Considerações em torno do Auto da Compadecida

Por Pedro Fernandes


Ariano Suassuna durante as filmagens da primeira versão de sua peça Auto da Compadecida, em Brejo da Madre de Deus, Pernambuco, 1968.


O Auto da Compadecida é um divisor no reconhecimento da obra de Ariano Suassuna (1927-2014). Continuamente encenada, a peça alcançou uma popularidade pouco comum para a literatura brasileira, ainda mais numa seara das mais áridas, o teatro. Um breve levantamento nos mostrará a pouca recorrência de criações neste gênero no campo de destaque em relação a formas como as da prosa e da poesia.
 
O dramaturgo concebeu este trabalho em setembro 1955, quando já havia escrito outras peças, como Cantam as harpas de Sião (1948), Os homens de barro (1949), Auto de João da Cruz (1950) e O arco desolado (1952). Este primeiro conjunto do seu teatro aponta para o modelo armorial e como tal se situa entre o épico e o narrativo seguindo as feições das expressões das formas antigas eruditas ou populares.
 
O próprio Ariano Suassuna assim reconhece sua dramaturgia, recusando as noções modernas adotadas para conceituar o teatro épico, como o cunho político-realista adotado por Bertolt Brecht.¹ Para Ligia Vassallo, as fontes temáticas, as sequências narrativas e certas técnicas do cordel e dos folguedos populares constituem as bases principais da dramaturgia em destaque: “Neles predomina o teatro religioso medieval, sobretudo ibérico (mistério, milagre, moralidade), ao qual se acrescentam traços do auto sacramental barroco (ainda muito ligado à medievalidade, apesar de ser um produto do século XVII), em associação com formas da dramaturgia profana vigentes na cena durante a transição entre o período medieval e os tempos modernos (farsa e comédia italiana).”
 
Ao tratar do Auto da Compadecida, seu autor explica que se baseou em romances (folhetos) e histórias populares que circulavam no Nordeste, articulando através desses materiais outras expressões teatrais mais antigas, como as peças comuns na Alta Idade Média, designadas como Milagres de Nossa Senhora, do século XIV, ou ainda os autos do dramaturgo português Gil Vicente e o teatro espanhol do século XVII, ou ainda a commedia dell’arte, notável, nesse caso, tanto no desenvolvimento da ação como na concepção das personagens: a figura de João Grilo, por exemplo, recupera nas suas feições, o traço do Arlequim.
 
A estrutura da peça é dividida em três atos e o assunto são as peripécias de João Grilo e o amigo Chicó, primeiro por estratos sociais diferentes de Taperoá, cidade encravada no sertão da Paraíba e depois no corte celestial. O ponto de desenlace da cena é o compromisso assumido por João Grilo de conseguir que o padre realize o sepultamento em modos cristãos da cadela de estima da mulher do padeiro.
 
Essas duas figuras, João Grilo e Chicó, articuladas por meio de caracteres opostos e complementares participam de episódios que dão a conhecer personagens e circunstâncias que envolvem outras figuras, como o referido padeiro e sua folgazã e avarenta mulher, o padre João, o bispo e o sacristão envoltos em interesses escusos e capitais, e Manuel (Jesus), A Compadecida (Nossa Senhora) e o Encourado (Diabo), reavivando certo imaginário católico cristão já marcado pelas alterações populares quanto às figuras bíblicas aí retratadas e mesmo as noções do post-mortem.
 
Na peça, o conjunto dos acontecimentos é organizado pela figura do Palhaço, o que orienta a concepção cenográfica para um picadeiro de circo, distanciando-se, nesse sentido, daquelas expressões do teatro moderno, pelo menos na acepção vigente, e se aproximando das matrizes do teatro popular. É essa figura que exerce a função de dirigir o público, conduzindo-o à maneira circense ao porvir e tecendo comentários; ela aparece no prólogo de cada ato e no epílogo.
 
As matrizes da peça em destaque encontram-se ainda afirmadas na própria obra até então realizada, como o entremez O castigo da soberba e a peça de ato único O processo do Cristo negro.² No mais, o primeiro ato articula-se a partir de “O enterro do cachorro”, uma passagem do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros; o segundo, na História do cavalo que defecava dinheiro, do mesmo cordelista; e o terceiro bebe em O castigo da soberba, de Anselmo Vieira de Souza, e A peleja da alma, de Silvino Pirauá Lima, retomados no entremez antes referido.
 
Esses materiais engendram um texto marcadamente original, visto que os acontecimentos, a ambientação e mesmo as características essenciais das personagens estão em consonância com os modelos populares do interior brasileiro, afastando-se, portanto, de uma noção de simples transposição de tipos e circunstâncias fixados na tradição e na alta cultura. Ariano Suassuna pratica a elevação dos caracteres e dos acontecimentos ao plano do erudito, reencontrando nos modelos populares nordestinos a tessitura dos materiais cooptados nos trânsitos entre as diversas culturas.

