Considerações em torno do Auto da Compadecida
Por Pedro Fernandes
Ariano Suassuna durante as filmagens da primeira versão de sua peça Auto da Compadecida, em Brejo da Madre de Deus, Pernambuco, 1968. |
O Auto da Compadecida é um divisor no reconhecimento da obra de Ariano Suassuna (1927-2014). Continuamente encenada, a peça alcançou uma popularidade pouco comum para a literatura brasileira, ainda mais numa seara das mais áridas, o teatro. Um breve levantamento nos mostrará a pouca recorrência de criações neste gênero no campo de destaque em relação a formas como as da prosa e da poesia.
A 1ª edição do Auto da Compadecida, publicado na série Teatro Moderno coordenada por Maria Clara Machado para a editora Agir, em 1957. |
Publicado em 1957 em livro, este se torna um dos seus trabalhos mais reeditados; em 2018 — no âmbito da reedição integral da obra de Ariano Suassuna iniciada dois anos antes com arrojado projeto gráfico e a cuidadosa fixação dos textos sob os olhos de Carlos Newton Júnior, a quem foi o autor confiou sua obra —, contávamos 40 edições. Na mesma proporção das reedições, a peça está entre as mais adaptadas da literatura brasileira, história que começa ainda um ano antes dessa edição em livro.
A primeira encenação do Auto da Compadecida, acontece em 11 de setembro de 1956 sob
os cuidados do Teatro de Adolescentes do Recife e com direção de Clênio
Wanderley — o responsável pela ideia de utilizar o picadeiro de circo como espaço
ideal para a encenação. Como as demais peças de Ariano Suassuna, a recepção e o interesse público foram pífias: “Na primeira noite tinha metade da plateia; na segunda, metade da metade. Na terceira, preferimos suspender.” — recorda o dramaturgo.
Embora a sagração tenha sido sempre acompanhada de ressalvas, as primeiras leituras observaram qualidades no teatro de Ariano Suassuna. No Rio, no Jornal do Brasil, Assis Brasil louva a peça de como “puro teatro”; em São Paulo, no Suplemento Literário, Sábato Magaldi, autor de uma das críticas mais sólidas à peça e atento ao teatro na época,3 saúda o criador paraibano na “Apresentação de um autor”, a partir da leitura do Auto da Compadecida, Auto de João da Cruz e O arco desolado, como “um escritor teatral autêntico”. Anos mais tarde, em 1962, no mesmo Suplemento Literário, Paulo Hecker Filho chamou o Auto da Compadecida de “peça infantil, dispersiva e primária”, mas “cândida, livre, colorida, o que torna fácil perdoar sua puerilidade”.
E é assim que, a partir da estreia no Rio, essa se torna obra que apresenta o nome Ariano Suassuna
dentro e fora do país. No fim e na década seguinte, por exemplo, multiplicam-se
as traduções do Auto: na Polônia (1959), nos Estados Unidos (1963), na
Holanda (1965), na França (1970), e assim sucessivamente, contrariando as circunstâncias
até então vigentes. “Quando escrevi o Auto da Compadecida, eu era
inteiramente desconhecido. Nunca pensei que a peça saísse do Recife. Naquela época,
eu escrevia uma peça por ano, que jamais era montada ou editada, com uma única
exceção [Cantam as harpas de Sião, levada ao palco por Hermilo Borba
Filho em 1948]. De repente, foi aquela acolhida no Brasil até chegar à Europa.”
— refere na entrevista concedida para os Cadernos de Literatura
Brasileira, do Instituto Moreira Salles.
Cena de A Compadecida, primeira adaptação da peça de Ariano Suassuna para o cinema, 1969. Arquivo da Cinemateca Brasileira. |
Desses, A Compadecida é um filme acadêmico, como observou a crítica; rodado em Brejo da Madre de Deus, cidade do interior pernambucano que fora cenário de tantas outras produções cinematográficas e onde se encenava desde 1967 no Teatro de Nova Jerusalém a Paixão de Cristo, é quase uma transposição do material de teatro para a tela. No elenco, Regina Duarte (A Compadecida), Zózimo Bulbul (Manuel) Armando Bógus (João
Grilo) e Antônio Fagundes (Chicó). Uma das primeiras apostas do cinema em cores no Brasil, o filme foi representante do país no Festival Internacional do Rio,
onde ganhou um prêmio especial pelos cenários de Lina Bo Bardi e pela Direção
de Arte de Francisco Brennand. Pouco depois, a produção ficou fora dos cinemas a mando da censura
militar que chegou na mesma ocasião a proibir a circulação da peça em todo país
sob a acusação de anticlericalismo.
