Só para ser do contra. Apesar do
que se diz nas redes sociais,
Emilia Pérez (2024) pretende ser um filme
musical sobre como o passado se impõe diante das boas intenções de uma pessoa
reformada: uma tragédia, portanto, que a princípio não busca anular os crimes
da protagonista nem alcançar sua redenção. Além disso, embora o diretor Jacques
Audiard tenha declarado não ter pesquisado o México antes de rodar um filme
sobre a catástrofe deste país, alguém o fez; caso contrário, como essa produção
francesa saberia sobre as caçambas de ferro velho, cujo som se torna uma canção
no início da trama? Concedidos alguns pontos aos seus defensores, agora me
sinto compelido a contradizê-los: bem escreveu T.S. Eliot: “Entre a ideia / E a
realidade / Entre o movimento / E o ato / Cai a sombra”. Nós, mexicanos, mais inclinados
para o provérbio, dizemos que do prato à boca, cai a sopa”. Que há uma tragédia
esboçada no filme e que há uma pesquisa sobre seus temas é palpável. Que
Audiard supere Ésquilo ou tenha um entendimento respeitoso de nossos mortos é
uma questão de perspectivas.
Emilia Pérez não me parece
um filme, mas um instrumento, mais ou menos como foi recentemente
Som da liberdade
(2023), ou nos anos quarenta
O judeu Süss (1940). Embora não seja um artefato projetado por políticos contra
seus inimigos (a elite evangélica atacando o liberalismo americano ou o nazismo
contra os judeus da Europa), é produto de um capitalismo que ativa suas defesas
para conter as reivindicações étnicas e sexuais do nosso século. Diante da
impotência de frear as reivindicações pela desigualdade produzida pelo
colonialismo europeu, o neoliberalismo contemporâneo — seu descendente —
desenvolveu a contraofensiva mais batida, mas eficiente que pôde imaginar: se
não é possível vencê-los, seduza-os. O filósofo estadunidense Olúfẹ́mi Táíwò escreve
há anos sobre como as elites têm integrado os discursos antirracistas para
apaziguar os dissidentes, em vez de resolver problemas de raiz que lhes
custariam mais caro. Hollywood é um exemplo perfeito: os executivos de sempre
(brancos, claro) produzem filmes escritos, dirigidos e protagonizados por
pessoas de ascendência africana ou asiática, mas levam a maior parte dos lucros
a partir de um simulacro.
O status quo e a cor dos investidores
permanecem os mesmos, mas fora se acredita que
Pantera Negra (
Black
Panther, 2018) exterminou o racismo. Apenas dois anos após aquele
lançamento avassalador, George Floyd, um cidadão afro-americano, foi
assassinado pela polícia de Minneapolis e sua morte desencadeou os protestos do
Black Lives Matter.
Ao incluir atrizes descendentes de
migrantes latino-americanos e colocar uma mulher trans no papel principal, Audiard,
um homem branco, heterossexual e europeu, explora as narrativas de pessoas
historicamente oprimidas para obter um benefício pessoal já inquestionável:
Emilia
Pérez ganhou dois prêmios no Festival de Cannes, acumulou 10 indicações ao Globo
de Ouro, das quais ganhou quatro, e é insinuada como favorita ao Oscar. Mesmo
que Audiard não tivesse planejado a exploração, como um vilão de desenho
animado, seu filme expressa, como qualquer outro, aquilo que o filósofo Fredric
Jameson chama de inconsciente político: cada narrativa é produto de uma
ideologia, saibam seus criadores ou não. Se, digamos,
Assassinos da Lua das
Flores (2023) representa os homens
brancos do condado de Osage matando suas esposas indígenas para herdar sua
riqueza, é evidente que o enfoque é anticolonial. Mas um filme não é apenas sua
trama: ao encontrar a comunidade Osage, Martin Scorsese mudou a perspectiva do
filme e incluiu seus anfitriões na produção. Uma de suas protagonistas, Lily
Gladstone, da nação Pés Negros, interpreta uma mulher Osage com a dignidade de Olivia
de Havilland. O que nos dizem a trama e a produção de
Emilia Pérez?
