotidianas? Não é possível determinar, mas um ávido leitor conseguirá vislumbrar certas permanências no que para alguns é apenas um traço inerente a tempos pregressos.   Para acabar com tudo , de Gonzalo Unamuno, reaviva o tédio dos nossos dias, este que é sustentado em parte pela interminável espera da novidade, enquanto perscruta uma saída incendiária à ma...

O dinheiro e Cem anos de solidão

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Por Rubén Díaz Caviedes   Gabriel García Márquez queria que fosse feito um filme sobre O outono do patriarca , mas não queria que qualquer um o dirigisse. Tinha que ser feito por Akira Kurosawa. Sua determinação foi tanta que ele chegou a fazer a proposta pessoalmente durante uma longa conversa que os dois tiveram em Tóquio, em outubro de 1990, cujos trechos foram posteriormente publicados no Los Angeles Times . “Se você puder, quiser e tiver a ideia”, ele disse ao cineasta japonês, “pode fazer com esse livro o que quiser. Acho que o único que pode fazer cinema com esse livro é alguém como você, então faça o que quiser. Acho que é impossível adaptá-lo para o cinema. Repensá-lo como cinema em uma cultura completamente diferente, acredito sim que é possível, se for uma pessoa como você.”   O diretor de Às portas do inferno e Os sete samurais afirmou que ainda estava finalizando seu último filme, Rapsódia em agosto , e escapou da armadilha prometendo pensar um pouco sobre o as...

A cidade das mulheres, de Christine de Pizan

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Por Eduardo Galeno     Esses testaram o Horizonte — E desapareceram Pássaros antes de cumprir A Latitude.   Nossa Retrospectiva Deles Prazer pousado, Nossa Antecipação — Dúvida — Dado —   (Emily Dickinson) Christine de Pizan recebe a dama da Justiça. Iluminura do manuscrito A cidade das mulheres , de Genebra.   Frequentemente, as histórias sobre as mulheres são submetidas à intenção de corroborar genealogias do pensamento feminino. A cidade das mulheres ( La cité des dames ) confirma a tese. Desde o século XV, a autora vem sendo um marco para se notar a contribuição fora do cânone, ou seja, um plano que trace o pioneirismo de figuras não tão reconhecidas pela historiografia das letras. Christine de Pizan, assim como eu faço a partir do texto — tecendo sobre ela —, é uma historiadora da mulher. Bem, mas como? A partir do princípio de arqueologia de seus feitos, sejam fictícios ou reais. Aliás, sejamos claros: a maior característica da produção da veneziana ass...

M. F. K. Fisher: escrever por fome

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Por Bárbara Mingo Costales M. F. K. Fisher. Foto: Paul Harris “Foi então que descobri os gomos de tangerina secos. O prazer que me dão é sutil, voluptuoso e totalmente inexplicável. Só preciso explicar como os preparo.” Em seu livro Serve it Forth , de 1937, a escritora estadunidense M. F. K. Fisher parte do seu “secreto gosto” culinário pelos gomos de tangerina aquecidos em um aquecedor e depois deixados no frio fora de casa — Estrasburgo em sua memória. Eles devem ser consumidos logo em seguida. O capítulo, cheio de vivacidade, ocupa apenas três páginas; por um lado, há o enorme mérito de extrair setecentas palavras de algo tão modesto e, por outro, é surpreendente a capacidade de concentrar tamanha quantidade de informação e evocação em um espaço tão pequeno. Se nos desculparmos pela tediosa alusão à madeleine, uma associação com Proust não seria tão superficial quanto poderia parecer. Além do poder de um sabor mais ou menos cotidiano como gatilho para emoções evocativas, há a deter...