O segundo filme continua sendo a melhor releitura da peça pela sétima arte; produto do enorme sucesso alcançado pela minissérie que trazia um seleto elenco — Fernanda Montenegro (A Compadecida), Maurício Gonçalves (Manuel), Matheus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Mello (Chicó) —, a obra se destaca pela leveza e pelo encantamento que constituem a atmosfera do texto original.
Para o filme de 2024, Guel Arraes
retoma o mesmo procedimento do qual se serviu para a minissérie de
televisão dividida em quatro capítulos — processo que bebe no tratamento criativo de Ariano Suassuna e reaproveita partes de outras peças do dramaturgo. No caso de 1999, além de O santo e a
porca, o diretor se valeu do entremez Torturas de um coração, base
do primeiro ato de A pena e a lei.4 Para dar fôlego a uma continuidade do universo anterior, o roteiro cinematográfico de 2024 vale-se de O santo e a porca, comédia em três atos que se apropria da Aulularia, de Plauto, e O avarento, de Molière, e Farsa da boa preguiça, peça de três atos independentes articulados pelo tema entrevisto no título. Matheus Nachtergaele e Selton Mello continuam os papéis originais, o primeiro desdobrando-se entre Manuel e o Diabo, com Taís Araújo na figura de uma Compadecida Aparecida.
Se a primeira adaptação para o cinema nos seduz por qualidades como o caprichado figurino ou “a honestidade e o cuidado com que foi ele realizado” (para repetir os termos de Zulmira Ribeiro Tavares sobre o filme de George Jonas), a segunda pela desenvoltura, O Auto da Compadecida 2 em tudo parece inautêntico. São desfavoráveis o arremedo da versão anterior e a sobressalência dos recursos artificiais que impõe sobre a simplicidade a irritante exuberância do falso. Com um universo dramático extremamente variado e rico, sobra a pergunta se ao invés da pasteurização, não teria sido mais útil investir tempo e dedicação na feitura de um filme a partir de outra peça que não o Auto da Compadecida.
O importante é que a obra continua, dentro e fora dos palcos, dentro e fora das telas, como um marco na arte brasileira e está sempre disponível ao
leitor interessado num teatro que soube harmonizar tradições e modelos formais os
mais diversos para fazer o fundamental de uma peça: conduzir o espectador à alteração dos seus sentidos por meio da capacidade ilusionista da cena.
Ligações a esta post:
1 “Nosso Teatro Armorial tem seus pontos de vista formados e próprios: Não digo que sejam os únicos certos, os único válidos. Mas, discordando, nisso, mesmo de alguns amigos e velhos companheiros de trabalho, não conhecia - nem as aceito, agora que as conheço — as formulações teóricas do teatro sectário de Bertolt Brecht e de seus seguidores latino-americanos de segunda-mão. A fórmula brechtiana começou investindo conta o “ilusionismo teatral” e está destruindo “a ilusão e a encantação do Teatro”, coisas fundamentais para essa Arte.”. É o que Ariano Suassuna observa em O Movimento Armorial.
2 Constam duas versões do entremez
O castigo da soberba. Uma publicada na segunda edição da Revista do
Departamento de Extensão Cultural e Artística, em 1962; e outra aparecida na Seleta
em prosa e verso, organizada por Silviano Santiago, de 1974. O processo
do Cristo negro foi dirigido por Ariano Suassuna para o grupo de teatro
Colégio e apresentado no aniversário do Colégio Estadual de Pernambuco em 14 de
maio de 1956.
3 A crítica de Sábato Magaldi saiu no mesmo Suplemento Literário. Data de 30 de novembro de 1957 e se intitula “Sugestões de A Compadecida”.
4 A pena e a lei vale-se, na matriz do terceiro ato de O processo do Cristo negro, peça de um ato tratada por Ariano Suassuna
como “uma espécie de facilitação do terceiro ato do Auto da Compadecida”. Isto é, os textos escolhidos por Guel
Arraes, tanto no caso da minissérie como no caso do filme de 2024, participam
de um núcleo que poderíamos compreender como filiados ao entrecho da peça de
1955, direta ou indiretamente, por meio das mesmas fontes temáticas.
Algumas fontes
Ao sol da prosa brasiliana (entrevista). In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna. Rio de Janeiro, n. 10, novembro, 2000.
Newton Júnior, Carlos. Cronologia de Ariano Suassuna. In
Mattar, Denise. Movimento Armorial
50 anos. Catálogo. São Paulo: R
Godoy, 2023.
Oscar, Henrique. Prefácio. In Suassuna, Ariano. Auto da Compadecida. 40 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2018.
Suassuna, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Editora Universitária UFPE, 1974.
Tavares, Zulmira Ribeiro. A Compadecida: um confronto. In Suplemento Literário, São Paulo, ano 14, n. 656, 17 de janeiro de 1970, p.5.
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