A história de Audiard começa
quando Rita (Zoe Saldaña), uma advogada mexicana cansada de defender
feminicidas, é contatada por um narcotraficante apelidado de Manitas (Karla
Sofia Gascón), que lhe oferece um contrato multimilionário em troca de ajudá-lo
a adquirir uma nova identidade de gênero. Graças à sua advogada, Manitas
consegue fingir sua morte, mandar sua família para a Suíça e renascer como Emilia
Pérez; no entanto, depois de alguns anos, ela deseja viver com sua esposa e
seus filhos no México, para o que volta a pedir a ajuda de Rita, que consegue
reunir a família nas Lomas de Chapultepec sem revelar a identidade original de
Emilia. Quando parece que tudo está resolvido, as agora amigas encontram-se em
um mercado com uma mulher que procura seu filho desaparecido. A partir desse
encontro, Emilia começa a ajudar as famílias afetadas pela guerra contra o
narcotráfico a encontrar aqueles que lhes foram arrebatados.
Descontextualizado e contado
assim, o filme soa inverossímil, simplório, mas relativamente inofensivo: a
fantasia de uma criança progressista em um concurso de contos sobre como fazer
um país melhor. Mas o contexto conta.
Emilia Pérez é produto de um
diretor que ganhou a Palma de Ouro por outra representação questionável da
alteridade,
Dheepan (2015). Naquele filme, um ex-combatente da guerra
civil no Sri Lanka descobre que a França não é o refúgio que esperava e acaba
envolvido na violência criminal. Antes disso, há
Um profeta (2009), com
o qual o diretor pretendia visibilizar os imigrantes árabes ausentes, segundo
ele, do cinema francês — representando-os como gângsteres. Parece que Audiard é
um cineasta bem-intencionado, mas ao mesmo tempo possuído pelos preconceitos da
Frente Nacional. Na melhor das hipóteses, deve ser aquele tio bonachão que não
tem problema em conviver com vietnamitas, apesar da derrota em Dien Bien Phu,
enquanto os chama, de forma amigável, de “chinesinhos”.
A produção, insisto, equivale à
obra: a importância do neorrealismo italiano e seus discípulos (a
Nouvelle
Vague francesa) está em como realizaram suas imagens, o que se traduziu na
técnica: a câmera ao ombro de
Acossado (1959) e sua montagem inusitada
são produto das condições precárias em que foi filmado e editado. A escolha,
então, de atrizes estadunidenses e uma espanhola para interpretar mexicanas em
Emilia
Pérez é sintomática da mentalidade na indústria francesa atual. Audiard
toma uma decisão com base em certa ideia do público; ou seja, troca as
identidades de quem merece narrar a história pelas presenças de quem pode
atrair o público. A exploração é resultado de uma decisão comercial que tem
repercussões políticas: a Europa, nos diz
Emilia Pérez, merece decidir
quem narra, e como, a brutalidade no México. Não é nada menos que o pensamento
do
apartheid, e por isso não surpreende que a consciência moral do filme
seja um médico israelense.
Há muitos anos, decisões
semelhantes, embora não iguais, eram tomadas no cinema de Luchino Visconti, que
contratou o francês Alain Delon e o americano Burt Lancaster para interpretar
italianos, mas também os cercou de um elenco local e contratou atores que
dublassem suas vozes em seu idioma. Além disso, tratava-se de um diretor
comunista italiano que filmava seu país e sua classe aristocrática; quando não,
Visconti pesquisava e incluía para não afetar a representação dos pobres, cujas
vicissitudes lhe preocupavam.
A terra treme (1948) não é apenas sobre os
pescadores sicilianos: é feita em colaboração com eles.
