Por Eduardo Galeno
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Elizabeth Bishop. Foto: Yale Collection of American Literature. |
Só chegou a visitar o Norte em 1960, precisamente as cidades
que iam de Manaus até Belém, seguindo o percurso do rio Amazonas. Com sua
estadia como turista (autoexilada) na base, a maneira que Bishop exercitava a
matéria literária e a visão geográfica é diádica. Conseguiu emprestar esse
exílio ao acolhimento que a literatura, como significação, dá. Paralelo a isso,
planejou as figuras na função que encobre certos traços da sua rede psicológica
(não no moderno sentido de self, mas de pneuma, que estabelece a
correlação entre psique e soma).
As virtudes do prazer em “sair de casa” e as intempéries do
gozo da escrita se unificam. Logo logo, o investimento do pensamento surge e
algo passa a atuar sobre, meio consciente, meio inconscientemente. Aí a saída
física significaria uma entrada poético-textual. Mas a última sairia também como
abertura, se desenvolvendo pelos vacilos da vida e da urgência da conversa.
Creio fielmente na evasão do simbólico na cultura e, assim
sendo, creio, sem pestanejar, que o tipo de representação que ela trouxe às
vias da imaginação sobre um determinado espaço, que tem aqui de exemplo a
Amazônia, é salutar perante a universalização da leitura (entendida no processo
de transformação da experiência em letra). Vejamos a seguir.
A disposição da conjuntura dos textos sobre o tema abre um
leque que começa no mais pessoal, íntimo — no plano de montagem que a pessoa
Elizabeth incide (os seus afetos, dizendo exatamente) — e vai até a maior
distância possível, quase numa perspectiva em que ela própria não escreveu
aquilo ali. A mistura desses momentos ocasiona, de certo, o desabar da
estrutura fixa do autor-obra e relativiza por demais a feitura-expressão do
poema. Poema significa aqui um crédito e um débito: ele se faz enquanto a poeta
se faz, se perde enquanto ela se perde. Podemos supor que o modelo balança
entre se fazer inteligível e reclamar um dispêndio de sentido que escapela as
fórmulas semânticas.
No poema “The riverman” (O ribeirinho), escrito antes de ela
viajar à região, o parecer da poeta parte em um rumo que geralmente não temos
quando falamos sobre localidades. O homem que, nas palavras dela,
“resolve se tornar um ‘sacaca’,
um curandeiro que trabalha com os espíritos das águas”
quer dizer, resolve mudar sua forma por outra,
metamorfoseando de homem para homem-peixe, é uma resolução do caráter de
pesquisa da sua poética. Ela já intuía um rio Amazonas, uma passagem cuja
estipulação já estava engatada nas letras. O perfil consciente da lírica é um
corte temporal para baixo, para trás. Sequer temos experimento ainda, sequer um
contato pleno, mas já há conversa. Isso seria fundamental para os próximos anos
e, inclusive, para a relação com o Brasil. O poema continua:
“Acordei no meio da noite
porque o Boto me chamou.
Rosnou à minha janela,
oculto na bruma do rio,
mas eu o vi — um homem como eu.”
É a introdução original. Ela defere o ponto que absorve o
resto da narração, de modo que começa estabilizando o discurso por meio da
primeira pessoa do singular. O que é tão contrastante, dada a preponderância do
chamamento que os variados objetos ocupam ao redor:
“Então uma cobra bonita,
faceira, de cetim branco,
olhões dourados e verdes
como os faróis de um gaiola —
ela mesma, a Luandinha —
entrou e me deu bom-dia.”
Dos encantados, Luandinha é a contraparte feminina do Boto
(marcado em começo maiúsculo). São mitogemas: os olhos da cobra e o
rosnar do boto. Não podem se excluir, então. São organismos que exalam uma
unidade. O ribeirinho, inclusive, concatena os mundos naturais e sobrenaturais.
A sua centralidade é preservada, embora seja um protagonismo altamente mediado
justamente pela proliferação das castas da pajelança: o pajé que o ensina
resguarda a partícula que ele carrega numa substância maior. A bagunça
que a situação engendra prova: “nem sei direito aonde fui, mas fui longe, e por
den'd'água”.