A 1ª edição do Auto da Compadecida, publicado na série Teatro Moderno coordenada por Maria Clara Machado para a editora Agir, em 1957.



Publicado em 1957 em livro, este se torna um dos seus trabalhos mais reeditados; em 2018 — no âmbito da reedição integral da obra de Ariano Suassuna iniciada dois anos antes com arrojado projeto gráfico e a cuidadosa fixação dos textos sob os olhos de Carlos Newton Júnior, a quem foi o autor confiou sua obra —, contávamos 40 edições. Na mesma proporção das reedições, a peça está entre as mais adaptadas da literatura brasileira, história que começa ainda um ano antes dessa edição em livro. 

A primeira encenação do Auto da Compadecida, acontece em 11 de setembro de 1956 sob os cuidados do Teatro de Adolescentes do Recife e com direção de Clênio Wanderley — o responsável pela ideia de utilizar o picadeiro de circo como espaço ideal para a encenação. Como as demais peças de Ariano Suassuna, a recepção e o interesse público foram pífias: “Na primeira noite tinha metade da plateia; na segunda, metade da metade. Na terceira, preferimos suspender.” — recorda o dramaturgo. 
 
Se na ocasião do Recife o destino parecia incerto para o texto composto pelo jovem de 28 anos, a apresentação consagradora da peça não tarda. Já no ano seguinte é encenada no Rio de Janeiro ao ser aceita para o Primeiro Festival de Amadores Nacionais, promovido pela Fundação Brasileira de Teatro e recebe, na ocasião, o reconhecimento com a Medalha de Ouro do festival e a premiação em várias categorias. A encenação e o livro também serviram às primeiras críticas especializadas para a obra.

Embora a sagração tenha sido sempre acompanhada de ressalvas, as primeiras leituras observaram qualidades no teatro de Ariano Suassuna. No Rio, no Jornal do Brasil, Assis Brasil louva a peça de como “puro teatro”; em São Paulo, no Suplemento Literário, Sábato Magaldi, autor de uma das críticas mais sólidas à peça e atento ao teatro na época,3 saúda o criador paraibano na “Apresentação de um autor”, a partir da leitura do Auto da Compadecida, Auto de João da Cruz e O arco desolado, como “um escritor teatral autêntico”. Anos mais tarde, em 1962, no mesmo Suplemento Literário, Paulo Hecker Filho chamou o Auto da Compadecida de “peça infantil, dispersiva e primária”, mas “cândida, livre, colorida, o que torna fácil perdoar sua puerilidade”. 

E é assim que, a partir da estreia no Rio, essa se torna obra que apresenta o nome Ariano Suassuna dentro e fora do país. No fim e na década seguinte, por exemplo, multiplicam-se as traduções do Auto: na Polônia (1959), nos Estados Unidos (1963), na Holanda (1965), na França (1970), e assim sucessivamente, contrariando as circunstâncias até então vigentes. “Quando escrevi o Auto da Compadecida, eu era inteiramente desconhecido. Nunca pensei que a peça saísse do Recife. Naquela época, eu escrevia uma peça por ano, que jamais era montada ou editada, com uma única exceção [Cantam as harpas de Sião, levada ao palco por Hermilo Borba Filho em 1948]. De repente, foi aquela acolhida no Brasil até chegar à Europa.” — refere na entrevista concedida para os Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles.

Cena de A Compadecida, primeira adaptação da peça de Ariano Suassuna para o cinema, 1969. Arquivo da Cinemateca Brasileira.


 
Cedo também o material do Auto da Compadecida encontra os caminhos das telas. Em 1969, com roteiro do próprio Ariano Suassuna e direção de George Jonas, fica pronta a primeira versão cinematográfica. Depois, vieram em Os Trapalhões no Auto da Compadecida (Roberto Farias, 1987), O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000) — a versão mais popular, responsável mesmo pela maneira como leitores diversos passaram a referir o título da peça — e pela sequência O Auto da Compadecida 2 (Guel Arraes, 2024).

Desses, A Compadecida é um filme acadêmico, como observou a crítica; rodado em Brejo da Madre de Deus, cidade do interior pernambucano que fora cenário de tantas outras produções cinematográficas e onde se encenava desde 1967 no Teatro de Nova Jerusalém a Paixão de Cristo, é quase uma transposição do material de teatro para a tela. No elenco, Regina Duarte (A Compadecida), Zózimo Bulbul (Manuel) Armando Bógus (João Grilo) e Antônio Fagundes (Chicó). Uma das primeiras apostas do cinema em cores no Brasil, o filme foi representante do país no Festival Internacional do Rio, onde ganhou um prêmio especial pelos cenários de Lina Bo Bardi e pela Direção de Arte de Francisco Brennand. Pouco depois, a produção ficou fora dos cinemas a mando da censura militar que chegou na mesma ocasião a proibir a circulação da peça em todo país sob a acusação de anticlericalismo.