Mesmo que pensemos que o cinema
está desligado do mundo que o produz, como uma criança que nasce sem
necessidade de uma mãe, a pesquisa superficial da equipe de
Emilia Pérez
tem repercussões estéticas: algumas afetarão mais alguns públicos do que
outros, mas há aquelas que ultrapassam a fronteira cultural. Se no México os acentos
das protagonistas são insultantes, é porque a atuação é uma tentativa de emular
o real sem sê-lo; é um desdobramento em que os intérpretes adquirem os gestos —
a voz, inclusive — e os pensamentos de seus personagens para oferecer uma
imitação, uma imagem, que iluda o público. O acento dominicano de Saldaña;
espanhol, de Gascón, e americano, de Selena Gomez, não apenas demonstram que o
filme é feito com o norte global em mente; ou seja, que não se importa em
agradar ao público mexicano; também sugerem que não se importa em agradar,
ponto. Se os múltiplos sotaques e vozes de Tom Hardy ao longo de sua
filmografia foram expressões de disciplina histriônica aplaudidas pela crítica
e pelo público, por que os preguiçosos sons emitidos pelo elenco de
Emilia
Pérez significariam o contrário? Em todo caso, o choro sem lágrimas de Gomez
em uma cena deveria enterrar as dúvidas sobre seu compromisso como atriz.
Os diálogos de
Emilia Pérez
sugerem um interesse no léxico mexicano: “no mames”, “tengo un buen de trabajo”,
“este cabrón”, acompanham outras expressões colocadas à força para alcançar —
apesar dos acentos maltratados — certo grau de autenticidade, mas como pode
ser, se os personagens falam e agem como caricaturas. Isso nos leva de volta à
outra defesa de
Emilia Pérez, segundo a qual não se trata da redenção de
uma figura criminosa, mas de uma recaída trágica: perto do desfecho, Emilia
volta à violência porque Jessi (Gomez), sua esposa — inconsciente de que sua
anfitriã não é a prima de seu marido, mas a nova identidade de Manitas —,
decide se casar com um namorado e levar os filhos para morar com eles. Emilia
manda bater no amante e congela o dinheiro de Jessi, que a sequestra em
represália. Esse é todo o erro trágico de Emilia: ela se apaixona, mas não
volta a matar inocentes; ao contrário, devido a um momento de raiva, acaba
sendo torturada. Essa culminação se relaciona com o fato de que Audiard jamais
mostra Manitas cometendo um ato de violência; ao contrário, o captura sendo um
pai amoroso, um patrão exigente, embora pródigo, e uma alma mole que chora por
não poder se expressar como mulher. O cinema não se trata do que está escrito
em um roteiro, mas de como as imagens nos afetam: ver os crimes de Manitas e o
sofrimento que provocam dificultaria a empatia do público; tornaria o
personagem mais verossímil, mais humano, mas não é isso que Audiard deseja.
O maior problema para os
roteiristas de
Família Soprano (1999-2007), condicionados pelas
necessidades comerciais da televisão, era tornar o protagonista agradável para
não perder o público. Em uma decisão arriscada, recusaram-se a ocultar a
monstruosidade de Tony Soprano (James Gandolfini), e por isso enfatizaram o
equilíbrio: assim como é voraz e indiferente aos cadáveres que produz para
sustentar seu poder e sua vida hedonista, Tony é engraçado e pode chegar a ser
terno ou vulnerável; vítima, até, de seu círculo. Manitas, por outro lado, é
apenas uma vítima de seu entorno, e Emilia, uma santa que acaba celebrada em
uma procissão por seu anarcocapitalismo generoso: diante das limitações do
Estado mexicano, a multimilionária Emilia reúne a classe dominante para ajudar
as vítimas da violência. Um número musical protagonizado por Rita questiona
essa manobra ao considerar a hipocrisia de transformar dinheiro ruim em bom,
mas o tema se dilui imediatamente porque uma representação sofisticada
atentaria contra as necessidades dos produtores: a rentável complacência. A
ética de
Emilia Pérez está condicionada ao capital e produz um
maniqueísmo que faz a escrita fracassar. Não acho exagerado, então, denunciar a
santificação de uma figura destrutiva e ver nisso mais um item para a lista de
ofensas. Nem falar do essencialismo de gênero que assume a transição de uma
pessoa como uma transformação de caráter: Manitas, homem, é mau; Emilia,
mulher, é boa. Inclusive sugere-se que Manitas é cruel por ser uma mulher trans
incapaz de expressar sua identidade real; no entanto, as mulheres trans não costumam
ser as causadoras da violência na realidade, mas suas vítimas.