Do visível e do conhecido se faz o invisível e o que o homem
não pode conhecer por completo. Prestemos atenção nos fitos que são promovidos
ao longo do poema: “cumbuca de cachaça e um charuto”, “lua”, “espelho virgem”,
“língua estrangeira” e afins. Todas elas respondem às técnicas xamânicas de
fazer-criar. Provavelmente, esse laço entre os mundos foi possível pela
ingenuidade do ribeirinho. E a pobreza material se dispôs, desse modo, a ser
aparada pela riqueza imaginária.
A devoração cultural e contínua se apoia em duas razões
principais: no acúmulo de bens de uma essência original e, por outro lado, na
pegada da simulação. O simulacro, forma da matéria, e a ideia, pura imagem, são
reações de uma mesma substância. Assim, a poética cabocla se fortalece no
excesso que planta. Guardadas as devidas relações lógico-formais, é como se
essa desmesura fosse, em qualquer via, um ponto de medida. Menciono a afirmação
que teve ao hifenizar o homem em “O homem-mariposa”, poema pré-brasileiro: lá,
ele quer chegar à Lua; cá ao rio. Embora o primeiro tenha contato direto, o
segundo participa da mesma gerência mágica.
A inversão metafísica é fortíssima. Parece que ela
partiu para descrever o ato de contar e a categoria da criação (ou melhor,
invenção) espelhando as relações religiosas.
Em outro momento, em “Santarém”, esboçado provavelmente
em 1962 e terminado apenas no fim da vida de Bishop, a fulguração imaginária
ressoa nos confins das áreas do Tapajós, onde “mesmo perante a tentação de
alguma interpretação literária do tipo vida/morte, certo/errado, macho/fêmea —
tais conceitos se teriam resolvido, dissolvido, de imediato naquela aquática,
deslumbrante dialética”. A paisagem desferiu, nos olhos da poeta, alguns
golpes. Ela não tenta resistir; não há maneira eficaz de fazê-lo. O que restou
para ela foi abraçar essa mistura de cores e sons, cheiros e pegadas. Como
fala: a dissolução na paisagem.
O poema segue com certas peculiaridades. Ele permanece
naquele cacoete retórico de explosão epifânica. Nele, não se guarda nada.
Apenas seu fora é mantido. Apenas a ideia de verdade, mantida pela força de
narrar um episódio que não se enquadrou na língua.
“Os cascos dos zebus, os pés das pessoas
afundavam na areia dourada,
amortecidos pela areia dourada,
e quase não se ouvia outro som
que não rangidos e xof, xof, xof.”
A ocorrência evidencia o seguinte: podemos pensar a
representação como um evoé bacante. Mas não é de felicidade transbordada, e sim
de prazer instintivo diante de tanta contradição. O “que coisa feia é essa?”,
dito por seu companheiro no fim do texto, elenca o contexto. Para qualquer um
ali, a experiência de viagem poderia ser totalmente diferente da dela. No seu
ouvido, qualquer grito estrondoso pôde ser uma peça de Mozart. O significado de
estar viajando é, afinal, esse: notar uma dada realidade de modo que ela
imploda na cabeça. Como os Estados Unidos estavam milhares de quilômetros
atrás, é responsável falar que ela via, sob a curadoria dos sentidos, um mundo
novo.
A gente de Santarém aparentava ser as milhares de formigas
golfadas no seu formigueiro, o porto.
Miscelânea de barcos: misto, confusão. Foi nessa linha que Bishop viu que
igreja não é catedral. A melhor das hipóteses para o fato residia em citar a
diferença de narrar e descrever. Mas para ela não há qualquer possibilidade de
cortar o que vê e o que quer dizer. Prédios, rios, azuis, amarelos: não há nada
que possa ficar de fora. A excitação que vem do externo é a demonstração cabal
da paixão que mora na poesia.
Indo além, prestemos atenção no diário de viagem que faz em
Vigia, crônica publicada postumamente em 1983.
“O poeta tímido, tão sujo, tão pobre, tão educado, insistiu
em nos levar no carro dele.”
Começa assim. Nessa fonte, Bishop concatena mais o espaço.
Talvez aí esteja estruturada não apenas um simples texto falando sobre
sensações e sentimentos ao visitar uma comunidade estranha ao seu ser, mas
também um tratado, um estudo antropológico em relação às vivências do interior
paraense. O texto torna fática a caracterização do modo de viver (da cidade):
“A ‘cidadezinha’ era uma encruzilhada, com uma venda de
bebidas e secos e molhados, um botequim, junto a um flamboyant frondoso.”
