Pelos mares do viver em “Condições ideais de navegação para iniciantes”

Por Vinícius de Silva e Souza


Natalia Borges Polesso. Foto: Ana Reis.


 
Natalia Borges Polesso é uma escritora experiente e influente e isso é um fato. Com uma carreira já bem consolidada, a autora nunca entregou algo fora de um escopo comum de estilo e temática — e com Condições ideais de navegação para iniciantes não é diferente. O que, por sinal, está bem longe de ser um demérito; é sempre um deleite vê-la em sua melhor forma: a das narrativas curtas.
 
Controle (2019) é um excelente romance de formação, assim como A extinção das abelhas (2021), um romance bastante experimental flertando com o distópico, um livro de seu tempo. Mas é nos contos que ela exerce melhor sua sensibilidade e pleno domínio narrativo, com um olhar singular e acolhedor para personagens e experiências constantemente escanteadas na literatura.
 
A autora já expressou algumas vezes a influência do conterrâneo Caio Fernando Abreu, autor aparentemente incontornável para sua geração, principalmente a de escritores gaúchos (sendo Carol Bensimon outro nome também abertamente herdeira do autor de Triângulo das águas). Em Condições ideais de navegação para iniciantes, essa influência se faz bastante presente, tanto em fundamentos (o signo da água como unificador das histórias) quanto em estilo, de maneira renovadora e atualizada, em diálogo assustadoramente próximo à sociedade e a realidade contemporâneas.
 
Com conto de abertura, “A descoberta dos metais”, a autora dá sequência ao seu livro anterior, Foi um péssimo dia (2023), ao narrar o cotidiano caótico e “fora do padrão” de uma menina e sua relação/ embate com as confusões do mundo adulto, do qual ela é incapaz de entender.
 
A linha tênue entre representar uma pessoa neurodivergente, outsiders, e ainda assim conseguir fazer um retrato, julgo, universal, permeia todo o livro anterior e transborda no início do livro agora lido. Muito além de uma menina com transtorno de ansiedade ou algo do tipo, Onça é apenas uma criança, sem saber lidar com o que sente e guarda no peito. E o conforto que encontra na cena final aquece seu coração e o nosso também.
 
A figura da infância volta no terceiro conto da antologia, “Tatuilha”, que evoca com bastante clareza a água como símbolo unificador, ao tratar do encontro de coração de um pai que não sabe lidar com o filho transgênero enquanto o filho descobre o pai como gay e o filho/neto presencia tudo, atento e alheio ao mesmo tempo.
 
Entre esses dois, “A vida é uma equação diferencial ordinária” salta para uma jovem adulta encarando sua própria vida de frente, após passar pela perda da avó. Com ecos de Frances Ha, o filme de Noah Baumbach, o título do conto é bastante apropriado e o recorte narrativo bem-feito — o diálogo e a relação entre as irmãs ao final são o ponto alto dessa narrativa: “possuía uma parte daquilo tudo. Ali soube que se precisasse ser onda, seria. Se precisasse ser areia, seria; se precisasse ser imensa, seria.”



Se em “A vida é uma equação diferencial ordinária” a protagonista cogita se atirar de um mirante mas é salva desses pensamentos por uma guarda municipal, em “Uma boa pessoa” o fim trágico se confirma: cansada e confusa emocionalmente, a protagonista se atira ao mar, afundando nas águas. Aqui, Natalia trabalha bem as turbulências dos relacionamentos amorosos, principalmente entre mulheres, com uma protagonista passiva que desperta igualmente compaixão e impaciência no leitor, em uma prosa sensível e profunda, com ares de fantasia contemporânea pela maneira como engendra o cotidiano.
 
Já o poético e singelo conto que dá título ao livro, me parece, dentre os onze que constituem a antologia, o mais próximo da literatura de Caio Fernando Abreu, retomando a figura central do infante e com o mar que engole ou é engolido.
 
No conto seguinte, “Eu não sei o que é o this do que os sweet dreams são feitos”, há um respiro de tantas águas, e uma abertura para as divagações que se aprofundam lentamente, oscilando com o prosaico encontrado no livro como um todo.
 
Mas “Temporal” voltou a me lembrar bastante Caio F. — especificamente o seu conto “Além do ponto”, de Morangos mofados (1982) — enquanto “Daphne ou o primeiro não” pareceu-me, novamente, um extra de Foi um péssimo dia, retomando o que há de melhor no livro anterior.
 
“Cratera”, um dos três últimos contos de Condições ideais de navegação para iniciantes, assusta por sua maturidade e encanto próprio, sendo o mais maduro e onírico de seus pares, parecendo nascer de um lugar distante dos demais.
 
Chama atenção o contraste do humor nas narrativas de “A Velha Asna e as lésbicas de motocicleta” e de “As gêmeas lentas”, os contos que encerram a coletânea. Se o primeiro utiliza diversos clichês do mundo lésbico para contar uma história com ares de paródia hollywoodiana, o último brinca com o quão inusitada a própria realidade pode ser. O mesmo nome em duas pessoas, o cisto que parece mais algo bom do que ruim. Curiosa a escolha da autora de batizar a personagem com seu próprio nome, alguns contos antes, e não aqui, quando o jogo ficaria ainda mais divertido.
 
O encerramento retoma o que há de melhor nas duzentas e poucas páginas deste maduro livro de Natalia Borges Polesso: o cotidiano visto por lentes transparentes e aprofundadas, a universalidade do que nos torna únicos.
 
A escritora, com sua escolha voluntária e corajosa de só utilizar personagens femininas e lésbicas, e agora de abordar neurodivergentes e transgêneros, conseguiu uma grandiosa façanha de falar de todos nós, com todos nós, para todos nós. Mesmo que repetitivo em alguns pontos, característica comum mesmo às mais exemplares coletâneas de contos, isso não incomoda, pois tal detalhe se ofusca no brilhantismo das histórias, cada uma personalizada à sua maneira.
 
Ao término de cada conto, tudo que tive vontade de fazer foi correr para escrever, para viver, preenchido meu coração de um ânimo e uma energia mobilizadora não inédita, mas rara. Ao fechar o livro, aberto e preenchido estava meu coração.


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Condições ideais de navegação para iniciantes
Natalia Borges Polesso
Companhia das Letras, 2024
232 p.

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