Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum

Por Henrique Ruy S. Santos


Milton Hatoum. Foto: Cairo Vasconcelos


 
O mito sempre foi a matéria-prima de Milton Hatoum. Com uma obra tão arraigada espacial e culturalmente na região Norte do Brasil, principalmente o Amazonas, o autor sempre se esquivou da pecha de regionalista — por vezes lançada a modo de ofensa por mentes fechadas e esteticamente conservadoras — ao recorrer aos ditos “temas universais” e, acima de tudo, a arquétipos narrativos e tropos clássicos sempre bem aproveitados: a rivalidade entre irmãos, as possíveis relações incestuosas, as fortes figuras maternas etc.
 
No melhor de sua produção (Relato de um certo oriente, Dois irmãos), o aproveitamento do conteúdo é sempre caracterizado pela paciência e pelo cuidado meticuloso com as vozes narrativas. O recurso hoje algo banalizado a diferentes narradores em um único romance, por exemplo, nas mãos de Hatoum é empregado não pela simples obtenção de efeitos-surpresa, mas pela criação de um painel de vislumbres, um mosaico de coisas nãos vistas e acontecimentos apenas pressentidos. Seus romances acabam sendo histórias-tabu ou de relações interditas, e sua força vem muito mais daquilo que se imagina e que permanece no campo do não visto.
 
Órfãos do Eldorado, de 2008, foi a primeira incursão do autor no formato menor da novela, forma porosa cujos limites conceituais são sempre movediços. No livro estão os traços que fazem de Hatoum uma das vozes mais literariamente relevantes no cenário da prosa brasileira do século XXI: a habilidade com que cria conflitos e dinâmicas domésticas explorando o que há de melhor na nossa tradição literária do século XX, ecoando as influências de Raduan Nassar e Autran Dourado, por exemplo; aliado a isso, o estilo de uma poesia enxuta, simples e que não força a nota.
 
A narrativa é conduzida em primeira pessoa por Arminto Cordovil, um homem velho tomado por louco pela população de Vila Bela, cidade à beira do Rio Amazonas. Sob a sombra de um jatobá, Arminto conta a um interlocutor que permanece obscuro a história de seus antepassados e a de seu amor angustiado por Dinaura, uma moça órfã que, após uma única noite de amor com Arminto, desapareceu sem deixar quase nenhum rastro. O pai de Arminto, Amando Cordovil, foi um homem abastado, negociante de borracha e castanha que enriqueceu durante os momentos mais fecundos da economia gomífera na região amazônica. Um homem marcado pela ambição e por uma desesperada viuvez que teve início por ocasião do nascimento de Arminto, motivo pelo qual a relação com o filho sempre foi tempestuosa. Este, por sua vez, nascido no meio de todas as facilidades que a relativa fortuna de seu pai podia proporcionar, sempre teve pouco tino para os negócios e uma inclinação para a vida relaxada e inconsequente. A única coisa que perseguiu com obstinação e verdadeiro interesse foi Dinaura, o que o leva, após a morte do pai, à dissolução de sua fortuna, de todo modo já prenunciada pela mudança dos tempos e pelo declínio da economia da borracha no início do século XX.
 
A relação entre Arminto e Dinaura é, de certo modo, o ponto central da narrativa, mas é o conflito entre pai e filho que concentra o que nela há de melhor: “Entre nós dois havia a sombra de minha mãe: o sofrimento que ele suportava desde a morte dela. Para Amando, eu era o algoz de uma história de amor” (Hatoum, 2022, p. 25). Na narrativa de Arminto, há constantes alusões a sombras e fantasmas, espectros do passado que interditam as relações, tornando-as permeadas pelo ódio, pelo medo e pela saudade. Cego pela ambição e pela perda da mulher, Amando Cordovil não consegue se conectar verdadeiramente com o filho. Arminto, “enfeitiçado” pelo amor que sente por Dinaura, torna-se igualmente egoísta e inepto afetivamente para com Florita — empregada do pai que, na ausência da mãe, cuidou dele desde a infância — e financeiramente para com os negócios deixados pelo pai. Dinaura é a ausência indesejada, silhueta que Arminto tenta ver em outros vultos; o pai é uma presença inarredável, que persiste, após a morte, nas armadilhas da hereditariedade.
 