A cidade de Vigia ousa falar. É ela mesma que dá o sentido,
o fim da percepção. A chuva, as ruas, as pessoas, o ar envolto de Sol, o
entorno. Bishop e M. são joguetes que interpretam essas informações. Simples
informações, porém violentas em termo ambiental. O ambiente amazônico é
ornamentado por sua lonjura determinista; ele pega nos poros da pele.
“Casas esparsas de pau a pique. Um carro de boi: zebus
mansos, lindos, com corcovas altas e longas orelhas pendentes, de um cinza
azulado, uma bela junta de animais. Cavalos magros corriam para o mato ou
permaneciam impassíveis quando os contornávamos. Uma igreja miserável de pau a
pique, semipintada de azul vivo: IGREJA BATISTA.”
Ela não fala no gênero naturalidade como um jesuíta
falaria ao atravessar aquele lugar há 400 anos. O caso consiste, desse jeito,
em outro ponto: é o artifício de Vigia que é puxado para se tornar, enfim, natura.
Não compreendemos nunca o estereótipo até experimentá-lo. É uma marcha
ontológica que se respalda no comum e chega à alteridade. Bishop se sente
estranha ali, confundida e confusa, mas perspicazmente lúcida ao adentrar na
bolha do outro. Ruy, poeta do Pará, é quem foi o encarregado de guiar os
passos da americana. A seguir uma descrição da figura e suas referências
literárias:
“Ruy discorria sobre T. S. Eliot. Lia um pouco de inglês,
mas não falava uma palavra. Tentei contar uma história sobre Ezra Pound. Foi
muito bem recebida, mas creio que não foi compreendida.”
Aqui entra a principal chave hermenêutica. Em primeiro
lugar, convém citar que pairava, em Bishop, certa espécie de preconceito. O
núcleo, ao todo, era de alguém que não conhecia as variâncias e nuances da
multiplicidade brasileira ou, indo um pouco longe, não ocidental (por exemplo,
o que ela achava da poesia latino-americana em algumas correspondências). O que
via em Ruy Barata era um objeto cheio de gambiarra. E falo isso não de maneira
negativa. Serve para demonstrar o contraste e a complexa dimensão de suas
faculdades perceptivas.
Eu diria que “Viagem a Vigia” repele. A crônica intui algo
que o poema deixa passar: está disposta à remessa da heterodiscursividade.
Mas como isso é possível? Respondo: enquanto a narrativa do poema, sua
liricidade e sua prosódia elencam uma pseudo-objetividade, a crônica
indubitavelmente trabalha com um diálogo interno. A visão de Bishop
acerca de Barata aciona o universo discursivo que limita a subjetividade de
quem fala. Por exemplo: na citação anterior, o panorama instalado funciona como
pilar. A baixeza (humilis), junta ao grau de erudição do paraense, dá
pane àquela função de predominância. O movimento entre as duas figuras, apesar
dos pesares, é sadio. Ela amplia o horizonte: vendo a dificuldade, “não tinha
como exibir meus dólares e alugar um carro melhor”.
Para resumir: a atenção que Elizabeth Bishop quer dar é, com
toda certeza, diametralmente oposta ao que pensamos na apresentação etnológica
comum. Não quer embelezar, muito menos aumentar um local (o que poderia
vir a ser chamado de “regionalismo” [afinal, não ganharia nada sendo americana
e moderna demais, leitora do vorticismo e alinhada ao lacerdismo da esposa
Lota]). É o movimento sutil para ser explicado. Porém, podemos dar um sentido
geral do que não é composto na posição poética: não é antropologia. A ideia de
homem está, por sinal, descentrada (melhor dizendo, está suspensa). Peguem os
exemplos citados e vejam por si.
Tenho uma opinião um pouco mais “adequada” para o ocorrido e
deixarei uma breve conclusão.
Falei no início do texto sobre exílio. Provável que o grande
motivo para a sentença e, consequentemente, para as proposições de Bishop é a
noção de errância. A poesia, embora pastora do ser segundo certa filosofia, não
consegue se desvencilhar do erro, da passagem, da viagem que Roberto Bolaño
notava. A experiência de não pertencer é autoridade de qualquer poeta, mesmo o
mais medíocre. Ali, quando a modernista escrevia seus relatos, se cristalizou a
ponte entre duas modalidades.
Eis a maneira que acabou contando as amazonas.
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