Se o melodrama exagerado e
moralista empobrece
Emilia Pérez, restaria ser um musical original,
subversivo. Jean-Luc Godard ou Apichatpong Weerasethakul fizeram filmes que se
beneficiam não dos recursos econômicos, mas dos imaginativos:
Uma Mulher é
uma mulher (1961) e
A aventura de Iron Pussy (2003) são
desconfortáveis pela forma como subvertem as expectativas do que faz um filme
musical, e se comprometem com estilos e temas marginais que confrontam o
público, em vez de apaziguá-lo através das convenções que já desfruta. Audiard,
por outro lado, apenas repete os clichês de qualquer videoclipe qualquer: a
câmera faz alguns movimentos agressivos, como dançando ao redor das
protagonistas; há cores chamativas e brilhos, coreografias. Nada escapa da
norma, nada encontra — nem sequer busca — algo a acrescentar ao dicionário das
imagens.
Até a música imita o pop
contemporâneo, especialmente quando canta Selena Gomez, e a gente se pergunta
por que canções sobre o cansaço com a injustiça são tão alegres. O compositor
polonês Krzysztof Penderecki fez um
Treno às vítimas de Hiroshima que
evoca o horror de ver uma luz inexplicável que vai arrasando casas, corpos, uma
cidade. Não é algo que se deseja ouvir para relaxar ou muito menos se divertir
porque fala de um crime. As músicas da cantora francesa Camille e do compositor
de cinema Clément Ducol não apenas atropelam o sofrimento mexicano, mas até
expressam seu imaginário colonialista em letras como uma que descreve, segundo
a filha de Emilia, o cheiro de Manitas: “Cheirava [...] a comida picante,
picante [...] a mezcal e guacamole”. Seu pai e sua agora tia cheiram a
estereótipo. Em outra, um ex-criminoso prestes a ser reabilitado pelo dinheiro
de Emilia celebra a educação à qual finalmente terá acesso: “Para aprender a
calcular que um e dois são três / Para limpar minha pele de tatuagens / Aqui
estou”. Os mexicanos somos, além de violentos, trogloditas que não sabemos
somar. Os erros — “dois e três” rima com “tátu-ájes” — já são o de menos:
correspondem a erros de montagem como aquele em que vemos o pé calçado de Selena
Gomez descer de um carro, mas três ou quatro planos depois, sem que ela se
abaixe para tirar os sapatos, já caminha sem eles.
Há algum tempo, para dimensionar
nossas circunstâncias, comparei os números de mortos devido à guerra contra o
narcotráfico no México e os da Guerra da Bósnia, que ainda comove a Europa. Não
é necessário citá-los porque não pretendo fazer uma competição nem são
circunstâncias totalmente comparáveis, mas, novamente, o contraste dá uma ideia
de nossa desolação. Diante de
Emilia Pérez, não posso deixar de me
perguntar, como outros fizeram nas redes sociais, o que aconteceria se um estadunidense
fizesse um musical leve, mal-feito, sobre um suboficial de Ratko Mladić que
matou pessoas em Srebrenica porque não podia expressar sua identidade de
gênero; sobre como fugiu, fez uma cirurgia e agora é santificado por suas
vítimas graças aos seus esforços para esclarecer os destinos de cada morto.
Como a Europa responderia ao ver que isso inspira música feita com cartuchos e
rifles de assalto, e coreografias de pessoas caindo mortas no chão? Colocariam
numa competição em Cannes? Premiariam nos César da França? Se a resposta fosse
sim, provavelmente seria porque as nações mais poderosas do continente não
consideram os Bálcãs como parte da Europa.
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