Sete poemas de “Poemas Sin Nombre” (1953), de Dulce María Loynaz

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Por Pedro Belo Clara         I.   Solidão, solidão sempre sonhada… Amo-te tanto que às vezes temo que Deus me castigue um dia enchendo-me a vida de ti… Ontem quis subir a montanha, e o corpo disse não. Hoje quis ver o mar, descer à luminosa enseada, e o corpo disse não. Estou desconcertada ante esta obscura resistência, esta inércia que me contrapesa a vontade não sei a partir de que lugar e me sujeita, me solda a invisíveis grilhões aos pés. Até agora palmilhei todos os meus caminhos sem nunca me dar conta de que eram justamente esses os pés que me levavam, e enchi-me de todas as paisagens sem nunca me aperceber se me entravam pelos olhos ou se as levava já comigo antes de se desenharem no horizonte, e nutri luzeiros, sonhos, almas, sem reparar que as minhas próprias veias se esvaziavam do seu próprio sangue. Agora pergunto-me que estrela virá a espremer-se gota a gota no coração exausto, que fonte haverá para lhe dar de beber como ao animal cansado… Pergunt...

Boletim Letras 360º #627

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DO EDITOR   Olá, leitores! Nesta semana concluímos duas atualizações importantes para o nosso projeto:   a) o nosso correio eletrônico mudou, agora, atendemos através do letrasinverso@gmail.com — salve nos seus contatos;   b) modificamos o nosso sistema de apoios, que passou a ser contínuo com sorteio de livros a cada grupo de seis apoiadores. Saiba todos os detalhes disso por aqui . Um excelente final de semana!   Imre Kertész. Foto: Olivier Mark LANÇAMENTOS   O regresso do mercado editorial brasileiro à obra do húngaro Imre Kertész .   Lançado originalmente em 1975, Ausência de destino é um dos grandes livros da literatura de testemunho do Holocausto. Escrito pelo húngaro Imre Kertész, Prêmio Nobel de Literatura, o romance é baseado na experiência do autor, que foi ele mesmo sobrevivente de campos de extermínio nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A obra estava fora de catálogo no Brasil e recebeu nova edição com tradução e posfácio de Paulo ...

Fiódor Dostoiévski diante do pelotão de fuzilamento

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Por Javier Memba A cerimônia de execução de Dostoiévski e outros condenados. Desenho de Boris Pokrovsky, 1849   No despontar do amanhecer de 22 de dezembro de 1849, Fiódor Dostoiévski, com oito camaradas do Círculo Petrachévski, foi colocado em uma carroça com destino à Praça Semiónovskova, em São Petersburgo. Aí os aguarda o pelotão de fuzilamento. O mais confiante dos nove réus está de bom humor, solta piada. Numa demonstração de coragem, ele observa que não é aconselhável chegar atrasado ao compromisso. Nem seus companheiros nem os soldados — aquele que conduz a carroça, os que guardam os condenados — acham graça. Fazer parte de um pelotão de fuzilamento é uma experiência tão triste que se recorrem aos batalhões penais ​​ para se conseguir fuziladores.   Na São Petersburgo de Nicolau I, é costume cobrir a cabeça dos prisioneiros para impedir de ver o último gesto dos carrascos para o condenado. Até os soldados mais veteranos, curtidos a sangue e fogo em mil batalhas, dizem...

Na colônia penal e a tríade da máquina: medo, castigo e veneração

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Por Juliano Pedro Siqueira   A novela Na colônia penal (1914) de Franz Kafka, trata-se de um texto curto, mas não menos denso em sua proposta crítica. Após um primeiro contato, certamente o leitor sairá impactado por mais um cenário kafkiano, cercado de absurdos e labirintos existenciais. Aliás, podemos dizer que se trata de uma narrativa terrivelmente perturbadora. Não diferente de outros trabalhos igualmente grandiosos, como O castelo e O processo . Em Na colônia penal , as poucas personagens que compõe a novela, cujos nomes não são mencionados, protagonizam o espetáculo de horrores em nome do poder. A trama inicia-se com a figura tirânica de um oficial, que discorre de forma deslumbrante a eficácia de uma máquina cuja finalidade é torturar insurgentes da lei local. A dita máquina, composta por três partes principais (cama, desenhador e rastelo), crivava marcas nos corpos dos castigados, inscrevendo-lhes sobre a carne, os crimes que cometiam.     Não estranho ao esti...