“Os resmungos de Florita não me abalaram. Sem que eu percebesse, estava sendo tão teimoso e bruto quanto Amando Cordovil. Queria ser diferente, mas uma sombra do meu pai estava dentro de mim, como um caroço numa fruta podre. Eu teimava em ser a casca, queria ser jogado fora, e assim não faria dano a ninguém.” (Hatoum, 2022, p. 73)



Por se tratar de uma narrativa curta, mas que dá conta de toda a trajetória de uma vida, Órfãos do Eldorado, diferentemente de outras obras de Hatoum, prefere uma elaboração espacial mais aberta e ampla ao confinamento dos recantos familiares; episódios sumarizados à recriação de cenas marcantes. Arminto transita por Vila Bela, Manaus e Belém, e mesmo certos espaços particulares de importância para a narrativa, como o palácio branco construído por Amando Cordovil, carecem de uma geografia literária mais marcante. Essa ausência dos espaços domésticos é justificada pelo ponto de vista narrativo centrado em Arminto, cuja única paixão, como já se disse, foi Dinaura.
 
É essa espécie de obsessão com o paradeiro da mulher amada que constrói uma redoma dentro da qual até mesmo o peso histórico da época é sentido de maneira desinteressada. A Belle Époque amazônida propiciada pelos benefícios da economia da borracha, os impactos da primeira Grande Guerra na Europa sobre esta economia, nada disso é observado por Arminto com interesse. O protagonista, na tentativa de busca do amor perdido, resguarda-se a um espaço e a uma temporalidade míticas, encarnadas nas lendas indígenas que chamam sua atenção desde a infância.
 
E aqui retomo o fio com que iniciei este texto. Os mitos, que sempre fizeram parte da matéria-prima de Hatoum, figuram, em Órfãos do Eldorado, com uma faceta mais explícita, enraizada na cultura popular e indígena do Amazonas. A cidade de Eldorado, que muitos acreditam existir sob as águas, sociedade perfeita onde abundam as riquezas e as benesses e onde não há problemas nem conflitos, surge, na boca dos ribeirinhos e de homens que Arminto contrata para procurar Dinaura, como o possível paradeiro da mulher desaparecida, ela mesma também transformada em uma figura mágica:
 
“E então esperei Ulisses Tupi, famoso por encontrar saída nos labirintos dos nossos rios. Chegou de surpresa, barba tão crescida que escondia os olhos. Parecia outro. Jurou que Dinaura estava viva, mas não no nosso mundo. Morava na cidade encantada, com regalias de rainha, mas era uma mulher infeliz. Ele ouviu isso nas palafitas de beira de rio, nas freguesias mais distantes; ouviu de caboclos solitários, que vivem com suas sombras e visões. Dinaura foi atraída por um ser encantado, diziam. Era cativa de um desses bichos terríveis que atraem mulheres para o fundo das águas. E descreviam o lugar onde ela morava: uma cidade que brilhava de tanto ouro e luz, com ruas e praças bonitas. A Cidade Encantada era uma lenda antiga, a mesma que eu tinha escutado na infância. Surgia na mente de quase todo mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem escondidas num lugar encantado.” (Hatoum, 2022, p. 60)
 
A narrativa centraliza, assim, a relação entre história e mito, mas sem entrelaçá-los. A obra nunca abraça de vez o fantástico nem assume como tema imediato as iterações próprias do mitológico, optando, no lugar, por manter um certo paralelismo entre as diferentes esferas do sobrenatural e do social. O resultado é uma certa artificialidade da construção, que faz certas inserções do mágico soarem como simples injeção de “cor local”. O jogo com diferentes pontos de vista, que permitia, em outras obras, aquela elaboração fragmentada do enredo, aqui é substituído pelo relato único, verbalizado pelo protagonista, à maneira de um Riobaldo, a um passante que se abriga à sombra de um jatobá. No entanto, a condução narrativa, longe de evocar a espontaneidade oralizada do narrador rosiano, opta pelo relato contido e, até certo ponto, premeditado. Hatoum se esforça para manter viva na mente do leitor a ideia de que se trata de um narrador que oraliza sua história a um visitante desconhecido, mas o artifício nem sempre convence e dá origem a certas passagens que expõem de maneira incômoda o artifício: “No fim, eu soube de outras coisas, mas não adianta antecipar. Conto o que a memória alcança, com paciência” (Hatoum, 2022, p. 14).
 
Órfãos do Eldorado acaba sendo um livro em que se evidenciam certos defeitos de um autor que tateia os terrenos de uma forma nova. Uma certa tentativa exacerbada de enraizar a narrativa na cultura popular amazônica por vezes soa artificial, na medida em que se funda em paralelismos explícitos e recorrentes. O todo não fica prejudicado porque Hatoum mantém a sobriedade de estilo que tão bem o distingue, afinal Arminto é um personagem que, nas mãos de um prosador talvez menos comedido, poderia facilmente se tornar uma caricatura cultural e linguística. Não é o caso, o que demonstra que Hatoum, ainda que caia em algumas arapucas, é um escritor consciente dos ardis da escrita ficcional.


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Órfãos do Eldorado
Milton Hatoum
Companhia das Letras, 2008
112p.

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