O segundo filme continua sendo a melhor releitura da peça pela sétima arte; produto do enorme sucesso alcançado pela minissérie que trazia um seleto elenco — Fernanda Montenegro (A Compadecida), Maurício Gonçalves (Manuel), Matheus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Mello (Chicó) —, a obra se destaca pela leveza e pelo encantamento que constituem a atmosfera do texto original. 

Para o filme de 2024, Guel Arraes retoma o mesmo procedimento do qual se serviu para a minissérie de televisão dividida em quatro capítulos — processo que bebe no tratamento criativo de Ariano Suassuna e reaproveita partes de outras peças do dramaturgo. No caso de 1999, além de O santo e a porca, o diretor se valeu do entremez Torturas de um coração, base do primeiro ato de A pena e a lei.4 Para dar fôlego a uma continuidade do universo anterior, o roteiro cinematográfico de 2024 vale-se de O santo e a porca, comédia em três atos que se apropria da Aulularia, de Plauto, e O avarento, de Molière, e Farsa da boa preguiça, peça de três atos independentes articulados pelo tema entrevisto no título. Matheus Nachtergaele e Selton Mello continuam os papéis originais, o primeiro desdobrando-se entre Manuel e o Diabo, com Taís Araújo na figura de uma Compadecida Aparecida. 

Se a primeira adaptação para o cinema nos seduz por qualidades como o caprichado figurino ou “a honestidade e o cuidado com que foi ele realizado” (para repetir os termos de Zulmira Ribeiro Tavares sobre o filme de George Jonas), a segunda pela desenvoltura, O Auto da Compadecida 2 em tudo parece inautêntico. São desfavoráveis o arremedo da versão anterior e a sobressalência dos recursos artificiais que impõe sobre a simplicidade a irritante exuberância do falso. Com um universo dramático extremamente variado e rico, sobra a pergunta se ao invés da pasteurização, não teria sido mais útil investir tempo e dedicação na feitura de um filme a partir de outra peça que não o Auto da Compadecida.  

O importante é que a obra continua, dentro e fora dos palcos, dentro e fora das telas, como um marco na arte brasileira e está sempre disponível ao leitor interessado num teatro que soube harmonizar tradições e modelos formais os mais diversos para fazer o fundamental de uma peça: conduzir o espectador à alteração dos seus sentidos por meio da capacidade ilusionista da cena.


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Notas

1 “Nosso Teatro Armorial tem seus pontos de vista formados e próprios: Não digo que sejam os únicos certos, os único válidos. Mas, discordando, nisso, mesmo de alguns amigos e velhos companheiros de trabalho, não conhecia - nem as aceito, agora que as conheço  as formulações teóricas do teatro sectário de Bertolt Brecht e de seus seguidores latino-americanos de segunda-mão. A fórmula brechtiana começou investindo conta o “ilusionismo teatral” e está destruindo “a ilusão e a encantação do Teatro”, coisas fundamentais para essa Arte.”. É o que Ariano Suassuna observa em O Movimento Armorial.   

2 Constam duas versões do entremez O castigo da soberba. Uma publicada na segunda edição da Revista do Departamento de Extensão Cultural e Artística, em 1962; e outra aparecida na Seleta em prosa e verso, organizada por Silviano Santiago, de 1974. O processo do Cristo negro foi dirigido por Ariano Suassuna para o grupo de teatro Colégio e apresentado no aniversário do Colégio Estadual de Pernambuco em 14 de maio de 1956.
 
3 A crítica de Sábato Magaldi saiu no mesmo Suplemento Literário. Data de 30 de novembro de 1957 e se intitula “Sugestões de A Compadecida”.

4 A pena e a lei vale-se, na matriz do terceiro ato de O processo do Cristo negro, peça de um ato tratada por Ariano Suassuna como “uma espécie de facilitação do terceiro ato do Auto da Compadecida”. Isto é, os textos escolhidos por Guel Arraes, tanto no caso da minissérie como no caso do filme de 2024, participam de um núcleo que poderíamos compreender como filiados ao entrecho da peça de 1955, direta ou indiretamente, por meio das mesmas fontes temáticas.
 
Algumas fontes

Ao sol da prosa brasiliana (entrevista). In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna. Rio de Janeiro, n. 10, novembro, 2000.
Newton Júnior, Carlos. Cronologia de Ariano Suassuna. In Mattar, Denise. Movimento Armorial 50 anos. Catálogo. São Paulo: R Godoy, 2023.
Oscar, Henrique. Prefácio. In Suassuna, Ariano. Auto da Compadecida. 40 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
Suassuna, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Editora Universitária UFPE, 1974.
Tavares, Zulmira Ribeiro. A Compadecida: um confronto. In Suplemento Literário, São Paulo, ano 14, n. 656, 17 de janeiro de 1970,  p.5.
Vassallo, Ligia. O grande teatro do mundo. In Cadernos de Literatura Brasileira. Ariano Suassuna. Rio de Janeiro, n. 10, novembro, 2000.
 

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